A
minha ideia, depois de tantas cabriolas, constituíra-se ideia fixa.
Deus te livre, leitor, de uma ideia fixa; antes um argueiro, antes
uma trave no olho. Vê o Cavour; foi a ideia fixa da unidade italiana
que o matou. Verdade é que Bismarck não morreu; mas cumpre advertir
que a natureza é uma grande caprichosa e a história uma eterna
loureira. Por exemplo, Suetônio deu-nos um Cláudio, que era um
“verdadeiro banana”, – ou “uma abóbora” como lhe chamou
Sêneca, e um Tito, que mereceu ser as delícias de Roma. Veio
modernamente um professor e achou meio de demonstrar que ambos esses
conceitos eram errôneos e abstrusos, e que dos dois césares, o
delicioso, o verdadeiramente delicioso, foi o “abóbora” de
Sêneca. E tu, madama Lucrécia, flor dos Bórgias, se um poeta te
pintou como a Messalina católica, apareceu um Gregorovius incrédulo
que te apagou muito essa qualidade, e, se não vieste a lírio,
também não ficaste pântano. Eu deixo-me estar entre o poeta e o
sábio.
Viva
pois a história, a volúvel história que dá para tudo; e, tomando
à ideia fixa, direi que é ela a que faz os varões fortes e os
doidos; a ideia móbil, vaga ou furta-cor é a que faz os Cláudios,
– formula Suetônio.
Era
fixa a minha ideia, fixa como... Não me ocorre nada que seja assaz
fixo nesse mundo: talvez a lua, talvez as pirâmides do Egito, talvez
a finada dieta germânica. Veja o leitor a comparação que melhor
lhe quadrar, veja-a e não esteja daí a torcer-me o nariz, só
porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá
iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros
leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem. Pois lá iremos.
Todavia, importa dizer que este livro é escrito com pachorra, com a
pachorra de um homem já desafrontado da brevidade do século, obra
supinamente filosófica, de uma filosofia desigual, agora austera,
logo brincalhona, coisa que não edifica nem destrói, não inflama
nem regela, e é todavia mais do que passatempo e menos do que
apostolado.
Vamos
lá; retifique o seu nariz, e tornemos ao emplasto.
Deixemos
a história com os seus caprichos de dama elegante.
Nenhum
de nós pelejou a batalha de Salamina; nenhum escreveu a confissão
de Augsburgo; pela minha parte, se alguma vez me lembro de Cromwell,
é só pela ideia de que Sua Alteza, com a mesma mão que trancara o
parlamento, teria imposto aos ingleses o emplasto Brás Cubas. Não
se riam dessa vitória comum da farmácia e do puritanismo. Quem não
sabe que ao pé de cada bandeira grande, pública, ostensiva, há
muitas vezes várias outras bandeiras modestamente particulares, que
se hasteiam e flutuam à sombra daquela, com ela caem e não poucas
vezes lhe sobrelevam? Mal comparando, é como a arraia-miúda, que se
acolhia à sombra do castelo feudal; caiu este e a arraia ficou.
Verdade é que se fez graúda e castelã... Não, a comparação não
presta.
Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas
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