Aprendemos
das lições da vida que de pouco nos poderá servir uma democracia
política, por mais equilibrada que pareça apresentar-se nas suas
estruturas internas e no seu funcionamento institucional, se não
tiver sido constituída como raiz de uma efectiva e concreta
democracia económica e de uma não menos concreta e efectiva
democracia cultural. Dizê-lo nos dias de hoje há-de parecer um
exausto lugar-comum de certas inquietações ideológicas do passado,
mas seria fechar os olhos à simples verdade histórica não
reconhecer que aquela trindade democrática — política, económica,
cultural —, cada uma delas complementar e potenciadora das outras,
representou, no tempo da sua prosperidade como ideia de futuro, uma
das mais apaixonantes bandeiras cívicas que alguma vez, na história
recente, foram capazes de despertar consciências, mobilizar
vontades, comover corações. Hoje, desprezadas e atiradas para o
lixo das fórmulas que o uso cansou e desnaturou, a ideia de
democracia económica deu lugar a um mercado obscenamente triunfante,
finalmente a braços com uma gravíssima crise na sua vertente
financeira, ao passo que a ideia de democracia cultural acabou por
ser substituída por uma alienante massificação industrial das
culturas. Não progredimos, retrocedemos. E cada vez se irá tornando
mais absurdo falar de democracia se teimarmos no equívoco de a
identificar unicamente com as suas expressões quantitativas e
mecânicas que se chamam partidos, parlamentos e governos, sem
atender ao seu conteúdo real e à utilização distorcida e abusiva
que na maioria dos casos se vem fazendo do voto que os justificou e
colocou no lugar que ocupam.
Não
se conclua do que acabo de dizer que estou contra a existência de
partidos: eu próprio sou membro de um deles. Não se pense que
aborreço parlamentos e deputados: querê-los-ia, a uns e a outros,
em tudo melhores, mais activos e responsáveis. E tão-pouco se creia
que sou o providencial criador de uma receita mágica que permitiria
aos povos, doravante, viver sem ter de suportar maus governos e
perder tempo com eleições que raramente resolvem os problemas:
apenas me recuso a admitir que só seja possível governar e desejar
ser governado conforme os modelos supostamente democráticos em uso,
a meu ver pervertidos e incoerentes, que nem sempre de boa-fé certa
espécie de políticos andam a querer tornar universais, com
promessas falsas de desenvolvimento social que mal conseguem
dissimular as egoístas e implacáveis ambições que as movem.
Alimentamos os erros na nossa própria casa, mas comportamo-nos como
se fôssemos os inventores de uma panaceia universal capaz de curar
todos os males do corpo e do espírito dos seis mil milhões de
habitantes do planeta. Dez gotas da nossa democracia três vezes ao
dia e sereis felizes para todo o sempre. Em verdade, o único
verdadeiro pecado mortal é a hipocrisia.
José Saramago, in O caderno
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