Guimarães
Rosa escreveu sobre um jardim abandonado. “Sem gente, virara-se em
matagalzinho, sílvula, pequena brenha. À expansa, nos canteiros
surgiam bruscas espécies, viajadas no ar: a daninha formosa, a meiga
praga, os capins que entrementes pululam...”.
Lembrei-me
então de um haicai de Bashô, também sobre um jardim abandonado:
Na
velha casa
que
abandonei
as
cerejeiras florescem.
Era
assunto de uma conversa com uma amiga, quando ela se lembrou do filme
O jardim secreto. Fiquei com vontade de contá-lo por ser
muito bonito, baseado em um clássico da literatura inglesa.
São
quatro os personagens principais: uma menina que fica órfã e vai
morar na casa do tio, uma daquelas casas de campo inglesas que mais
se parecem com palácios, cercada por uma infinidade de jardins
floridos; um menino que nascera lá mesmo e conhecia todos os
segredos do lugar; um outro menino que era mantido na cama –
dizia-se que era doente e que, para curar-se, deveria ficar na cama,
sem fazer esforço, num quarto escuro e de janelas fechadas, para o
vento não entrar; e, como não poderia deixar de ser, uma governanta
truculenta encarregada de tomar conta do menino supostamente doente.
O
menino que ali nascera levou sua amiguinha para conhecer tudo que
havia, mas encontraram uma coisa misteriosa para a qual ele não teve
explicações. Era um muro alto, de forma circular, fechado em si
mesmo, que não tinha porta de entrada. Toda a parede do muro estava
coberta de hera, sinal de que fazia muito tempo que ninguém entrava
lá.
Lá
dentro, depois se soube, havia um jardim selvagem que em outros
tempos havia sido o mais belo jardim da propriedade. Era o jardim do
dono da casa, que passava longos tempos ali com a esposa a quem muito
amava, no meio das flores e dos perfumes. Num canto do jardim havia
um balanço, brinquedo de que todo mundo gosta.
Aconteceu,
entretanto, uma tragédia (não me lembro bem o que foi) que tirou a
vida da esposa amada. O marido, dilacerado pela dor, trancou o jardim
para que ninguém entrasse e o abandonou. Haverá melhor símbolo
para um coração dilacerado que um jardim abandonado e selvagem?
Mas
o menino e a menina ficaram mordidos de curiosidade e começaram e
explorar a hera que cobria o muro, até que encontraram uma porta com
uma fechadura. Mas eles não tinham a chave! Puseram-se então numa
atividade de detetives, examinando todas as gavetas, todas as caixas
da casa, todos os chaveiros, até que a encontraram. Tinham em mãos
a chave que lhes abriria o jardim secreto! E foi o que fizeram.
Selvagem,
abandonado – mas absolutamente maravilhoso. Passaram, secretamente,
a cuidar do jardim. Havia todo tipo de espinhos e de ervas daninhas,
mas havia também árvores gigantescas que se alongavam para os céus.
Foi
então, e só então, que começaram a ouvir gemidos num quarto da
casa, um quarto em que lhes era vedado entrar. Aproveitando-se da
ausência da governanta, esgueiraram-se para dentro do quarto e
conheceram um menino magro, triste, esquálido, no escuro, longe do
vento. Bolaram então um plano: sequestrar o menino e levá-lo para
visitar o jardim secreto. E esse foi o início da cura do menino, da
restauração do jardim e do retorno da alegria para aquele espaço
fechado, que desde então ficou aberto.
O
jardim fechado e abandonado é símbolo da tristeza, da morte do
amor. As plantas selvagens, as pragas, os animais peçonhentos tomam
conta de tudo. E aquele menino doente era um jardim fechado, doente
pela ausência da beleza. A beleza dá vida. O jardim é o símbolo
da vida e do amor. Foi por isso que o primeiro ato de Deus foi
plantar um jardim.
Lá,
no alto de uma montanha de Minas, há um jardim. Quem o visse teria
de dizer: “Que belo!”. Porém agora está meio abandonado, do
jeito que Guimarães Rosa descreveu. Mas não tem importância, não.
Vou procurar a chave que deixei não sei onde. E, enquanto procuro,
olho para as árvores. E, à semelhança de Bashô, escrevo o meu
haicai:
E
no jardim que abandonei
um
pinheiro e um jequitibá
fazem
cócegas nas nuvens…
Rubem Alves, in Cantos do Pássaro Encantado
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