sábado, 28 de maio de 2022

Que antiguidade!

O homem pôs o chapéu e saiu. A mulher pegou a sombrinha e saiu, que antiguidade! Usava-se muito sombrinha e chapéu. Padre ainda adora guarda-chuva, resquício quase canônico das batinas de antigamente. Quando nos casamos, Abel tinha um sobretudo e um chapéu do mesmo tecido, composição alinhada, muito bonita, virava um artista vestido pra me matar. Não tenho um retrato dele com a roupa. Onde foi parar? Com certeza deu para algum pobre, por influência minha, que só agora me dou conta de minha enorme pobreza. Tantas coisas gostaria de recuperar, a aliança de minha mãe, um anel fino — oitavado, como dizia o pai —, um cordãozinho com um pingente em forma de livro, um brilhantinho na capa, um anel que meu avô me recomendou derreter e fazer o anel de formatura. Chega a doer. Preciso curar-me, colocar meus tesouros em outro lugar. Será que a mãe gostava de joias? A única, a única mesmo era a aliança oitavada. Não tinha relógio, nem brincos, meu deus, mais despojada que uma clarissa no mosteiro. Só tinha os olhos verdes, o belo corpo e a alma aterrorizada de ir parar no inferno. Eu comprei um pingente pelo preço do salário da Ivonete, nem por isso sinto que vou danar-me.

Adélia Prado, in Quero minha mãe

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