Amanhecendo
o sol dava em desverde de rochedos e pedregulho, fazia soledade, de
repente, silêncio. Ventava, porém. Era ali lugar para pasmos;
estava-se também perto das nuvens. Ele é que não podia retroceder.
Voavam gaviões. Jenzirico nunca imaginara ter de matar um homem e
vir se esconder na Serra.
De
noite Izidro ao topo escalvado o guiara, dizendo que lá em seguro
viviam certos fugidos criminosos; surpreendia-o agora ser um deles.
Muito fino respirava. Tinha de resguardar mochila e saco, para
descanso, dormir mesmo pudesse; numa reentrância, quase gruta, se
agasalhara do ar. Diante avistava penhasqueira, a pique, prateleiras
de pedra. Só perigos o esperassem, repelia pensamentos, ninguém
está a cobro da doideira de si e dos outros. Ali era um alpendre.
Das
fendas do paredão, a intervalos, apareciam pequenos entes, à
espreita, os mocós. Jenzirico preservava chapéu na cabeça.
Dispunha apenas de espingarda e faca, o revólver botara fora, após
o susto do ato. Izidro voltaria, certo, com mais coisas, conselhos,
comida, pelo tempo que lhe cabia parar aqui. Mesmo a Serra estava nos
arrabaldes do mundo. Seu ânimo se sombreou. Zèvasco, tranca-ruas,
ele tivera de a tiro acabar, por própria justa defesa, é quando a
gente se estraga. Viu que temia menos a lei que caso de desforra dos
parentes; aprumou-se e andou. Os mocós assoviavam sumindo-se nas
luras.
Precisava
de conhecer o situado: o chão, em que permeio os burgaus rareava
grama, o facheiro, cardos; tufos de barbacena e arnica cerrando o
adro pedrento. De lá devia um pouco descer. Sobrestado, tardador,
quis escolher qual rumo, mão em arma. Jenzirico... — ele súbito
se advertiu, vez primeira atentava em seu nome, vasqueiro, demais
despropositado. Se benzeu, sacou de ombros, tudo sucedia por modo de
mentira.
Depassou
volumes de rochas erguidas e lajes em empilho, pisava alecrins, o
sassafrás-serrano, abeirava despenhadeiros. Ia topar de perto os
outros definidos foragidos, se dizia que plantavam mandiocal, milhos,
deparando com esses não havia de estranhar o acaso. De pau em-pé,
só se notando ainda candeias, bolsas-de-pastor, alguma que uma
tipuana. Pássaros cantavam feito sabiás, vai ver sabiás mesmos. Em
mente de olhos ele aprendia o caminho, ali era já chão mole, catou
para provar mangabas caidiças. Entanto estranhava o que avistava —
não o feitio dos espaços, mas o jeito dele mesmo enxergar —
afiado desenrolado. Até assim ramas e refolhagem verdeando com luz
de astúcias. Agora, altas árvores.
Sustou-se
por rumor, mas só de espavento: as brujajaras. Teve de querer rir
simples. Desaprazível a Serra não era, piava o lindo-azul, jeojeou
o bico-miúdo; embora convindo voltar: caçadores e seus cachorros
frequentavam os campestres das vertentes. Entortado espiava. De temer
a gente tinha de fazer costume.
Inda
então andou mais. Deu com miriquilho de vala, ajoelhou-se, bebia
água e sol. Mas — no relancear — viu! Desregulado enxergara, a
sombra, assomo de espectro? Por trás de buranhém e banana-brava, um
homem, nu, em pelo.
Ninguém,
nem. O ruído nenhum, rastro não se dando de achar. Correu, de
través levantada a espingarda, rolou quase por pirambeira, chegou à
meia-gruta frente ao mocozal. Caindo se sentou, com restos de tremer,
sentia no oco da boca o tefe do coração. Só apalpou a cabeça: o
chapéu, de toda aba, ele perdera.
Jenzirico
mais nem pôde que assar em brasas carne-seca; faltava café, tomou
cachaça. Virava falseio, divago, a visão de antes: senão as
brujajaras, as aves pintadas e listradas de amarelo ou branco, fracas
no esvoaçar, rabos trescompridos. Apurado caçou e não achou o
chapéu, pouca sorte. Devia já arrancar feixes de capim, para cama,
enrolado em cobertor, noite por noite. Precavia-se ficando no limpo
do pedregal, mesmo lá divisara cobra, por essas é que revinham a
acauã e o enorme gavião-roxo: um perto dele pousou em penha,
escuro, escancaradas as asas.
Dormitou.
Desagrado eram os guinchos dos mocós, por igual agadanhados, no bico
das águias aves. Tudo se despercebia. O mocó, bicho esquisito, que
sai a meio de entre pedras: — Có, có, có... — sem defesa.
Tonteava a velocidade das nuvens para oeste ou este. De fatos mal
acontecidos, de jeito nenhum queria lembrar, com farinha também
comeu dentada de rapadura. Trepou em árvore, deixando em baixo o
paletó; desceu — ele ali mais não estava.
Houvesse
aí reinadios macacos, esses qualquer trem surripiam! De tantas
tramoias Izidro nem lhe dera esboço, a Serra avultava, esconderija,
negando firmeza. As estrelas mesmas se aproximavam. De dia o calor,
na regência do sol, as fragas amareladas alumiavam, montanhitância,
só em madrugadas e tardes se sofria o enfrio e vento. Os homiziados
outros prosperavam quilombo, em confim de macegal e matos,
velhacoutos; tivesse um o ousio de aqueles ir procurar, por
companhia? A gente tem de temer a gente. Jenzirico sempre receava
acender o fogo, alguém se instruísse do lumaréu. Mas rebém as
lavaredas de canela-de-ema e candeia o aquentavam, permanecido no
esconso. Despertou — ouvindo espirro humano.
Salteado
avançou derredor os vultos pedrouços, seguia o que não via, por
trás de qualquer instante, inimigo o observava. O chão nenhuma
calcadura marcava, aquele nem era chão, pedroenga, ondeonde os
chatos cactos, dependuradas as vagens secas da tipuã, o
jacarandá-de-espinho balançando douradas grandes flores. De novo o
mocoal, pedreira cinzenta. — Cooó! cóoo... — escutando. Teria
disposição de repetir morte? Matar era a burra ação, tão
repentina e incerta, que fixe quase não se crê nem se vê, semelha
confuso ato de espetáculo, procedido longe, por postiças mãos.
Bateu-lhe o arrepio, doentemente, a sede, o sol; acabara a cachaça.
Então, ele mesmo era quem tinha espirrado?
Veio,
penoso se despiu, entrado na lagoazinha, água-de-grota. Em febre se
esqueceu, desconheceu as horas, até outra calafriagem. Concebia um
pressentir. Deu fé: roupa, espingarda, alpercatas — tudo
desaparecido.
Jenzirico
molhado se arrastou, doía de amedrontado, até a suas pedras
moradias. Nu chorando ele fechava os olhos, com vergonha da solidão.
Medo. Esperou o de vir, pavor, era como os transes. Ele remexia no
podre dos pensamentos.
Tão
então. — Matei, sim... — gritou, padecidamente,
confessava: ter atirado no perverso Zèvasco, que na rua escura o
agredira, sem eis nem pois; e fugido, imediato, mais de nada se
certificando... Escutasse-o o ermo, ninguém? Clamou, assim mesmo
alto e claro falou, repetia, o quanto de si mesmo o livrasse, provia
algum perdão.
Porém,
para repuxo e sobressalto. Viu, enfim, no sacudimento: aquele, o
qual! Semelhante homem — trajado sabido, enchapelado — de
suspapés, olhava-o, bugiava? O indivíduo — solerte vivo de
curiosidades. Ia investir. Mas inesperado se afastou, com passos,
expedido, campou no mundo. Virou o já acontecido.
Tornado
a si, após, Jenzirico tiritou, variava de querer qualquer calhau
pontudo ou um pau: pelos mocós, que à noitinha descem das frinchas
pedredas para caminhar, os coelhos-ratos. Vai, o frio de grimpa fazia
o tamanho do medo. Ventava por um canudo.
Até
que, a retorno do tempo, chamavam-lhe o nome. Izidro e Pedroandré,
eram os dois, mesmo montando mulas: — Que há? Introduzido
nos capins o achavam. E diziam o desassombro: Zèvasco não morrera,
na ocasião. — Agora, sim... — morto estava. Sujeito
sandeu aparecera, direto para o exterminar, a toda a lei. Semelhante
antigo homem, um Jinjibirro, em engraçadas encurtadas roupas,
chapelão; o que, de havia muitos anos, levara sumiço, desertor
serrão, revel por intimado de crime, ainda que se sabendo, depois,
que nem não era o exato assassino.
— Tòvasco
vingou o irmão, à faca ainda pegou o estúrdio reaparecido, o
derribou, porém se foi também, com muito barulho... De vez e
revez, os terríveis estavam terminados.
Jenzirico
pedia o de que se revestir, e voltar para o mundo sueto, ciente só
de mais fortes fazêres, trouxesse um mocó, por estripar, trem único
que aqueles dias caçara, num dali e dalém, coitado, alto, no meio
da Serra, em pedra e brenha.
Guimarães Rosa, in Tutameia
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