quarta-feira, 29 de junho de 2022

O incivil mestre de cerimônias Kotsuké no Suké

O infame deste capítulo é o incivil mestre de cerimônias Kotsuké no Suké, aziago funcionário que motivou a degradação e a morte do senhor da Torre de Ako e não quis se matar como um cavalheiro quando a vingança apropriada o cominou. É homem que merece a gratidão de todos os homens, porque despertou preciosas lealdades e foi a negra e necessária ocasião de uma empresa imortal. Uma centena de romances, de monografias, de teses doutorais e de óperas comemoram o fato — para não falar das efusões em porcelana, em lápis-lazúli estriado e em laca. Até o versátil celuloide serve para isso, já que a História Doutrinal dos Quarenta e Sete Capitães — tal é o seu nome — é a mais repetida inspiração do cinema japonês. A minuciosa glória que essas ardentes atenções afirmam é algo mais que justificável: é imediatamente justa para qualquer um.
Sigo a redação de A. B. Mitford, que omite as contínuas distrações que a cor local produz, e prefere dar atenção ao movimento do glorioso episódio. Essa boa falta de “orientalismo” permite suspeitar que se trata de uma versão direta do japonês.

O CORDÃO DESATADO

Na esmaecida primavera de 1702, o ilustre senhor da Torre de Ako teve de receber e agasalhar um emissário imperial. Dois mil e trezentos anos de cortesia (alguns mitológicos) tinham complicado angustiosamente o cerimonial da recepção. O emissário representava o imperador, mas à maneira de alusão ou de símbolo: matiz que não era menos improcedente acentuar que atenuar. Para impedir erros muito facilmente fatais, um funcionário da corte de Yedo precedia-o na qualidade de mestre de cerimônias. Longe da comodidade cortesã e condenado a uma villégiature nas montanhas, que deve ter lhe parecido um desterro, Kira Kotsuké no Suké dava, sem graça, as instruções. Às vezes, aumentava até a insolência o tom magistral. Seu discípulo, o senhor da Torre, procurava dissimular essas chacotas. Não sabia revidar e a disciplina lhe vedava toda violência. Uma manhã, porém, o cordão do sapato do mestre se desatou e este lhe pediu que o reatasse. Foi o que fez o cavalheiro com humildade, mas com indignação interior. O incivil mestre de cerimônias disse-lhe que, na verdade, ele era incorrigível, e que só um grosseiro era capaz de dar um nó tão desajeitado. O senhor da Torre sacou a espada e lhe desferiu um golpe. O outro fugiu, apenas com a testa rubricada por um tênue fio de sangue… Dias depois o tribunal militar proferia sentença contra o agressor, condenando-o ao suicídio. No pátio central da Torre de Ako ergueram um estrado de feltro vermelho e nele se mostrou o condenado: entregaram-lhe um punhal de ouro e pedras, e ele confessou publicamente sua culpa e foi se despindo até a cintura e abriu a própria barriga com duas feridas rituais e morreu como um samurai; os espectadores mais distantes não viram sangue porque o feltro era vermelho. Um homem encanecido e cuidadoso decapitou-o com a espada: o conselheiro Kuranosuké, seu padrinho.

O SIMULADOR DA INFÂMIA

A Torre de Takumi no Kami foi confiscada; seus capitães, debandados; sua família, arruinada e obscurecida; seu nome, exposto à execração. Um boato quer que, na mesma noite em que se matou, quarenta e sete de seus capitães deliberaram no cume de uma montanha e planejaram, com toda a precisão, o que se produziu um ano mais tarde. A verdade é que devem ter procedido entre demoras justificadas e que alguns daqueles concílios teve lugar, não no cume difícil de uma montanha, mas numa capela num bosque, medíocre pavilhão de madeira branca, sem outro adorno a não ser a caixa retangular que contém um espelho. Tinham sede de vingança e a vingança deve ter lhes parecido inalcançável.
Kira Kotsuké no Suké, o odiado mestre de cerimônias, fortificara sua casa, e uma nuvem de arqueiros e de esgrimistas custodiava seu palanquim. Contava com espias incorruptíveis, pontuais e secretos. Mais do que a ninguém, espreitavam e vigiavam o pretenso capitão dos vingadores: Kuranosuké, o conselheiro. Este se deu conta por acaso e fundou o projeto de vingança sobre esse dado.
Mudou-se para Kyoto, cidade insuperável em todo o império pela cor de seus outonos.
Deixou-se arrebatar pelos lupanares, pelas casas de jogo e pelas tabernas. Apesar das cãs, acotovelou-se com rameiras e com poetas, e até com gente pior. Uma vez o expulsaram de uma taberna e amanheceu adormecido no umbral, a cabeça estatelada num vômito.
Um homem de Satsuma reconheceu-o e disse com tristeza e com ira: “Não é este, porventura, aquele conselheiro de Asano Takumi no Kami, que o ajudou a morrer e que, em vez de vingar seu senhor, se entrega a deleites e à vergonha? Oh, tu, indigno do nome de Samurai!”.
Pisou-lhe o rosto adormecido e cuspiu nele. Quando os espias denunciaram aquela passividade, Kotsuké no Suké sentiu um grande alívio.
Os fatos não pararam aí. O conselheiro despediu a mulher e o filho mais novo, e comprou uma amante num lupanar, famosa infâmia que alegrou o coração e relaxou a temerosa prudência do inimigo. Este acabou por despachar a metade de seus guardas.
Numa das noites atrozes do inverno de 1703, os quarenta e sete capitães encontraram-se num jardim abandonado dos arredores de Yedo, perto de uma ponte e da fábrica de baralhos. Iam com as bandeiras de seu senhor. Antes de empreender o assalto, avisaram os vizinhos que não se tratava de um atentado, mas de uma operação militar de estrita justiça.

A CICATRIZ

Dois bandos atacaram o palácio de Kira Kotsuké no Suké. O conselheiro comandou o primeiro, que atacou a porta da frente; o segundo, seu filho mais velho, que ia completar dezesseis anos e que morreu naquela noite. A história sabe os diversos momentos daquele pesadelo tão lúcido: a descida arriscada e pendular pelas escadas de corda, o tambor do ataque, a precipitação dos defensores, os arqueiros postados no terraço, o reto destino das flechas rumo aos órgãos vitais do homem, as porcelanas infamadas pelo sangue, a morte ardente que depois é glacial; os impudores e as desordens da morte. Nove capitães morreram; os defensores não eram menos valentes e não quiseram se render. Pouco depois da meia-noite toda a resistência cessou.
Kira Kotsuké no Suké, razão ignominiosa daquelas lealdades, não aparecia. Procuraram-no por todos os cantos daquele comovido palácio e já desesperavam de encontrá-lo quando o conselheiro notou que os lençóis estavam ainda mornos. Voltaram a procurar e descobriram uma janela estreita, dissimulada por um espelho de bronze. Embaixo, de um patiozinho sombrio, olhava para eles um homem de branco. Uma espada trêmula estava em sua direita. Quando desceram, o homem entregou-se sem lutar. Riscava-lhe a testa uma cicatriz: velho desenho do aço de Takumi no Kami.
Então, os sangrentos capitães lançaram-se aos pés do homem execrado e disseram-lhe que eram os oficiais do senhor da Torre, de cuja perdição e de cujo fim ele era o culpado, e pediram-lhe que se suicidasse, como um samurai deve fazê-lo.
Em vão propuseram aquele decoro a seu espírito servil. Era varão inacessível à honra; de madrugada tiveram de degolá-lo.

O TESTEMUNHO

Já satisfeita sua vingança (mas sem ira e sem agitação e sem dó), os capitães dirigiram-se ao templo que guarda as relíquias de seu senhor.
Num caldeirão levam a incrível cabeça de Kira Kotsuké no Suké e se revezam para cuidar dela. Atravessam os campos e as províncias, à luz sincera do dia. Os homens os bendizem e choram. O príncipe de Sendai quer hospedá-los, mas respondem que já faz dois anos que seu senhor os aguarda. Chegam ao obscuro sepulcro e oferecem a cabeça do inimigo.
A Suprema Corte emite seu veredicto. É o esperado: foi-lhes outorgado o privilégio do suicídio. Todos o cumprem, alguns com ardente serenidade, e repousam ao lado de seu senhor. Homens e crianças vêm rezar ao pé do sepulcro daqueles homens tão fiéis.

O HOMEM DE SATSUMA

Entre os peregrinos que acodem, há um rapaz poeirento e cansado que deve ter vindo de longe. Prosterna-se diante do monumento de Oishi Kuranosuké, o conselheiro, e diz em voz alta: “Eu te vi estendido na porta de um lupanar de Kyoto e não pensei que estavas meditando a vingança de teu senhor, e te julguei um soldado sem fé e te cuspi no rosto. Vim dar-te satisfação”. Disse isso e cometeu harakiri.
O prior condoeu-se de sua valentia e deu-lhe sepultura no lugar onde os capitães repousam.
Esse é o fim da história dos quarenta e sete homens leais — salvo que não tem fim, porque os outros homens, nós que não somos talvez leais mas que jamais vamos perder de todo a esperança de sê-lo, continuaremos a honrá-los com palavras.

Jorge Luis Borges, in História universal da infâmia

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