quarta-feira, 1 de junho de 2022

Tragédia da chuva no Recife já deu origem ao disco ‘mais valioso’ do Brasil


As chuvas que devastaram o estado de Pernambuco no fim de semana têm como triste paralelo a enchente do rio Capibaribe de 1975. Na época, a tragédia matou 107 pessoas, desalojou outras milhares e, inusitadamente, criou a lenda de um disco que há anos é rotulado como o mais caro e caro do Brasil. Você pensou em “Paêbirú” (1975)? Sim, só poderíamos estar falando dele.
Já faz parte do nosso folclore musical: o primeiro álbum de Zé Ramalho, parceria com o artista recifense Lula Côrtes (1949-2011), uma expedição conceitual/psicodélica à Pedra do Ingaí na Paraíba, é um sobrevivente. Assim como alguns de seus envolvidos.
Criado sem expectativa comercial, o álbum teve quase toda sua primeira prensagem de 1.000 exemplares perdida após um violento alagamento na Rozenblit, a pequena fábrica de LPs no Recife que prensou os discos e que também funcionava como estúdio e selo (Solar). A maior cheia da história da cidade fez o pavimento inferior da sede da empresa —ironicamente localizada no bairro de Afogados— ser tomado por dois metros de água naquele trágico julho de 1975. E lá estavam os álbuns.
Meu auxiliar técnico, desesperado, tirava a água com um rodo. De repente, um barulho: o muro que circundava o córrego que passava ao lado desabou e uma onda de água veio sobre nós. Corremos para o primeiro andar para nos refugiar e, assim, ficamos nos alimentando de coco e farinha por dois dias até a água baixar”. Helio Rozenblit, filho do fundador da Rozenblit, que produziu o disco e viu a inundação, em entrevista ao jornal Estado de S. Paulo.
Mas nem tudo se perdeu. Longe do lamaçal, cerca de 300 cópias de acervo pessoal, destinadas aos músicos, sobreviveram na casa em que Lula Côrtes e a sua então companheira, a artista gráfica Kátia Mesel, dividiam em Beberibe (CE).
Outra parte desses cálices sagrados do colecionismo permaneceu encalhada em uma segunda residência, a de Thelma Ramalho, prima de Zé, que testemunhou um tipo curioso de alquimia: vinil virou ouro.
Parece história de colecionador, mas, hoje, uma cópia original em bom estado de “Paebirú” pode ser negociada em termos de R$ 10.000. No maior banco de dados de discos do mundo, o site Discogs, não há nenhuma delas à venda.
Esse valor posiciona o álbum acima de “Tim Maia Racional” e o coloca em pé de igualdade com “Louco por Você” (1961), primeiro e renegado trabalho de Roberto Carlos, que teve tiragem única de mil cópias.
Nem todo colecionador sabe: Mesmo com enchente do Capibaribe tendo devastado a fábrica, danificando a matriz de “Paêbirú” — o “negativo” do vinil —, uma segunda edição foi produzida pela mesma Rozenblit no ano seguinte. A empresa criou um novo corte a partir de um backup da fita original.
Acreditava-se até então que a master havia se perdido para sempre na enchente, mas anos depois o tesouro acabou reencontrado, intacto, repousando no alto de estantes de aço do arquivo da fábrica.
A segunda edição de 1976 é igualmente histórica, embora ligeiramente menos valiosa no mercado de discos. Sucesso comercial? O disco nunca desfrutou em nenhum momento.
Mas a verdade é que só conhecemos esta história cinematográfica por um motivo A magia de 'Paebirú' foi redescoberta fora do Brasil durante os anos 2000, em um movimento típico do hype colecionista, como ocorrera com diversas outras obras tão importantes quanto eclipsadas na música brasileira. A corrida pelo disco movimentou colecionadores principalmente na Europa e Japão. Diversas versões piratas em CD e LP pipocaram editadas por selos como Shadoks Music e Mr Bongo. E nunca nenhum artista envolvido viu a cor desse dinheiro.
Somente em 2019 o álbum ganhou relançamento oficial no Brasil pela Polysom, em vinil de 180 gramas, feito com masters originais. O preço do álbum duplo? R$ 250 sugeridos na época. Hoje, ele é encontrado a partir de R$ 320. Impossível falar de “pechincha”. Mas é como se fosse.
10 curiosidades sobre este clássico:
+ O título “Paêbirú” é inspirado no famoso Caminho do Peabiru, antiga rota indígena que ligava regiões do interior e litoral do Brasil ao Peru.
+ A grafia correta é como você leu acima, “Peabiru”, sem acentos e com a letra “e” à frente da “a”. Eram tempos pré-internet. Muito mais difícil checar informações.
+ Antes das gravações, Ramalho, Côrtes, Kátia e o fotógrafo Fred Mesel fizeram uma expedição à Pedra do Ingá, sítio arqueológico rochoso na Paraíba que conta com misteriosas inscrições rupestres entalhadas.
+ Lá, movidos a cogumelos e viagens lisérgicas, a dupla começou a se interessar pelo sincretismo religioso dos povos indígenas locais e pela na crença da entidade Sumé, mito criado antes da colonização portuguesa.
+ As histórias e mitologias que circundam a pedra inspiraram Zé Ramalho e Lula Côrtes, que posaram para as fotos em filme infravermelho que estão na capa e na arte do disco.
+ Cada um dos quatro lados de “Paêbirú” é baseado em um elemento: terra, ar, fogo e água.
+ Considerado um dos projetos mais livres e experimentais da nossa música, o álbum tem barulhos de pássaros, rios, sons de tricórdio (cítara marroquina) e até um pente tocado em folha de celofane por Alceu Valença.
+ Essa estética acabaria virando uma das marcas do movimento “udigrudi”, a psicodelia nordestina, de grupos como Ave Sangria e O Bando do Sol, Vários músicos da cena, e não só Alceu Valença, participaram do disco.
+ Apesar das qualidades artísticas das músicas, Zé Ramalho evita falar sobre o disco em entrevistas. Especula-se que a razão seja a má relação que ele manteve por anos com Lula e o fato de, na época, a imprensa não der dado atenção à obra. E nesse ponto ele está certo.
+ Tudo isso e muitos outros detalhes foram dissecados em um documentário imperdível, “Nas Paredes da Pedra Encantada”, de Cristiano Barros, que refez o caminho da dupla e radiografou a gênese de “Paêbirú”.

Leonardo Rodrigues, in uol.com.br/splash/coluna. Acesse aqui.

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