Aos
dezesseis anos matei meu professor de Lógica. Alegando legítima
defesa — e qual defesa seria mais legítima? — logrei ser
absolvido por 5 votos contra 2, e fui morar sob uma ponte do Sena,
embora nunca tenha estado em Paris.
Deixei
crescer a barba em pensamento, comprei um par de óculos para míope,
e passava as noites espiando o céu estrelado, um cigarro entre os
dedos. Chamava-me então Adilson, mas logo mudei para Heitor, depois
Ruy Barbo, depois finalmente Astrogildo, que é como me chamo ainda
hoje, quando me chamo.
A
primeira mulher que possuí foi sob a ponte do Sena, em pleno coração
do meu Paris imaginário; e ainda me lembro de que ela me sorria com
uns dentes que refletiam as estrelas e as lâmpadas do cais
adormecido, e dizia-me coisas numa língua que eu não conhecia.
Paguei-lhe à vista, e subi eufórico em direção a uma rua de onde
vinham sons de uma mandolinata inenarrável, e que se esvanecia à
medida que eu me aproximava, e que acabou por desaparecer de todo.
Sentei-me no chão, aturdido, acendi um cigarro e deixei que ele
fumasse por si mesmo, e depois morri tranquilamente, dentro da noite
calma.
Quando
despertei, já um gari me estendia o último jornal da tarde, e pude
ler então que uma grande hecatombe havia acontecido sobre a cidade
de Melbourne, na Austrália, justamente enquanto eu dormia. Lavei meu
rosto com o pranto, entreguei o jornal a um menino cego e saí
correndo pela primeira rua que encontrei pela frente, até deparar
com a estátua do marechal Joffre montado a cavalo.
No
dia seguinte, como a guerra houvesse rebentado, apresentei-me a um
general de divisão que encontrei espairecendo pelo Bois de Bolougne,
e ele foi muito gentil para comigo, dando-me uma corneta e cinco mil
francos para comprar um uniforme. Com a corneta toquei o Danúbio
Azul, mas em surdina, e com os cinco mil francos fui a uma sessão de
cinema (um filme de Clara Bow, se não me engano) e dei o resto a um
mendigo que me pareceu mais honesto do que os outros — do que eu,
pelo menos. À margem do Sena pus-me a pensar sobre as incertezas da
vida e o absurdo da guerra recém-deflagrada entre o Japão e a
China, até que o sono me jogasse de novo de encontro às pedras, as
mãos espalmadas como as de um cadáver.
Tudo
isso do meu passado eu conto para que se possa ter uma ideia exata da
minha situação presente, depois que me deram por excêntrico e me
jogaram neste hotel de luxo onde os garçons, o gerente e o
subgerente andam todos de branco, e têm também os dentes brancos e
não vermelhos ou amarelos como toda gente. Conto, também, porque o
dia aqui para mim tem setenta e duas horas, e às vezes mais até, e
eu necessito ocupar-me com qualquer coisa que não sejam os mosquitos
da sala ou a minha coleção de palitos de fósforo, de há muito
superada e já vendida a um nababo hindu que mora no quarto ao lado.
Descobri que, escrevendo a história da minha vida, antes que a
escrevam os outros ou que não a escreva ninguém, estarei prestando
um serviço enorme não só à cultura, por isso que –
(Fui
obrigado a interromper estas lucubrações para tomar um prato de
sopa que me trouxe a gentil senhora do gerente ou do subgerente do
hotel — de qualquer forma uma senhora respeitável e vesga, que às
vezes me toma a temperatura pelo simples prazer de me ser agradável.
Mas a sopa estava bastante amarga, ou assim me pareceu pelo menos).
Mas
eu dizia, se não estou equivocado, que, finda a guerra
sino-finlandesa, fui preso como espião moscovita por causa de minhas
barbas patriarcais e malcheirosas, e fui submetido a um conselho de
guerra composto de 15.000 generais, todos eles fardados, que me
absolveram unanimemente e me repatriaram ao meu país de origem. Qual
esse país fosse, nem eles nem eu sabíamos, de forma que voltei
tranquilamente a dormir sob as pontes de diversos rios da Europa, os
quais eu já conhecia de vista através das aulas de Geografia que me
dava o meu professor de ginásio, ao tempo em que eu ainda teimava em
aprender as coisas. Dniester, Reno, Vístula, Guadalquivir, Elba,
Nitra, Ródano, etc., etc., são nomes que se tornaram familiares aos
meus ouvidos de tanto eu ouvi-los murmurar eles mesmos, e não pobres
mestres-escolas diante de ensebados mapas grudados à parede: a sua
cantilena por muito tempo substituiu o doce acalento de minha mãe na
pátria desconhecida, que de resto nunca cheguei a conhecer, pois
nunca fui criança.
Foi
por essa época que aprendi a tocar berimbau com um professor do
Conservatório de Varsóvia, herr Hepsteimm, e quando também resolvi
fazer a minha primeira comunhão, por absoluto estado de fome. Desse
aprendizado resultou-me a oportunidade de vir a ser mais tarde
nomeado conselheiro musical na corte de Luís II da Baviera, o mesmo
que tinha vários castelos assombrados e era dado a práticas de
ocultismo, às quais aliás eu não era de todo alheio.
(Mas
confesso que o lápis já me pesa na mão como se fora o mastro de um
circo ou o próprio eixo da terra, o que me leva a parar de súbito
estas reminiscências tão históricas e para mim tão caras, que um
dia mostrarei aos meus companheiros de hotel para que eles vejam até
onde chega a fabulosa aventura humana, desde que –
Walter Campos de Carvalho, in A lua vem da Ásia
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