segunda-feira, 27 de junho de 2022

O Lobo do Mar | Capítulo 1


Não sei bem por onde começar, embora às vezes ponha toda a culpa em Charley Furuseth, só de brincadeira. Ele tinha uma casa de veraneio em Mill Valley, à sombra do monte Tamalpais, mas a ocupava somente no inverno, quando ia para lá descansar e aliviar a cabeça lendo Nietzsche e Schopenhauer. Quando chegava o verão, ele optava por ficar suando no calor e na poeira da cidade, se matando de trabalhar. Não fosse meu hábito de visitá-lo toda tarde de sábado e ficar por lá até a manhã de segunda-feira, eu não teria, nessa manhã de uma segunda-feira de janeiro em particular, ido parar a bordo de uma embarcação na baía de São Francisco.
Não que a embarcação fosse insegura, pois o Martinez era um vapor novo, fazendo a sua quarta ou quinta travessia entre Sausalito e São Francisco. O perigo estava na névoa espessa que encobria o porto, o que, para mim, um homem de terra firme, não era motivo de apreensão. Na verdade, lembro do entusiasmo sereno com que assumi posição na dianteira do convés superior, debaixo da casa do leme, deixando o mistério da névoa tomar conta da minha imaginação. Soprava uma brisa fria, e permaneci algum tempo sozinho na penumbra úmida — embora não de todo só, pois sentia vagamente a presença, bem acima, na cabine envidraçada, do piloto e do homem que devia ser o capitão.
Lembro de ter pensado como era conveniente essa divisão do trabalho que me poupava de estudar neblinas, ventos, marés e navegação para visitar meu amigo que morava do outro lado da baía. Era bom que os homens se especializassem, ponderei. O conhecimento específico do piloto e do capitão bastava para servir milhares de pessoas que sabiam tão pouco quanto eu a respeito do mar e da navegação. Por outro lado, em vez de dedicar minhas energias a aprender tudo que é tipo de coisa, eu podia concentrá-las no estudo de algumas coisas em particular, por exemplo o lugar de Poe na literatura americana — tema, por sinal, de um artigo meu na última edição da Atlantic. Ao embarcar e percorrer a cabine de passageiros, meus olhos ávidos flagraram um cavalheiro robusto que lia uma Atlantic aberta bem na página do meu artigo. E ali estava ela de novo, a divisão do trabalho, o conhecimento especializado do piloto e do capitão permitindo que o cavalheiro robusto lesse meu conhecimento especializado de Poe enquanto o transportavam em segurança de Sausalito a São Francisco.
Um sujeito com o rosto vermelho saiu da cabine batendo a porta com violência e veio pisando firme pelo convés, interrompendo minhas reflexões, embora eu tenha conseguido anotar o tópico mentalmente para usá-lo num futuro artigo que pensei em chamar de “A necessidade de liberdade: uma defesa do artista”. O sujeito do rosto vermelho deu uma rápida olhada na casa do leme, contemplou o nevoeiro, cruzou o convés mancando de um lado a outro (devia ter pernas artificiais) e parou ao meu lado com as pernas bem afastadas e uma expressão de intensa satisfação no rosto. Não me enganei ao supor que tinha passado a vida no mar.
Esse é o tipo de clima que faz a gente ficar com os cabelos brancos antes da hora — ele disse, apontando com a cabeça para a casa do leme.
Não achei que fosse nada muito espinhoso — respondi. — Parece simples como o abecê. Eles sabem a direção pela bússola, a distância e a velocidade. Nada mais que uma certeza matemática, eu diria.
Espinhoso! — ele bufou. — Simples como o abecê! Certeza matemática!
Ele pareceu aumentar de tamanho e se inclinou para trás, olhando para mim.
E essa maré vazante passando pelo Golden Gate? — perguntou, ou melhor, berrou. — Tá ou não tá recuando rápido? Qual é a corrente, hein? Escuta só isso. É uma boia de sino, e a gente já tá quase passando por cima dela! Vão alterar o curso, veja.
O toque triste de um sino brotou do nevoeiro e pude ver o piloto girando o leme com urgência. O sino, que parecia estar bem à frente, agora repicava do nosso lado. A sirene rouca da balsa tinha começado a soar e de vez em quando se ouviam outras sirenes atravessando o nevoeiro.
Isso é algum tipo de balsa — disse o recém-chegado, indicando uma sirene à direita. — E isso! Tá ouvindo? É um apito de boca. Deve ser uma gabarra. Olho vivo, você aí pilotando a gabarra! Ah, como eu esperava. Vai cair o inferno na cabeça de alguém!
A balsa invisível tocava uma sirene atrás da outra e o apito respondia em desespero.
Agora vão se cumprimentar e tentar sair do caminho um do outro — continuou o homem do rosto vermelho assim que os apitos cessaram.
Seu rosto se iluminava e seus olhos lampejavam de excitação enquanto ele traduzia as sirenes e os apitos em linguagem articulada.
Isso à esquerda, agora, é a sirene de um vapor. E tá ouvindo o sujeito com um sapo na garganta? Arrisco dizer que é uma escuna a vapor chegando de Heads, forcejando contra a maré.
Um apito estridente disparou como louco em algum lugar bem próximo da proa. Soaram os gongos no Martinez. Nossas rodas de pá deixaram de girar por um instante, suspendendo o ruído pulsante, e depois voltaram a trabalhar. O apito estridente, como o canto de um grilo em meio aos rugidos das feras, atravessou o nevoeiro ao nosso lado e foi ficando cada vez mais fraco. Olhei para o meu companheiro, esperando um esclarecimento.
Uma dessas lanchas intrépidas — ele disse. — Dá quase vontade de afundar as miseráveis! Causam ainda mais problemas. E pra que servem? Qualquer tapado sobe numa delas e vai pra cima e pra baixo ensurdecendo todo mundo com seu apito, forçando o mundo inteiro a prestar atenção nele, porque ele vem chegando e não é capaz de cuidar do próprio caminho. Porque ele vem chegando! E você tem que prestar atenção também! Direito de passagem! Um mínimo de decência! Ele não sabe o que significa isso!
Achei aquela raiva injustificada um tanto divertida, e enquanto ele mancava de um lado a outro me deixei envolver pelo romantismo do nevoeiro. E era mesmo romântico: o nevoeiro como a sombra cinzenta do mistério infinito, a cobrir os rodopios da Terra, e os homens como meras partículas de luz e faísca, amaldiçoados por um gosto insano pelo trabalho, invadindo o coração do mistério montados em corcéis de madeira e aço, abrindo caminho às cegas pelo Invisível com o brado e o clangor de seus discursos confiantes, enquanto em seus corações pesam a incerteza e o medo.
A voz de meu companheiro me trouxe de volta à realidade e me fez abrir um sorriso. Eu também estivera tateando e tropeçando às cegas enquanto julgava cavalgar no coração do mistério de olhos bem abertos.
Ei, tem alguém vindo na nossa direção — ele estava dizendo. — Consegue ouvir? Está vindo rápido. A passo firme. Acho que ainda não escutou a gente. O vento está contra ele.
O vento frio soprava em nosso rosto e eu podia ouvir a sirene com clareza, um pouco ao lado e à frente.
Balsa? — perguntei.
Ele fez que sim com a cabeça e acrescentou:
Do contrário, não estaria nessa marcha. — Ele deu uma risadinha. — O pessoal lá em cima tá começando a ficar nervoso.
Olhei para cima. O capitão tinha esticado a cabeça e os ombros para fora da casa do leme e mirava intensamente o nevoeiro, como se pudesse penetrá-lo com pura força de vontade. Tinha uma expressão ansiosa no rosto, assim como meu companheiro, que mancara até a balaustrada e agora olhava na direção do perigo invisível com a mesma intensidade.
Então tudo aconteceu com uma rapidez inconcebível. O nevoeiro se dispersou como se dividido por uma cunha, e a proa de um barco a vapor emergiu arrastando grinaldas de névoa dos dois lados, como algas no focinho do Leviatã.8 Pude ver a casa do leme e um homem de barbas brancas parcialmente inclinado para fora, apoiado nos cotovelos. Vestia um uniforme azul e lembro de ter reparado em como ele estava aprumado e tranquilo. Sua tranquilidade, naquelas circunstâncias, era terrível. Tinha abraçado o Destino, vinha de mãos dadas com ele, e calculara o impacto com frieza. Permaneceu inclinado e nos lançou um olhar calmo e pensativo, como se quisesse determinar o ponto exato da colisão, sem dar bola para o que nosso piloto, pálido de fúria, berrava:
Pronto, você conseguiu o que queria!
Em retrospecto, percebo que o comentário era óbvio demais para merecer réplica.
Encontre alguma coisa e segure firme — me disse o homem do rosto vermelho. Sua fanfarrice tinha desaparecido por completo e ele dava a impressão de ter sido contaminado por aquela calma sobrenatural. — E preste atenção nas mulheres gritando — disse num tom agourento que me pareceu quase amargo, como se ele já houvesse passado por uma experiência daquelas.
Os barcos colidiram antes que eu pudesse seguir o conselho. Devemos ter sido atingidos a meia-nau, pois não vi coisa alguma. O estranho barco a vapor tinha saído de meu campo de visão. O Martinez adernou bruscamente, em meio ao estrondo do madeirame estalando e partindo. Caí de nariz no piso molhado, e antes de conseguir me erguer ouvi os gritos das mulheres. Tenho certeza de que foi aquele som horripilante, que desafiava qualquer descrição, que me fez entrar em pânico. Lembrei dos coletes salva-vidas armazenados na cabine, mas ao me aproximar da porta fui varrido por uma manada selvagem de homens e mulheres. Não recordo bem o que aconteceu nos minutos seguintes, mas lembro claramente de puxar os coletes salva-vidas de suportes acima da cabeça enquanto o homem do rosto vermelho os prendia aos corpos daquelas mulheres histéricas. Essa lembrança é tão distinta e nítida como qualquer fotografia que já vi. Ainda hoje vejo o quadro: as bordas dentadas do buraco na lateral da cabine, pelo qual a névoa cinzenta se revolvia em espirais; os assentos estofados vazios, sinais de fuga repentina, tais como pacotes, bolsas de mão, guarda-chuvas e cachecóis; o cavalheiro robusto que estivera lendo meu artigo, enfiado em cortiça e lona, com a revista ainda em mãos, me perguntando com monótona insistência se eu achava que corríamos perigo; o homem do rosto vermelho mancando bravamente com suas pernas artificiais e afivelando coletes em cada um que chegava; e, por fim, a balbúrdia de mulheres gritando.
Era isso, os gritos das mulheres, o que mais me dava nos nervos. Também deve ter dado nos nervos do homem do rosto vermelho, pois guardo outra fotografia que nunca me sairá da mente. O cavalheiro robusto começa a enfiar a revista no bolso do sobretudo e a olhar em volta com curiosidade. Uma massa de mulheres amontoadas, com os rostos repuxados e lívidos e as bocas escancaradas, berra como um coro de almas penadas enquanto o homem do rosto vermelho, a essa altura já roxo de raiva e agitando os braços no alto como se lançasse raios, grita:
Calem a boca! Vamos, calem a boca!
Lembro que a cena me fez cair no riso, e no instante seguinte percebi que eu também estava ficando histérico. Afinal de contas, essas mulheres eram minhas semelhantes, como minha mãe e minhas irmãs, tementes à morte e apegadas à vida. E lembro que o som que elas produziam era como o de porcos sendo carneados, uma analogia vívida que me encheu de horror. Essas mulheres capazes de manifestar as emoções mais sublimes, a compaixão mais calorosa, estavam aos berros e com as bocas escancaradas. Queriam viver, estavam impotentes como ratos na ratoeira e berravam.
O horror da cena me forçou a sair para o convés. Estava enjoado e fui me sentar num banco. Com a visão nublada, via homens correndo e gritando enquanto trabalhavam para descer os botes. A cena casava com as descrições que se encontram nos livros. As talhas emperraram. Nada funcionava. Um dos botes desceu sem os bujões, cheio de mulheres e crianças, e logo também estava cheio d’água e emborcou. Outro bote tinha descido só de um lado e estava abandonado dessa maneira, pendurado por uma das talhas. Não havia rastro do estranho barco a vapor que provocara o desastre, embora eu tivesse escutado alguns homens dizendo que ele certamente enviaria botes para nos socorrer.
Desci ao convés inferior. O Martinez afundava rápido, pois a água já estava muito perto. Uma porção de passageiros estava pulando no mar. Outros, já dentro d’água, imploravam para serem trazidos novamente a bordo. Ninguém lhes dava atenção. Alguém gritou que estávamos afundando. Fui engolfado pelo pânico e empurrado ao mar por uma onda de corpos. Não sei bem como caí, mas soube na mesma hora por que razão os que já estavam na água queriam retornar a bordo. A água estava tão gelada que doía. Senti uma pontada imediata e aguda, como se tivesse me queimado com fogo. Chegou à medula. Era como a garra da morte. O choque e a angústia da situação me fizeram engasgar e encher os pulmões de água antes que o colete salva-vidas me puxasse de volta à superfície. O gosto do sal invadiu minha boca e o líquido abrasivo estreitou minha garganta e meus pulmões.
Mas o que mais me afligia era o frio. Tinha a sensação de que não sobreviveria mais que alguns minutos. Pessoas lutavam e se debatiam à minha volta. Gritavam chamando umas às outras. Mas também ouvi o barulho de remos. Era evidente que o estranho barco a vapor enviara seus botes. À medida que o tempo ia passando eu me admirava por ainda estar vivo. Não sentia nada nos membros inferiores, e uma dormência congelante começou a envolver meu coração e se infiltrar nele. Pequenas ondas com maldosas cristas espumantes quebravam repetidamente sobre minha cabeça e invadiam minha boca, ocasionando novos paroxismos sufocantes.
Os ruídos começaram a se confundir, mas um último coro desesperado de gritos distantes me informou que o Martinez tinha acabado de afundar. Algum tempo depois, não saberia dizer quanto, voltei a mim e comecei a ter medo. Eu estava sozinho. Já não escutava chamados e gritos, somente o barulho estranhamente oco e reverberante das ondas no meio do nevoeiro. O pânico da multidão, dentro do qual compartilhamos uma espécie de interesse comum, não é tão terrível quanto o pânico solitário; era este o pânico que eu sentia agora. Para onde as correntes estavam me levando? O homem do rosto vermelho havia dito que a correnteza se afastava do estreito de Golden Gate. Sendo assim, será que eu estava sendo carregado para o mar aberto? E esse salva-vidas que me fazia flutuar? Não podia se desmanchar a qualquer momento? Eu tinha ouvido dizer que fabricavam essas coisas com papel e caniços ocos que se encharcavam com facilidade e perdiam todo o poder de flutuação. E eu não sabia nem nadar cachorrinho. Estava abandonado, flutuando em meio ao que parecia ser uma vastidão primordial cinzenta. Confesso que me entreguei a desvarios e comecei a berrar alto como as mulheres e a espancar a água com meus punhos dormentes.
Não tenho noção de quanto tempo isso durou, porque acabei apagando, e minhas lembranças não são maiores do que as de uma pessoa depois de um sono doloroso e agitado. Quando recobrei os sentidos, foi como se tivessem transcorrido séculos. Acima de mim, surgindo da névoa, vi a proa de uma embarcação e três velas triangulares sobrepostas de maneira engenhosa e infladas pelo vento. A proa vinha rasgando a água com borbotões de espuma, e eu parecia bem no seu caminho. Tentei gritar, mas estava exausto demais. A proa passou rente e por pouco não me acertou, jogando uma onda por cima da minha cabeça. Em seguida o costado negro e comprido da embarcação começou a passar tão perto de mim que eu poderia tê-lo tocado com a mão. Tentei alcançá-lo para me agarrar à madeira com as unhas, mas meus braços estavam pesados e sem vida. Tentei gritar outra vez, mas a voz não saiu.
A popa da embarcação passou rápido, e nesse meio-tempo despencou no vale entre duas ondas. Vislumbrei um homem em pé diante do timão e outro que parecia apenas fumar um charuto. Percebi a fumaça saindo de seus lábios no momento em que ele virou a cabeça lentamente na minha direção e observou a superfície. Foi um olhar indiferente e impremeditado, uma dessas coisas casuais que os homens fazem quando não têm a obrigação imediata de fazer nada, mas agem porque estão vivos e precisam fazer alguma coisa.
Mas a vida e a morte estavam naquele olhar. Vi a embarcação ser engolida pelo nevoeiro. Vi as costas do homem ao timão e a cabeça do outro homem girando, girando bem devagar, enquanto seu olhar percorria a água em minha direção, totalmente por acaso. Seu rosto guardava uma expressão ausente, como se ele estivesse entregue a devaneios, e temi que seus olhos pudessem pousar em mim e ainda assim não me ver. Mas seus olhos pousaram em mim e olharam direto nos meus, e ele me avistou, pois avançou até o timão, empurrou o outro homem para o lado e começou a dar voltas e voltas na roda, uma mão depois da outra, ao mesmo tempo que gritava ordens. A embarcação pareceu se realinhar na tangente do rumo anterior e quase instantaneamente saiu de vista nevoeiro adentro.
Senti que estava perdendo a consciência e tentei reunir toda a minha força de vontade para combater o vazio e a escuridão asfixiantes que assomavam a meu redor. Pouco tempo depois ouvi o som de remos se aproximando e os chamados de um homem. Quando chegou bem perto ele vociferou, irritado:
Por que diabos prendeu o grito?
Devia estar falando comigo, pensei, e então o vazio e a escuridão me encobriram.

Jack London, in O Lobo do Mar

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