Quando
já estava doente e não sabia, comecei a me sentir suja, muito suja,
com precisão de expelir uma coisa que figurava uma bola preta me
empestando. Sentia como que um bicho grudado em minha nuca, me
dobrando o pescoço. Sol e tempo bom não mudavam meu ânimo, era
cinza sempre o tempo e o mundo, me sentia encardida, era ruim estar
em mim, um fastio sobreposto a uma ânsia que me punha em pedaços
sem serventia nenhuma. Parecia um demônio da raça dos imundos, a
coisa grudada em meu corpo. Tem piedade de mim foi o que mais rezei,
purifica-me, querubim, como a Isaías com o carvão ardente, lava-me
com o hissope, Senhor, purifica-me, purifica-me. Meu coração
aguentaria tamanho esforço para respirar? Alba me sugeriu fôssemos
à Capela da Bênção, onde a Elza Mirtes impunha as mãos com
grande resultado. Venci resistências fortes, a Elza Mirtes usava
brincos enormes, o adereço me parecia inadequado para a tarefa
extrema de tirar o bicho de mim. Mas fui. Alba é mesmo piedosa e
quase chorava de me ver tão amarrada. A Elza Mirtes se admirou muito
de eu aparecer, disse que a conversa seria ali mesmo, diante do
Santíssimo. Tenho pânico, comecei, e uma tristeza encardida e
grudenta, fui falando assustada com minha coragem de contar para a
mulher, a quem apenas cumprimentava, meu sofrimento secreto. O que
lhe aconteceu? Nada de especial, eu disse, só um medo enorme, só
isto e uma aflição que não me dá sossego, está tudo bem em casa,
filhos, marido. Fale o que lhe der vontade, o que lhe vier à cabeça,
ela falou sem impostação.
Estou
me lembrando de minha mãe, morreu num mês de setembro, a três
meses da minha formatura no ginásio, cercada de travesseiros, os
lábios muito roxos, puxando o ar, minhas tias, meu pai, meus irmãos
em volta. Eu voltava da escola e, assim que abri o portão, pressenti
o sinistro, o ruim da vida. O livro de reza ficou comigo, e tão alto
quanto ela pedindo ajuda eu rezava por ela na hora em que a vida mais
a horrorizava. Quando volta esta imagem, tenho a impressão de
recuperar o que disse naquele momento, segundo tia Ceição:
‘Olímpia, vai botar ao menos uma palha no pé, agora mesmo a casa
enche de gente.’ Me lembro do olhar dela, sem doçura, olhar de
mando e medo, ‘reza, Olímpia, reza, minha filha’, a oração dos
agonizantes. Fui tomada por grande susto e dificuldade, ali, diante
da Elza Mirtes. Coitada da minha mãe, tinha tristeza de me ver
descalça e a minutos de encontrar o julgamento divino cuidava para
que não me vissem com os pés no chão. Com que roupa estava eu?
Ainda de uniforme? De que tamanho era o meu cabelo? A Joana e a Graça
como estavam? E meu pai? Eu rezava no livro, meu pai pedia perdão,
as tias seguravam vela e crucifixo na mão de minha mãe. Era assim
que se morria? ‘Agora mesmo a casa enche de gente.’ Que olhar era
aquele? Onde guardei o livro, quando fechou os olhos e parou de
arfar? Para qual lugar da casa eu fui? Alberto estudava com os padres
em Coronas. Se não for prejudicar os estudos dele, ela disse pra tio
Dan, pode ir buscar o menino, quero ver ele. Coitada de minha mãe,
coitada, coitadinha dela, só um pote de ANTISARDINA, um santinho do
Coração de Jesus com a letra dela atrás. Só isso, gente? Era
muito crescida e me apropriei do que tinha de mais bonito, um
‘mantor’. Ela o adorava, pelas muitas vantagens que oferecia,
tampava qualquer trapo e lhe dava a aparência que merecia, mulher de
nobres feições, mulher distinta. Fiquei sem o capote, meu pai
entendeu de levar ele para a irmã de seo Narciso, muito mais
precisada que nós. Coitada de minha mãe, coitada, coitadinha, era
só o que eu sabia dizer. Você precisa perdoar sua mãe, a Elza
Mirtes falou. Perdoar? É, ela errou com você, por isso, por aquilo,
ia falando e eu só queria chorar de tanta compaixão por ela.
Cinquenta anos de sua morte e pela primeira vez me sentia a um passo
de minha mãe, quase a tocava. Você deve vir aqui mais vezes,
Olímpia. Abriu a Bíblia ao acaso e lá estava o texto lhe
confirmando o aconselhamento. Chamou a Alba que aguardava fora da
capela e as duas rezaram impondo as mãos sobre a minha cabeça. Saí
muito aliviada, a sensação de um encontro com minha mãe, aliviada
do bicho e da bola preta. Ia durar? Sei que a Elza Mirtes não é uma
charlatã, apesar de Deus usar até caloteiros em nosso socorro. Por
alguma razão não retornei. Mais tarde, quando encontrei minha
querida doutora, ela não me recriminou, até concordou em muitas
coisas com a Elza Mirtes. O que me levou a confiar nela foi ter me
dito, antes da bênção, que passava trabalho com um neto muito
descabeçado. Saber que não era do tipo felizinha me deu confiança.
Não era uma pregadora de televisão maquiada e sorridente, encara
que a vida dói. Quando Alberto chegou com tio Dan, a mãe já estava
no caixão, barriga muito alta, o neném não chegou a nascer.
Adélia Prado, in Quero minha mãe
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