Encolhida
no chão, você parece uma trouxa que algum mendigo largou aí, sem
temer que o roubassem porque não há nada de valor nesse saco sujo.
É você. O pó que se levanta das sandálias da multidão — a
multidão que corre para ver o espetáculo — cobre-a por completo.
Sua boca está cheia de areia e uma pedra pontiaguda é cravada em
seu esterno. Alguém a pisoteia. Você continua imóvel. Um cachorro
faminto, selvagem, vem cheirá-la. Você continua imóvel. Você
pensa em veneno, em raízes amargas assassinas, nas presas afiadas
das serpentes do deserto que tantas vezes você segurou, pensa em
acabar com tudo rápido.
Você
sabe, a única coisa que sabe, é que não poderá viver sem ele. O
que não sabe, e nunca saberá, é se ele a amou. Isso é algo que só
sabe quem foi amado algum dia. Você não é uma dessas pessoas. Sua
mãe foi embora deixando-a catarrenta, magra e nua. Um animalzinho
molhado na porta da casa de seus avós.
Ela
foi embora procurar homens, diziam eles, dizia a gente da aldeia
cobrindo o canto da boca. Usavam para falar dela essa palavra que
depois, não muito mais tarde, foi sua, coube em você como um
vestido justo, contagiou-a como uma doença.
Você
não sabe, também, que sua mãe queria que você se salvasse dela,
disso que você herdou e que se parece tanto com uma graça quanto
com uma maldição.
A
primeira profecia que você cumpriu foi a de “você é igual à sua
mãe”. Batiam em você para que não fosse igual à sua mãe
enquanto gritavam você é igual à sua mãe. Certa noite, por volta
dos seus doze, treze anos, você se atrasou na volta de sua ocupação
favorita: recolher raízes, ervas e flores para depois, em casa,
fervê-las, amassá-las, misturá-las e ver o que acontecia. Você
voltou correndo com o alforje cheio, levantando poeira com suas
sandálias, sujando a barra da saia e as pessoas, ao verem-na passar
toda suada, ofegando, balançavam a cabeça como dizendo
“pobrezinha”, como dizendo “outra como a mãe”.
Ela,
sua avó, ele, seu avô, lhe bateram tanto que você perdeu para
sempre a audição do ouvido direito e agora manca de uma das pernas.
Com uma vara de loureiro — aquela vara de loureiro — rasgaram
suas costas, as nádegas, o peito diminuto, até deixar tiras de pele
penduradas, como uma laranja meio descascada.
Gritavam,
gritavam, e açoitavam, açoitavam. À luz do fogo, suas sombras
pareciam gigantes furiosos. Você fechou os olhos. Você se
enrodilhou no chão, apertou a pedra cinza que sua mãe atara ao seu
pescoço e disse para si mesma “que eles me matem, ou então vão
ver”.
Mas
eles não te mataram.
Você
despertou de madrugada quase se afogando com seu próprio sangue.
Você cuspiu, vomitou e, com uma dor agonizante, conseguiu se erguer.
Devagar, muito devagar, cobriu com um de seus emplastros cada ferida
e as envolveu com panos. Você foi até seu alforje, procurou um
recipiente e ali, no escuro, misturou com o almofariz várias ervas e
raízes, acrescentou algumas gotas de um líquido que brilhou —
amarelo — à luz da lua. Seus olhos, também amarelos, se
iluminaram como os de um gato.
Isso
ninguém viu.
Você
pôs o recipiente com a mistura no fogo, sussurrou algumas palavras —
que soaram como um cântico, uma reza, um feitiço —, cobriu com a
palma da mão sua pedra cinza, pegou suas coisas e foi embora dali.
Quando
encontraram seus avós, eles estavam secos, desidratados, esticados
como as cobras ocas que às vezes aparecem nas veredas.
Diziam,
aqueles que os encontraram, que estavam marrons e que tinham os olhos
saltados das órbitas e as mandíbulas inumanamente abertas.
Diziam,
aqueles que os encontraram, que pareciam ter morrido de terror.
Seu
paradeiro se perdeu durante muitos anos. Mais uma menina perdida num
mundo de meninas perdidas. Alguns diziam que você havia se unido aos
nômades e percorria as aldeias dançando e mostrando os peitos por
algumas moedas. Outros asseguravam que você tinha matado uns homens
que queriam roubar o pingente — a pedra — de sua mãe. Outros
ainda estavam convencidos de que você havia morrido leprosa,
destroçada e sozinha. Que alguém que conhecia alguém que conhecia
alguém a tinha visto agonizante num leprosário, trancada numa
masmorra com outros assassinos, dançando sem roupa diante de homens
excitados.
Na
verdade, ninguém se importava com sua vida e a única coisa que
queriam saber era que diabos você tinha feito com seus avós para
que amanhecessem secos como galhos.
Começaram
a chamá-la também de outra coisa, como sua mãe, e a usavam, usavam
seu nome, para assustar as crianças.
Um
dia lhe disseram que ali, naquela terra maldita que você tinha
jurado não voltar a pôr os pés, havia um homem especial e que você
devia conhecê-lo. Você nunca poderá dizer claramente por quê, mas
desfez o caminho percorrido durante tantos anos. Você andou por
quilômetros e quilômetros, despedaçou suas sandálias e chegou
certa manhã, descalça, o cabelo emaranhado, a pele queimada.
Ele
parecia estar esperando por você. Pediu uma tina de água limpa e se
ajoelhou para lavar, com uma delicadeza quase feminina, seus pés
sujos e cheios de chagas. Você nunca poderá dizer claramente por
quê, talvez porque esse tenha sido o único ato de ternura que já
lhe haviam dedicado — a você, criatura das surras, filha da
brutalidade, princesa das noites que terminam com as mulheres
sangrando —, mas naquele instante você tomou a decisão de
oferecer sua vida a ele, de fazer o que ele quisesse, o que fosse, de
ser barro nas mãos dele, ser sua, sua escrava.
Ele
perguntou seu nome e o repetiu com uma doçura que fez com que você
chorasse as primeiras lágrimas, suas lágrimas, menina, que se
tornariam lenda. Então ele estendeu a mão e secou-lhe as lágrimas
e disse — sim, você não está inventando, ele disse — que a
amava.
Disse:
eu te amo.
Já
não havia como voltar atrás. A órfã, a humilhada, a maltratada, a
aleijada, a meio surda, a puta, a assassina, a leprosa já não
existiam — nunca mais existiriam.
Era
você diante dele.
E
você diante dele era uma mulher extraordinária. A melhor das
mulheres.
E
se um cachorro, que é um ser de pouco entendimento, segue fielmente
a quem lhe acaricia a cabeça e o lombo, como você não ia segui-lo
até mesmo ao inferno? Como não faria até o impossível para
fazê-lo feliz, para ajudá-lo a cumprir suas promessas? Assim, como
um cachorro agradecido, você se sentava aos pés dele e ficava
observando-o, escutando-o enlevada, louca de amor, como se da boca
dele saíssem uvas, mel, jasmim, pássaros.
Às
vezes, enquanto ele contava suas doces histórias de pescadores e
pastores, você apertava a pedra cinza de seu peito e apareciam mais
vinte, trinta, quarenta pessoas a escutá-lo como você: com devoção
infantil, como se ele fosse um mago, como se de sua boca saíssem
pássaros e mel.
Você
sabia que isso o fazia feliz.
E
então, muita gente começou a segui-lo. Ele mudou. As histórias se
tornaram receitas; os relatos, ordens. Ele começou a falar de coisas
que você não entendia, que na verdade ninguém entendia, coisas
mágicas, santas, talvez sacrilégios. Para você, nada disso
importava.
Os
outros já não deixavam que você o tocasse — com exceção da
túnica, das sandálias —, e ele já não visitava sua tenda com
tanta frequência, com tanta urgência. Restava a lembrança de seu
cheiro de homem do deserto que não saía de suas narinas, de seu
corpo, de seu vestido. Um cheiro que nunca desapareceu, que até o
último instante de sua vida a fazia tremer. Ele era seu, agora um
enviado dos céus, dizia, mas seu. E você era dele. Por isso você
apertou a pedra em seu pescoço quando ficaram sem vinho naquelas
bodas e você fez aparecer peixe e pão onde não havia nada mais que
pedras e areia — porque em sua solidão, você aprendeu que a água,
as pedras, a areia lhe obedeciam.
Por
isso você também aplicou, sem que ninguém a visse, sem que ninguém
quisesse vê-la, seu unguento nos olhos brancos do mendigo, que os
abriu e disse “milagre”, e você se escondeu no sepulcro daquele
homem para inflar seus pulmões mortos com o sopro da vida — na
ocasião você invocou forças que não devia, a morte é a morte,
mas é muito tarde para se arrepender — e conseguiu que o cadáver
se levantasse, que andasse e que ele se preenchesse — mais, cada
dia mais — de glória.
Mas
isto você não ia permitir. Que ele morresse. Não: que se deixasse
matar. Isso você não ia permitir. Você tentou impedir, falou-lhe
do unguento, das pedras que se tornaram alimento, do vinho que era
água, dos olhos brancos, vazios, daquele mendigo, do cadáver que
andou, da pedra que você carrega no pescoço, das forças que você
invocou, infinitamente mais poderosas que você e ele. Mas ele não
acreditou em você. Ele a pôs de lado com violência — ele, com
violência —, e você caiu, e ali do chão, você olhou para ele e
viu deus. Esse homem era seu deus. E ele disse que você era
mentirosa, disse que você era impostora, disse que você era louca,
e ele falou:
— Afaste-se
das minhas vistas, mulher.
Se
um cachorro permanece na porta daquele que lhe dá migalhas de pão e
mostra as presas, disposto a despedaçar qualquer um para protegê-lo,
como você não ia defendê-lo até mesmo de si mesmo, de sua própria
convicção? Por isso, no dia em que o levaram e lhe fizeram todos
aqueles horrores, você apertou a pedra e o céu se carregou até se
converter numa massa de lava cinzenta, e seu pranto — ai, seu
pranto — fez com que as pessoas há milhares de quilômetros
começassem a chorar, fazendo amor, lavrando a terra, lavando a roupa
num rio, em sonhos.
Quando
a cabeça dele pendeu sobre o peito, inerte, você se enrodilhou toda
e as pessoas pisotearam-na e um cachorro selvagem a farejou e você
pensou em venenos e quis morrer ali mesmo, mas então você começou
a chorar. E seu pranto, mulher de lágrima viva, fez uma poça na
qual você molhou seu vestido como se fosse um sudário, e nua, sem
que ninguém a visse, sem que ninguém quisesse vê-la, você se
enfiou no sepulcro no qual, horas depois, o depositariam:
esquelético, ensanguentado, mortíssimo.
Com
suas costas pregadas na pedra fria, seu corpo pálido, de moribunda,
você o viu se levantar e sorriu para ele. Usava no pescoço a pedra
cinza, ou seja, usava sua força, seu sangue, sua seiva. A luz que
entrou no sepulcro quando ele mexeu a pedra lhe permitiu vê-lo pela
última vez: belo, divino, sobrenaturalmente amado.
Ele
olhou para você, você está quase certa de que ele olhou para você,
e com seu último alento — você estava morrendo — você disse
algo a ele, você o chamou, estendeu a mão. A palavra amor pendia no
teto como uma estalactite. Mas ele continuou andando ao encontro de
seus fanáticos que gritavam, que se jogavam na areia de joelhos, que
cobriam o rosto com as mãos.
E
não voltou os olhos para trás.
María Fernanda Ampuero, in Rinha de galos
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