Naquele
tempo éramos um pequeno grupo, dizimado pela violenta perseguição
de que fôramos alvo até o Pai trazer o fogo da montanha. Creio que
éramos cerca de uma dúzia começando juntos uma nova vida. Havia a
minha Mãe, chefe das mulheres, mas tínhamos também cinco tias. A
Tia Mildred era uma fêmea gorda e tola, incapaz de atirar uma pedra
com alguma precisão; na verdade, pertencia ao Tio Vanya, mas ele
abandonara-a quando descobrira que ela também era uma negação ao
trepar nas árvores. Ela possuía uma razão especial para gostar do
fogo, já que isso fazia com que o Tio nos visitasse de vez em
quando, podendo assim manter a pretensão de que ainda eram um casal.
A Tia Angela era uma pessoa bastante simpática, acasalada com outro
dos irmãos do meu pai, o Tio lan, do qual ouvíramos contar muitas
coisas quando éramos pequenos mas que nunca víramos, porque andava
sempre viajando pelo estrangeiro. Como não podia enviar-nos sequer
um postal para dizer que estava vivo e não era visto havia anos, a
Mãe e as outras tias achavam que ele morrera; mas a Tia Angela tinha
a certeza de que ele voltaria.
— O
menino vai voltar na tarda — afirmava, com o seu sotaque
característico, se o nome do tio aparecia na conversa. — El’ é
o me m’nino, um viajanti incorrigível, mas ê própria estaria co’
ele, com’ele bem sabi, na fora o me pobre coração.
A
Tia Angela sofria de palpitações. Mas tinha algo por que esperar, e
isso era mais do que se podia dizer da Tia Aggie, da Tia Nellie e da
Tia Pam. O companheiro da Tia Aggie fora morto por um leão. A Tia
Nellie devia a sua viuvez a um rinoceronte lanudo e a Tia Pam a uma
jiboia.
— Ele
tentou comê-la, — queixava-se ela — embora eu lhe dissesse que
não podia de modo nenhum fazer-lhe bem. Mas ele por acaso ouviu-me?
Nem pensar! É o mesmo que comer uma cobra, disse-me. Bom, de
qualquer modo, pelo amor de Deus corta-a em bocados, respondi-lhe eu.
Mas não. Nem isso fez. Só porque eu lho disse, evidentemente.
Disse-me que ela nunca cortava o que comia e, portanto, porque havia
ele de fazer doutro modo? Tudo o que ela podia fazer, ele achava que
também podia. É claro que não podia. Nem mesmo metade! Mas quando
aquele maldito e obstinado doido foi forçado a admitir que, como
sempre, eu tinha razão, era demasiado tarde. Que seja uma lição
para ti.
Ela
contava sempre esta história a qualquer criança que se engasgasse
por tentar engolir demasiada comida sem mastigar o suficiente.
Noutras ocasiões, porém, a sua expressão amarga ficava úmida das
lágrimas; o seu nariz tornava-se vermelho como um morango e ela
balançava o corpo anguloso para a frente e para trás numa agonia de
remorso.
— Podia
tê-la cortado eu mesma após alguns metros, — gemia ela — e ele
ainda estaria vivo. Não o fiz porque pensei que aprenderia a lição.
Deixei-o ir longe demais, vários metros longe demais. Oh, Monty,
Monty, porque me provocaste tanto?
Nesses
momentos, ela tornava-se uma figura trágica, e a Tia Aggie e a Tia
Nellie sentavam-se, conversando com ela, tentando confortá-la; isto
acabava com todas elas gemendo e chorando por causa dos companheiros
que haviam perdido.
— Ah,
o me lindo m’nino! — lamuriava-se a Tia Aggie. — O leão
levô-ti, Patrick, e põe’ proveo l’e fzeste, ao velho Cromwell!
Nessas
ocasiões, as mulheres diziam todos os disparates que lhe vinham à
cabeça.
— E
um rinoceronte lanudo! — soluçava a Tia Nellie.
— Não
tinha nada que estar aqui em África, bruto mau, odiento e metediço.
Porque não ficou na Riviera, onde há gelo? Claro que perdeu a
cabeça, vindo para cá e ficando ridiculamente quente!
Não
me lembro de todas as crianças da ninhada e, de qualquer modo,
algumas delas acabavam sempre por ser comidas pelos lobos antes de
terem tempo de crescer. O mais próximo de mim era o meu irmão
Oswald que, desde muito novo, se evidenciou pela sua extraordinária
habilidade para caçar e apanhar animais, incluindo peixes. Quando
era pequeno pendurava-se durante horas sobre o rio observando os
peixes e tentando apanhá-los, tal como via os pássaros fazerem.
Acabou por apanhar um peixe grande e tentou comê-lo, quase morrendo
como o Tio Monty. Só muito mais tarde encontramos uma forma
verdadeiramente satisfatória de comer peixe.
— Mas
devia ser possível comê-lo! — afirmou irritado. — Já vi um
leopardo fazê-lo.
— Com
a tua idade, não tens nada que andar para aí a observar leopardos!
— descompô-lo a Mãe. — Como te atreves, criança desobediente!
Vai lascar sílex!
Oswald
obedeceu carrancudo; ao contrário de Wilbur, não havia nada que ele
mais detestasse. Mesmo quando muito criança, Wilbur possuía uma
aptidão natural para lascar. “Muito bem, meu rapaz”, dizia o Pai
quando ele batia no bolbo de percussão com uma precisão espantosa
para um rapazinho da sua idade. No entanto, embora muito hábil com o
sílex e o quartzo, não era muito independente e costumava quase
sempre seguir a mim e ao Oswald. Fazia os nossos trabalhos mais
pesados, transportando as nossas mocas, afiando as nossas pontas de
sílex e carregando para casa tudo o que caçávamos; na maior parte
das vezes, era ele quem preparava as armadilhas para a caça miúda e
era normalmente o escolhido para roubar mel das colmeias para todos
nós.
Também
costumávamos encarregar o nosso outro meio irmão, Alexander, dessas
tarefas; no entanto, embora demonstrasse bastante boa-vontade,
tornava-se difícil contar com ele, já que raramente terminava uma
tarefa se não estivesse sendo vigiado e não fosse admoestado sempre
que parava. Não é que lhe faltasse inteligência ou persistência,
mas tendia a dispersar-se numa grande curiosidade por tudo o que via,
sobretudo animais. Nessa altura entrava em transe e tornava-se
necessário bater-lhe na cabeça com uma pedra para ele acordar. Ele
próprio não sabia explicar isto. A sua observação dos animais era
extraordinariamente precisa, mas parecia fazê-la sem uma clara
intenção de relacioná-la com técnicas de caça, como fazia o
Oswald; e ficava igualmente feliz observando pássaros, a maior parte
dos quais é, naturalmente, inútil, a não ser por avisarem da
proximidade de caça grossa. O Alexander podia às vezes ajudar-nos
em expedições de caça por esta razão. O problema é que ele
estava igualmente interessado em papa-moscas, avestruzes ou
garças-boieiras.
— Aquele
rapaz tem um grande potencial, tenho a certeza, — ouvi um dia o Pai
dizer à Mãe depois de o Alexander lhes ter dito que o rinoceronte
fêmea caminha sempre exatamente atrás do macho —, mas não faço
a menor ideia para quê.
Referia-se
frequentemente ao Alexander como “o nosso jovem naturalista”.
Eu
tinha ainda um outro irmão muito mais novo, o William, mas o grupo
que ajudava o Pai nas expedições de caça era sempre constituído
pelo Oswald, o Wilbur, o Alexander e eu.
Dentre
as meninas, a minha melhor companheira era a minha irmã Elsie.
Tínhamos decidido formar um casal quando crescêssemos. Ela era alta
e graciosa como uma jovem gazela e era capaz de correr, saltar e
atirar como qualquer rapaz. Tornou-se a ajudante preferida da minha
mãe e, à medida que crescíamos, participava cada vez menos nas
nossas expedições de caça. Nunca compreendi porque é que,
exatamente quando estávamos para sair, a Mãe encontrava sempre algo
urgente para ela fazer. Havia nos seus grandes olhos castanhos um
desejo ardente quando me dizia:
— Tenho
que ficar cuidando do fogo e dos bebês, Ernest, mas traz-me alguma
coisa, sim?
Eu
trazia sempre. Os olhos de todos os animais que matava, ou um osso
inteiro cheio de tutano, ou uma folha cheia de mel ou puré de
formigas brancas.
— Obrigada,
obrigada, querido Ernest — dizia ela enquanto a metia de uma só
vez na sua boca vermelha e voluptuosa. — Eu sabia que não me
esquecerias.
Depois
quando punha os braços à minha volta e me abraçava deliciada, eu
sentia que valera a pena não ter desfrutado do prazer que ela estava
sentindo. Não conseguia imaginar mais ninguém por quem o fizesse.
Tínhamos
três outras irmãs: Ann, Doreen e Alice. Estava assente entre nós
rapazes que, quando fôssemos adultos, o Oswald teria a Ann (que era
uma rapariga forte, capaz de transportar caça para casa), o
Alexander teria a Doreen (que era maternal e gostava muito dele) e o
Wilbur teria a Alice. Ia ser muito simples.
Roy Lewis, in Por que Almocei meu Pai
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