As
chuvas que devastaram o estado de Pernambuco no fim de semana têm
como triste paralelo a enchente do rio Capibaribe de 1975. Na época,
a tragédia matou 107 pessoas, desalojou outras milhares e,
inusitadamente, criou a lenda de um disco que há anos é rotulado
como o mais caro e caro do Brasil. Você pensou em “Paêbirú”
(1975)? Sim, só poderíamos estar falando dele.
Já
faz parte do nosso folclore musical: o primeiro álbum de Zé
Ramalho, parceria com o artista recifense Lula Côrtes (1949-2011),
uma expedição conceitual/psicodélica à Pedra do Ingaí na
Paraíba, é um sobrevivente. Assim como alguns de seus envolvidos.
Criado
sem expectativa comercial, o álbum teve quase toda sua primeira
prensagem de 1.000 exemplares perdida após um violento alagamento na
Rozenblit, a pequena fábrica de LPs no Recife que prensou os discos
e que também funcionava como estúdio e selo (Solar). A maior cheia
da história da cidade fez o pavimento inferior da sede da empresa
—ironicamente localizada no bairro de Afogados— ser tomado por
dois metros de água naquele trágico julho de 1975. E lá estavam os
álbuns.
“Meu
auxiliar técnico, desesperado, tirava a água com um rodo. De
repente, um barulho: o muro que circundava o córrego que passava ao
lado desabou e uma onda de água veio sobre nós. Corremos para o
primeiro andar para nos refugiar e, assim, ficamos nos alimentando de
coco e farinha por dois dias até a água baixar”. Helio Rozenblit,
filho do fundador da Rozenblit, que produziu o disco e viu a
inundação, em entrevista ao jornal Estado de S. Paulo.
Mas
nem tudo se perdeu. Longe do lamaçal, cerca de 300 cópias de acervo
pessoal, destinadas aos músicos, sobreviveram na casa em que Lula
Côrtes e a sua então companheira, a artista gráfica Kátia Mesel,
dividiam em Beberibe (CE).
Outra
parte desses cálices sagrados do colecionismo permaneceu encalhada
em uma segunda residência, a de Thelma Ramalho, prima de Zé, que
testemunhou um tipo curioso de alquimia: vinil virou ouro.
Parece
história de colecionador, mas, hoje, uma cópia original em bom
estado de “Paebirú” pode ser negociada em termos de R$ 10.000.
No maior banco de dados de discos do mundo, o site Discogs, não há
nenhuma delas à venda.
Esse
valor posiciona o álbum acima de “Tim Maia Racional” e o coloca
em pé de igualdade com “Louco por Você” (1961), primeiro e
renegado trabalho de Roberto Carlos, que teve tiragem única de mil
cópias.
Nem
todo colecionador sabe: Mesmo com enchente do Capibaribe tendo
devastado a fábrica, danificando a matriz de “Paêbirú” — o
“negativo” do vinil —, uma segunda edição foi produzida pela
mesma Rozenblit no ano seguinte. A empresa criou um novo corte a
partir de um backup da fita original.
Acreditava-se
até então que a master havia se perdido para sempre na enchente,
mas anos depois o tesouro acabou reencontrado, intacto, repousando no
alto de estantes de aço do arquivo da fábrica.
A
segunda edição de 1976 é igualmente histórica, embora
ligeiramente menos valiosa no mercado de discos. Sucesso comercial? O
disco nunca desfrutou em nenhum momento.
Mas
a verdade é que só conhecemos esta história cinematográfica por
um motivo A magia de 'Paebirú' foi redescoberta fora do Brasil
durante os anos 2000, em um movimento típico do hype colecionista,
como ocorrera com diversas outras obras tão importantes quanto
eclipsadas na música brasileira. A corrida pelo disco movimentou
colecionadores principalmente na Europa e Japão. Diversas versões
piratas em CD e LP pipocaram editadas por selos como Shadoks Music e
Mr Bongo. E nunca nenhum artista envolvido viu a cor desse dinheiro.
Somente
em 2019 o álbum ganhou relançamento oficial no Brasil pela Polysom,
em vinil de 180 gramas, feito com masters originais. O preço do
álbum duplo? R$ 250 sugeridos na época. Hoje, ele é encontrado a
partir de R$ 320. Impossível falar de “pechincha”. Mas é como
se fosse.
10
curiosidades sobre este clássico:
+
O título “Paêbirú” é inspirado no famoso Caminho do Peabiru,
antiga rota indígena que ligava regiões do interior e litoral do
Brasil ao Peru.
+
A grafia correta é como você leu acima, “Peabiru”, sem acentos
e com a letra “e” à frente da “a”. Eram tempos pré-internet.
Muito mais difícil checar informações.
+
Antes das gravações, Ramalho, Côrtes, Kátia e o fotógrafo Fred
Mesel fizeram uma expedição à Pedra do Ingá, sítio arqueológico
rochoso na Paraíba que conta com misteriosas inscrições rupestres
entalhadas.
+
Lá, movidos a cogumelos e viagens lisérgicas, a dupla começou a se
interessar pelo sincretismo religioso dos povos indígenas locais e
pela na crença da entidade Sumé, mito criado antes da colonização
portuguesa.
+
As histórias e mitologias que circundam a pedra inspiraram Zé
Ramalho e Lula Côrtes, que posaram para as fotos em filme
infravermelho que estão na capa e na arte do disco.
+
Cada um dos quatro lados de “Paêbirú” é baseado em um
elemento: terra, ar, fogo e água.
+
Considerado um dos projetos mais livres e experimentais da nossa
música, o álbum tem barulhos de pássaros, rios, sons de tricórdio
(cítara marroquina) e até um pente tocado em folha de celofane por
Alceu Valença.
+
Essa estética acabaria virando uma das marcas do movimento
“udigrudi”, a psicodelia nordestina, de grupos como Ave Sangria e
O Bando do Sol, Vários músicos da cena, e não só Alceu Valença,
participaram do disco.
+
Apesar das qualidades artísticas das músicas, Zé Ramalho evita
falar sobre o disco em entrevistas. Especula-se que a razão seja a
má relação que ele manteve por anos com Lula e o fato de, na
época, a imprensa não der dado atenção à obra. E nesse ponto ele
está certo.
+
Tudo isso e muitos outros detalhes foram dissecados em um
documentário imperdível, “Nas Paredes da Pedra Encantada”, de
Cristiano Barros, que refez o caminho da dupla e radiografou a gênese
de “Paêbirú”.
Leonardo Rodrigues, in uol.com.br/splash/coluna. Acesse aqui.
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