segunda-feira, 27 de junho de 2022

Por que Almocei meu Pai | 5


Andávamos sempre à procura de peças de madeira boa e direita para, com as nossas raspadeiras de sílex, as transformar em lanças, com as quais abatíamos facilmente caça miúda. A sua fraqueza, porém, sempre fora a ponta. Mesmo para matar um pequeno animal era preciso estar muito perto dele, porque a alguma distância, mesmo que pequena, a ponta da lança tinha muito pouco poder de penetração. É difícil chegar a quatro metros e meio de um cervo, e nós perdíamos mais caça do que a que conseguíamos abater. As nossas lanças apenas faziam ricochete no revestimento de animais maiores, e chegar perto da maior parte deles era uma tarefa perigosa. O melhor estratagema era atacar em bando e depois seguir os animais feridos até eles estarem demasiado exaustos para lutar. Porém, às vezes, tudo o que conseguíamos era segui-los até um leopardo ou um leão lhes deitar as garras.
As novas lanças endurecidas pelo fogo tornaram tudo diferente. Para a zebra, por exemplo, elas eram letais a trinta metros, e nós praticávamos regularmente com alvos a sessenta metros. Eu conseguia acertar no olho de um crânio de zebra a cinquenta e cinco metros e o Oswald a sessenta ou até setenta se a lança fosse boa. Evidentemente, praticávamos com lanças rombas porque para endurecer as pontas para a caça tínhamos que recorrer novamente ao fogo. Depois de alguns arremessos as pontas ficavam rombas. Isto limitava indubitavelmente a vantagem das novas armas, mas a sua introdução generalizada foi seguida de um enorme incremento do nosso abastecimento de comida. Já não andávamos tantas vezes gelados e esfomeados.
Começamos a caçar regularmente cavalos e zebras e, claro, sempre que tínhamos hipótese disso, abatíamos também impalas, veados, kongonis, antílopes, cefos, orix e carneiros. Aproximávamo-nos deles furtivamente por entre a erva da altura de um homem que cobria a planície, correndo curvados mas endireitando-nos para observar e fixar a nossa presa. Embora as manadas colocassem sentinelas para as avisarem da presença de perigo, esta capacidade de correr curvados e de nos endireitarmos ou subir a árvores para nos orientarmos funcionava a nosso favor. Só as girafas conseguiam ver por sobre a erva alta melhor do que nós e, normalmente, descobriam-nos quando íamos ainda a caminho. Então, a velocidade de que as suas pernas eram capazes levava-as para bem longe do nosso alcance. Não conseguíamos apanhá-las em grande número e tínhamos mais sorte com os calicotherium cujos pescoços eram ligeiramente mais curtos mas que, se estivessem feridos ou acossados, eram mais perigosos que as girafas, porque podiam abrir-nos rasgões horríveis com os seus chifres de grande envergadura. As novas lanças permitiam-nos também caçar búfalos, mas eles são animais demasiado perigosos e, de início, muitos caçadores perderam a vida por não conseguirem espetar as lanças com a profundidade necessária. Ninguém corre mais depressa que um búfalo mesmo com uma lança espetada no dorso.
Na floresta, sempre caçáramos porcos, javalis, macacos, pequenos antílopes e animais do mesmo gênero, mas agora também podíamos atacar o enorme javali. Nos rios, experimentamos as novas lanças contra crocodilos e hipopótamos, mas elas davam-nos pouca segurança adicional nesses lugares perigosos, onde, tal como outros animais, tínhamos muitas vezes que arriscar as nossas vidas por um golo de água.
Imitando os crocodilos, fazíamos emboscadas aos animais que vinham ao rio e a charcos de água para beber. A observação do terror de um animal cercado, enredando-se em matas de espinhos e afundando-se em pântanos de papiros, deu-nos a ideia de construir armadilhas. O Pai estava particularmente interessado nelas mas para nós, rapazes, não eram assim tão interessantes, já que nos cabia a tarefa de cavar os fossos para onde os animais deveriam cair. Cavar um fosso de três metros e meio de profundidade por quatro em cada lado significa remover mais de cinquenta metros cúbicos de terra, e isto não tem muita piada quando o instrumento que temos para cavar é um pau com a ponta endurecida pelo fogo, uma omoplata de cavalo e as mãos nuas. No entanto, o Pai insistia em que o fizéssemos. O que ele apreciava nas armadilhas, disse-nos, era a sua qualidade automática. “Bem sei que é um trabalho duro”, concordou, “mas a ideia está certa. Só precisamos de inventar um equipamento mais eficiente para remover a terra”. No entanto, nunca o fizemos, e foi para nós um alívio quando, mais tarde, ele teve a ideia de, com uma corda de trepadeiras, suspender uma lança com a ponta para baixo, entre duas árvores, de tal modo que a corda passasse à volta da lança e entre as árvores, à altura exata das presas de um javali antes de ser amarrada na posição correta de um dos lados. Quando o javali partia a corda, aí vinha a lança espetando-se entre as suas espáduas. “A origem do feedback”, disse o Pai enigmaticamente, e teria equipado toda a floresta com o aparelho não fosse o risco de esquecermos as suas localizações e cairmos nós próprios nele. Uma vez, o Tio Vanya escapou por um triz e veio queixar-se.
Caçávamos muito e longe, com uma nova autoconfiança nascida das nossas lanças e da segurança da nossa caverna defendida pelo fogo. Quando matávamos, esfolávamos e cortávamos a vítima aos bocados no próprio local onde caía, banqueteando-nos com o sangue, os miolos e as entranhas, ao som do alegre chip-chip-chip das facas de sílex sendo afiadas por turnos. Depois, esquartejávamos o animal e levávamos os bocados para casa sobre os ombros: eram troféus vistosos comparados com coelhos, texugos, esquilos e pequenos antílopes que, em tempos, haviam sido frequentemente as nossas únicas presas. Com as lanças, facilmente afastávamos quaisquer hienas que quisessem juntar-se a nós e podíamos transformar numa vantagem para nós a guerra civil entre os animais. Procurávamos as lutas entre rinocerontes ou elefantes na época de acasalamento e dávamos o golpe final no animal vencido, ferido e exausto, após o que a horda inteira se concentrava na carcaça, qual bando de abutres, e comia dela durante um fim de semana inteiro. Os enormes machados subiam e desciam enquanto as poderosas vértebras eram cortadas e os enormes fêmures, tão maciços como os troncos de árvore caídos na floresta, eram abertos à procura do seu rico tesouro de tutano. Uma caça mais eficiente permitia às mulheres ficarem mais tempo em casa em vez de seguirem os caçadores para conseguirem a sua parte na matança. “O lugar das mulheres é na caverna”, começou o Pai a dizer.
Nós rapazes participávamos da caçada, não só porque éramos necessários mas também porque o Pai achava que não havia qualquer alternativa ao método direto em educação. Desde a mais tenra idade, evidentemente, uma das nossas tarefas indiscutíveis era lascar sílex. Do ponto de vista do Pai, um rapaz que não estivesse realmente a dormir ou a caçar com o grupo devia estar entregue à lascagem. Também achava que nunca era demasiado cedo para começar. Quase imediatamente após o nascimento, eram colocados seixos em cada uma das pequeninas mãos do bebé e, depois de engolir alguns, ele rapidamente aprendia a bater com eles uns nos outros imitando os mais crescidos.
Nunca esqueçamos, — dizia então o Pai —, que tudo depende da nossa capacidade de enviesar os olhos. Embora tenhamos duas mãos e visão estereoscópica, não nos seria possível lascar sem focar o olhar.
As raparigas também tinham que lascar sílex.
Uma rapariga deve ser capaz de se sustentar a si própria, — dizia o Pai —, mesmo nestes tempos. Uma rapariga que consegue obter uma aresta realmente afiada num pedaço de obsidiana nunca terá problemas em encontrar um companheiro ou uma boa refeição.
Assim, a tarefa de lascar sílex nunca estava acabada, e o Pai nunca se cansava de falar acerca dos pormenores importantes desta arte. Por exemplo, quando nos queixávamos da fragilidade das arestas que produzíamos com tanto esforço, ele encorajava-nos de imediato.
Não esqueçam — dizia-nos —, que a fragilidade das lascas tornou possível a ascensão do Homem. Durante milhares de anos, os macacos usaram ferramentas antes de pensarem em fabricá-las, e isto porque uma lasca produzida acidentalmente proporciona frequentemente uma peça com um bordo afiado, e tudo o que há a fazer é apanhá-la para que seja nossa. Então, alguém deixou cair uma e viu como isso acontece, e durante mais alguns milhares de anos a arte de fabricar ferramentas resumiu-se a deixar cair um pedaço de sílex sobre uma rocha e apanhar os bocados utilizáveis. Se vocês pensam que o que estão a fazer é trabalho duro, então tentem produzir as vossas raspadeiras dessa forma! Finalmente, em vez de deixar cair o sílex, os homens começaram a bater nele, rodando o núcleo ao acaso por entre golpes para descobrir a melhor face para o golpe seguinte. Foi assim que todos nós começamos. Vocês sabem que não conseguimos uma lasca decente em cada dez com este método. Os métodos modernos acabaram com este desperdício de tempo e material. Agora removemos uma lasca de um lado do núcleo – assim! — e depois usamos essa superfície como plataforma para golpes de modo a conseguir novas lascas assim! Uma! Duas! Três! Quatro! — que beleza! Veem agora como as lascas são uniformes, e como é mais leve o golpe que é preciso desferir no sílex? E podem variar a intensidade da força. Levemente — assim! — para uma lasca, ou mais forte — assim! — quando a superfície o exige. E agora, fazem favor, quero ver todas essas lascas retocadas antes do almoço.
O segundo grande departamento de educação era o estudo dos animais que caçávamos e dos que nos caçavam a nós. Tínhamos que aprender onde viviam, de que viviam, como passavam o tempo, que cheiros produziam e que linguagem utilizavam. Desde a mais tenra idade éramos capazes de reproduzir o rugido do leão, o pigarrear do leopardo, o bumbum do avestruz, o trompetear do elefante, o bufar do rinoceronte e o triste gemido da hiena. Aprendemos porque é que as zebras e os cavalos, com pés tão ligeiros, se atreviam a relinchar tanto e porque é que os impalas e as gazelas se mantinham tão calados. Em segurança nas árvores, os macacos podiam conversar uns com os outros, tal como nós o podíamos fazer, lança em riste, no chão, mas as grandes manadas moviam-se silenciosamente, rodeadas de inimigos. Aprendemos onde encontrar os ovos das tartarugas e dos crocodilos e como roubar as pequenas crias nos ninhos dos pássaros. Sabíamos como apanhar o escorpião e destruir a sua cauda antes de o comer.
Também estudamos economia botânica. Alguns frutos, fungos e raízes podiam ser comidos; outros não. Durante toda a Idade da Pedra, pioneiros tinham dado as suas vidas para descobrir exatamente quais eram uns e outros. O instinto tornara-se demasiado atrofiado para nos avisar. Tínhamos que aprender a diferença vital entre a raiz de mandioca que alimentava e a que matava. Tínhamos que aprender quais eram os frutos interditos e mantermo-nos afastados da árvore proibida, a Aconcanthera abyssinica, cuja simples seiva era morte certa.
Quando começamos a caçar o cavalo e a zebra com regularidade, começamos a pensar nos grandes felinos menos como inimigos e mais como rivais e até exemplos a seguir na mesma profissão. Observávamo-los em ação: leopardos e chitas nas montanhas altas, leões e tigres dentes-de-sabre nas planícies, pumas, ocelotes e caracais na selva e nas árvores, e hienas por toda a parte. Não podíamos deixar de ficar impressionados pela maneira como estavam equipados para a perseguição: olhos que viam, bigodes sensitivos na escuridão, garras retrateis para agarrar a presa e trepar às árvores, trinta poderosos dentes, uma boa camuflagem para se aproximarem silenciosa e furtivamente da presa e uma velocidade considerável, com uma aceleração de ponta de mais de cem quilômetros por hora.
O Pai admirava-os tanto como todos nós mas avisou-nos para não exagerarmos.
É apenas especialização — disse-nos. — Máquinas soberbas com um único propósito: caçar. Matam a caça com a máxima perfeição, e essa é a sua fraqueza. Não há nada mais que possam fazer. Não evoluirão muito mais, acreditem-me. Vocês podem pensar que o farão, com toda aquela força e astúcia, mas eu duvido. Duvido mesmo muito. Se a caça desaparecesse, eles passariam fome: não sobreviveriam à base de cocos! Alguns deles já passaram mesmo os limites. Reparem no tigre dentes-de-sabre. É capaz de dilacerar a jugular de um rinoceronte, mas quem é que quer alimentar-se de rinoceronte? Aqueles dentes, na maior parte do tempo, incomodam-no horrivelmente. O tigre dentes-de-sabre tinha tudo a seu favor quando os animais eram maiores do que o são agora, e não há dúvida de que matou Brontops, Amebelodon, Megatherium e os outros antigos mamíferos de que o meu pai me falava quando eu era criança. Os seus sabres fizeram-no poderoso na terra quando a velocidade era muito menor do que é agora mas, hoje em dia, ele passa metade do tempo a tropeçar neles. Lembrem-se do que vos digo: ele, por exemplo, está a caminho da extinção. Os outros talvez se aguentem por mais algum tempo, mas chegará o dia em que virão pedir-nos os restos das nossas refeições.
Rimo-nos disto, mas o Pai abanou a cabeça.
Podem rir-se, mas ainda haveremos de reduzir o leão às suas devidas proporções. Não estou a afirmar que não há outros animais que o não possam fazer mais depressa e melhor. Mas seriam provavelmente antropoides. Eu estou sempre alerta para esse perigo. Nunca se sabe o que se anda a preparar por aí. De qualquer forma, o importante é manter uma firme noção de alguns princípios sólidos e corretos. E estou bastante seguro de que o princípio da especialização faz parar a evolução, mais cedo ou mais tarde. No entanto, os animais são fatalmente atraídos por ele. Reparem no velho calicotherium, por exemplo. Ele não é um cavalo, um veado ou uma girafa. O seu pescoço é demasiado curto para lhe permitir ver melhor que os outros ou para chegar à folhagem mais alta das árvores quando as grandes manadas comeram toda a erva. Mas é demasiado longo para que possa fazer uso eficaz dos seus chifres. Não tem cascos adequados e, por isso, não é capaz de uma verdadeira velocidade. Não é uma coisa nem outra, e os verdadeiros especialistas vão empurrá-lo para a extinção.
Mas nós também não somos nem uma coisa nem outra — disse eu.
Os olhos baixos e salientes do Pai estavam pensativamente semicerrados.
Lá isso é verdade, meu rapaz, lá isso é verdade. Nós abandonamos as árvores e tornamo-nos predadores. Porém, faltam-nos os dentes e a velocidade dos felinos. Mesmo assim, a nossa força está em não sermos especializados. Seria retrógrado voltarmos a andar sobre as quatro patas e deixar crescer os caninos. Os gatos e os cães podem caçar. Mas que mais podem fazer? Absolutamente nada.
Mas, Pai, quem é que quer fazer outras coisas? Perguntou o Oswald.
Admito que tu és um pouco especializado, Oswald — disse o Pai acidamente. — Mesmo assim, gostaria que deixasses a tua mente primitiva meditar ocasionalmente em assuntos mais elevados.
Mas o que mais há para fazer? — insistiu o Oswald.
Espera e verás — disse o Pai, comprimindo os lábios. — Espera e verás.

Roy Lewis, in Por que Almocei meu Pai

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