Andávamos
sempre à procura de peças de madeira boa e direita para, com as
nossas raspadeiras de sílex, as transformar em lanças, com as quais
abatíamos facilmente caça miúda. A sua fraqueza, porém, sempre
fora a ponta. Mesmo para matar um pequeno animal era preciso estar
muito perto dele, porque a alguma distância, mesmo que pequena, a
ponta da lança tinha muito pouco poder de penetração. É difícil
chegar a quatro metros e meio de um cervo, e nós perdíamos mais
caça do que a que conseguíamos abater. As nossas lanças apenas
faziam ricochete no revestimento de animais maiores, e chegar perto
da maior parte deles era uma tarefa perigosa. O melhor estratagema
era atacar em bando e depois seguir os animais feridos até eles
estarem demasiado exaustos para lutar. Porém, às vezes, tudo o que
conseguíamos era segui-los até um leopardo ou um leão lhes deitar
as garras.
As
novas lanças endurecidas pelo fogo tornaram tudo diferente. Para a
zebra, por exemplo, elas eram letais a trinta metros, e nós
praticávamos regularmente com alvos a sessenta metros. Eu conseguia
acertar no olho de um crânio de zebra a cinquenta e cinco metros e o
Oswald a sessenta ou até setenta se a lança fosse boa.
Evidentemente, praticávamos com lanças rombas porque para endurecer
as pontas para a caça tínhamos que recorrer novamente ao fogo.
Depois de alguns arremessos as pontas ficavam rombas. Isto limitava
indubitavelmente a vantagem das novas armas, mas a sua introdução
generalizada foi seguida de um enorme incremento do nosso
abastecimento de comida. Já não andávamos tantas vezes gelados e
esfomeados.
Começamos
a caçar regularmente cavalos e zebras e, claro, sempre que tínhamos
hipótese disso, abatíamos também impalas, veados, kongonis,
antílopes, cefos, orix e carneiros. Aproximávamo-nos deles
furtivamente por entre a erva da altura de um homem que cobria a
planície, correndo curvados mas endireitando-nos para observar e
fixar a nossa presa. Embora as manadas colocassem sentinelas para as
avisarem da presença de perigo, esta capacidade de correr curvados e
de nos endireitarmos ou subir a árvores para nos orientarmos
funcionava a nosso favor. Só as girafas conseguiam ver por sobre a
erva alta melhor do que nós e, normalmente, descobriam-nos quando
íamos ainda a caminho. Então, a velocidade de que as suas pernas
eram capazes levava-as para bem longe do nosso alcance. Não
conseguíamos apanhá-las em grande número e tínhamos mais sorte
com os calicotherium cujos pescoços eram ligeiramente mais curtos
mas que, se estivessem feridos ou acossados, eram mais perigosos que
as girafas, porque podiam abrir-nos rasgões horríveis com os seus
chifres de grande envergadura. As novas lanças permitiam-nos também
caçar búfalos, mas eles são animais demasiado perigosos e, de
início, muitos caçadores perderam a vida por não conseguirem
espetar as lanças com a profundidade necessária. Ninguém corre
mais depressa que um búfalo mesmo com uma lança espetada no dorso.
Na
floresta, sempre caçáramos porcos, javalis, macacos, pequenos
antílopes e animais do mesmo gênero, mas agora também podíamos
atacar o enorme javali. Nos rios, experimentamos as novas lanças
contra crocodilos e hipopótamos, mas elas davam-nos pouca segurança
adicional nesses lugares perigosos, onde, tal como outros animais,
tínhamos muitas vezes que arriscar as nossas vidas por um golo de
água.
Imitando
os crocodilos, fazíamos emboscadas aos animais que vinham ao rio e a
charcos de água para beber. A observação do terror de um animal
cercado, enredando-se em matas de espinhos e afundando-se em pântanos
de papiros, deu-nos a ideia de construir armadilhas. O Pai estava
particularmente interessado nelas mas para nós, rapazes, não eram
assim tão interessantes, já que nos cabia a tarefa de cavar os
fossos para onde os animais deveriam cair. Cavar um fosso de três
metros e meio de profundidade por quatro em cada lado significa
remover mais de cinquenta metros cúbicos de terra, e isto não tem
muita piada quando o instrumento que temos para cavar é um pau com a
ponta endurecida pelo fogo, uma omoplata de cavalo e as mãos nuas.
No entanto, o Pai insistia em que o fizéssemos. O que ele apreciava
nas armadilhas, disse-nos, era a sua qualidade automática. “Bem
sei que é um trabalho duro”, concordou, “mas a ideia está
certa. Só precisamos de inventar um equipamento mais eficiente para
remover a terra”. No entanto, nunca o fizemos, e foi para nós um
alívio quando, mais tarde, ele teve a ideia de, com uma corda de
trepadeiras, suspender uma lança com a ponta para baixo, entre duas
árvores, de tal modo que a corda passasse à volta da lança e entre
as árvores, à altura exata das presas de um javali antes de ser
amarrada na posição correta de um dos lados. Quando o javali partia
a corda, aí vinha a lança espetando-se entre as suas espáduas. “A
origem do feedback”, disse o Pai enigmaticamente, e teria equipado
toda a floresta com o aparelho não fosse o risco de esquecermos as
suas localizações e cairmos nós próprios nele. Uma vez, o Tio
Vanya escapou por um triz e veio queixar-se.
Caçávamos
muito e longe, com uma nova autoconfiança nascida das nossas lanças
e da segurança da nossa caverna defendida pelo fogo. Quando
matávamos, esfolávamos e cortávamos a vítima aos bocados no
próprio local onde caía, banqueteando-nos com o sangue, os miolos e
as entranhas, ao som do alegre chip-chip-chip das facas de sílex
sendo afiadas por turnos. Depois, esquartejávamos o animal e
levávamos os bocados para casa sobre os ombros: eram troféus
vistosos comparados com coelhos, texugos, esquilos e pequenos
antílopes que, em tempos, haviam sido frequentemente as nossas
únicas presas. Com as lanças, facilmente afastávamos quaisquer
hienas que quisessem juntar-se a nós e podíamos transformar numa
vantagem para nós a guerra civil entre os animais. Procurávamos as
lutas entre rinocerontes ou elefantes na época de acasalamento e
dávamos o golpe final no animal vencido, ferido e exausto, após o
que a horda inteira se concentrava na carcaça, qual bando de
abutres, e comia dela durante um fim de semana inteiro. Os enormes
machados subiam e desciam enquanto as poderosas vértebras eram
cortadas e os enormes fêmures, tão maciços como os troncos de
árvore caídos na floresta, eram abertos à procura do seu rico
tesouro de tutano. Uma caça mais eficiente permitia às mulheres
ficarem mais tempo em casa em vez de seguirem os caçadores para
conseguirem a sua parte na matança. “O lugar das mulheres é na
caverna”, começou o Pai a dizer.
Nós
rapazes participávamos da caçada, não só porque éramos
necessários mas também porque o Pai achava que não havia qualquer
alternativa ao método direto em educação. Desde a mais tenra
idade, evidentemente, uma das nossas tarefas indiscutíveis era
lascar sílex. Do ponto de vista do Pai, um rapaz que não estivesse
realmente a dormir ou a caçar com o grupo devia estar entregue à
lascagem. Também achava que nunca era demasiado cedo para começar.
Quase imediatamente após o nascimento, eram colocados seixos em cada
uma das pequeninas mãos do bebé e, depois de engolir alguns, ele
rapidamente aprendia a bater com eles uns nos outros imitando os mais
crescidos.
— Nunca
esqueçamos, — dizia então o Pai —, que tudo depende da nossa
capacidade de enviesar os olhos. Embora tenhamos duas mãos e visão
estereoscópica, não nos seria possível lascar sem focar o olhar.
As
raparigas também tinham que lascar sílex.
— Uma
rapariga deve ser capaz de se sustentar a si própria, — dizia o
Pai —, mesmo nestes tempos. Uma rapariga que consegue obter uma
aresta realmente afiada num pedaço de obsidiana nunca terá
problemas em encontrar um companheiro ou uma boa refeição.
Assim,
a tarefa de lascar sílex nunca estava acabada, e o Pai nunca se
cansava de falar acerca dos pormenores importantes desta arte. Por
exemplo, quando nos queixávamos da fragilidade das arestas que
produzíamos com tanto esforço, ele encorajava-nos de imediato.
— Não
esqueçam — dizia-nos —, que a fragilidade das lascas tornou
possível a ascensão do Homem. Durante milhares de anos, os macacos
usaram ferramentas antes de pensarem em fabricá-las, e isto porque
uma lasca produzida acidentalmente proporciona frequentemente uma
peça com um bordo afiado, e tudo o que há a fazer é apanhá-la
para que seja nossa. Então, alguém deixou cair uma e viu como isso
acontece, e durante mais alguns milhares de anos a arte de fabricar
ferramentas resumiu-se a deixar cair um pedaço de sílex sobre uma
rocha e apanhar os bocados utilizáveis. Se vocês pensam que o que
estão a fazer é trabalho duro, então tentem produzir as vossas
raspadeiras dessa forma! Finalmente, em vez de deixar cair o sílex,
os homens começaram a bater nele, rodando o núcleo ao acaso por
entre golpes para descobrir a melhor face para o golpe seguinte. Foi
assim que todos nós começamos. Vocês sabem que não conseguimos
uma lasca decente em cada dez com este método. Os métodos modernos
acabaram com este desperdício de tempo e material. Agora removemos
uma lasca de um lado do núcleo – assim! — e depois usamos essa
superfície como plataforma para golpes de modo a conseguir novas
lascas assim! Uma! Duas! Três! Quatro! — que beleza! Veem agora
como as lascas são uniformes, e como é mais leve o golpe que é
preciso desferir no sílex? E podem variar a intensidade da força.
Levemente — assim! — para uma lasca, ou mais forte — assim! —
quando a superfície o exige. E agora, fazem favor, quero ver todas
essas lascas retocadas antes do almoço.
O
segundo grande departamento de educação era o estudo dos animais
que caçávamos e dos que nos caçavam a nós. Tínhamos que aprender
onde viviam, de que viviam, como passavam o tempo, que cheiros
produziam e que linguagem utilizavam. Desde a mais tenra idade éramos
capazes de reproduzir o rugido do leão, o pigarrear do leopardo, o
bumbum do avestruz, o trompetear do elefante, o bufar do rinoceronte
e o triste gemido da hiena. Aprendemos porque é que as zebras e os
cavalos, com pés tão ligeiros, se atreviam a relinchar tanto e
porque é que os impalas e as gazelas se mantinham tão calados. Em
segurança nas árvores, os macacos podiam conversar uns com os
outros, tal como nós o podíamos fazer, lança em riste, no chão,
mas as grandes manadas moviam-se silenciosamente, rodeadas de
inimigos. Aprendemos onde encontrar os ovos das tartarugas e dos
crocodilos e como roubar as pequenas crias nos ninhos dos pássaros.
Sabíamos como apanhar o escorpião e destruir a sua cauda antes de o
comer.
Também
estudamos economia botânica. Alguns frutos, fungos e raízes podiam
ser comidos; outros não. Durante toda a Idade da Pedra, pioneiros
tinham dado as suas vidas para descobrir exatamente quais eram uns e
outros. O instinto tornara-se demasiado atrofiado para nos avisar.
Tínhamos que aprender a diferença vital entre a raiz de mandioca
que alimentava e a que matava. Tínhamos que aprender quais eram os
frutos interditos e mantermo-nos afastados da árvore proibida, a
Aconcanthera abyssinica, cuja simples seiva era morte certa.
Quando
começamos a caçar o cavalo e a zebra com regularidade, começamos a
pensar nos grandes felinos menos como inimigos e mais como rivais e
até exemplos a seguir na mesma profissão. Observávamo-los em ação:
leopardos e chitas nas montanhas altas, leões e tigres
dentes-de-sabre nas planícies, pumas, ocelotes e caracais na selva e
nas árvores, e hienas por toda a parte. Não podíamos deixar de
ficar impressionados pela maneira como estavam equipados para a
perseguição: olhos que viam, bigodes sensitivos na escuridão,
garras retrateis para agarrar a presa e trepar às árvores, trinta
poderosos dentes, uma boa camuflagem para se aproximarem silenciosa e
furtivamente da presa e uma velocidade considerável, com uma
aceleração de ponta de mais de cem quilômetros por hora.
O
Pai admirava-os tanto como todos nós mas avisou-nos para não
exagerarmos.
— É
apenas especialização — disse-nos. — Máquinas soberbas com um
único propósito: caçar. Matam a caça com a máxima perfeição, e
essa é a sua fraqueza. Não há nada mais que possam fazer. Não
evoluirão muito mais, acreditem-me. Vocês podem pensar que o farão,
com toda aquela força e astúcia, mas eu duvido. Duvido mesmo muito.
Se a caça desaparecesse, eles passariam fome: não sobreviveriam à
base de cocos! Alguns deles já passaram mesmo os limites. Reparem no
tigre dentes-de-sabre. É capaz de dilacerar a jugular de um
rinoceronte, mas quem é que quer alimentar-se de rinoceronte?
Aqueles dentes, na maior parte do tempo, incomodam-no horrivelmente.
O tigre dentes-de-sabre tinha tudo a seu favor quando os animais eram
maiores do que o são agora, e não há dúvida de que matou
Brontops, Amebelodon, Megatherium e os outros antigos
mamíferos de que o meu pai me falava quando eu era criança. Os seus
sabres fizeram-no poderoso na terra quando a velocidade era muito
menor do que é agora mas, hoje em dia, ele passa metade do tempo a
tropeçar neles. Lembrem-se do que vos digo: ele, por exemplo, está
a caminho da extinção. Os outros talvez se aguentem por mais algum
tempo, mas chegará o dia em que virão pedir-nos os restos das
nossas refeições.
Rimo-nos
disto, mas o Pai abanou a cabeça.
— Podem
rir-se, mas ainda haveremos de reduzir o leão às suas devidas
proporções. Não estou a afirmar que não há outros animais que o
não possam fazer mais depressa e melhor. Mas seriam provavelmente
antropoides. Eu estou sempre alerta para esse perigo. Nunca se sabe o
que se anda a preparar por aí. De qualquer forma, o importante é
manter uma firme noção de alguns princípios sólidos e corretos. E
estou bastante seguro de que o princípio da especialização faz
parar a evolução, mais cedo ou mais tarde. No entanto, os animais
são fatalmente atraídos por ele. Reparem no velho calicotherium,
por exemplo. Ele não é um cavalo, um veado ou uma girafa. O seu
pescoço é demasiado curto para lhe permitir ver melhor que os
outros ou para chegar à folhagem mais alta das árvores quando as
grandes manadas comeram toda a erva. Mas é demasiado longo para que
possa fazer uso eficaz dos seus chifres. Não tem cascos adequados e,
por isso, não é capaz de uma verdadeira velocidade. Não é uma
coisa nem outra, e os verdadeiros especialistas vão empurrá-lo para
a extinção.
— Mas
nós também não somos nem uma coisa nem outra — disse eu.
Os
olhos baixos e salientes do Pai estavam pensativamente semicerrados.
— Lá
isso é verdade, meu rapaz, lá isso é verdade. Nós abandonamos as
árvores e tornamo-nos predadores. Porém, faltam-nos os dentes e a
velocidade dos felinos. Mesmo assim, a nossa força está em não
sermos especializados. Seria retrógrado voltarmos a andar sobre as
quatro patas e deixar crescer os caninos. Os gatos e os cães podem
caçar. Mas que mais podem fazer? Absolutamente nada.
— Mas,
Pai, quem é que quer fazer outras coisas? Perguntou o Oswald.
— Admito
que tu és um pouco especializado, Oswald — disse o Pai acidamente.
— Mesmo assim, gostaria que deixasses a tua mente primitiva meditar
ocasionalmente em assuntos mais elevados.
— Mas
o que mais há para fazer? — insistiu o Oswald.
— Espera
e verás — disse o Pai, comprimindo os lábios. — Espera e verás.
Roy Lewis, in Por que Almocei meu Pai
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