terça-feira, 3 de maio de 2022

Por que Almocei meu Pai | 3

 


Naquele tempo éramos um pequeno grupo, dizimado pela violenta perseguição de que fôramos alvo até o Pai trazer o fogo da montanha. Creio que éramos cerca de uma dúzia começando juntos uma nova vida. Havia a minha Mãe, chefe das mulheres, mas tínhamos também cinco tias. A Tia Mildred era uma fêmea gorda e tola, incapaz de atirar uma pedra com alguma precisão; na verdade, pertencia ao Tio Vanya, mas ele abandonara-a quando descobrira que ela também era uma negação ao trepar nas árvores. Ela possuía uma razão especial para gostar do fogo, já que isso fazia com que o Tio nos visitasse de vez em quando, podendo assim manter a pretensão de que ainda eram um casal. A Tia Angela era uma pessoa bastante simpática, acasalada com outro dos irmãos do meu pai, o Tio lan, do qual ouvíramos contar muitas coisas quando éramos pequenos mas que nunca víramos, porque andava sempre viajando pelo estrangeiro. Como não podia enviar-nos sequer um postal para dizer que estava vivo e não era visto havia anos, a Mãe e as outras tias achavam que ele morrera; mas a Tia Angela tinha a certeza de que ele voltaria.
O menino vai voltar na tarda — afirmava, com o seu sotaque característico, se o nome do tio aparecia na conversa. — El’ é o me m’nino, um viajanti incorrigível, mas ê própria estaria co’ ele, com’ele bem sabi, na fora o me pobre coração.
A Tia Angela sofria de palpitações. Mas tinha algo por que esperar, e isso era mais do que se podia dizer da Tia Aggie, da Tia Nellie e da Tia Pam. O companheiro da Tia Aggie fora morto por um leão. A Tia Nellie devia a sua viuvez a um rinoceronte lanudo e a Tia Pam a uma jiboia.
Ele tentou comê-la, — queixava-se ela — embora eu lhe dissesse que não podia de modo nenhum fazer-lhe bem. Mas ele por acaso ouviu-me? Nem pensar! É o mesmo que comer uma cobra, disse-me. Bom, de qualquer modo, pelo amor de Deus corta-a em bocados, respondi-lhe eu. Mas não. Nem isso fez. Só porque eu lho disse, evidentemente. Disse-me que ela nunca cortava o que comia e, portanto, porque havia ele de fazer doutro modo? Tudo o que ela podia fazer, ele achava que também podia. É claro que não podia. Nem mesmo metade! Mas quando aquele maldito e obstinado doido foi forçado a admitir que, como sempre, eu tinha razão, era demasiado tarde. Que seja uma lição para ti.
Ela contava sempre esta história a qualquer criança que se engasgasse por tentar engolir demasiada comida sem mastigar o suficiente. Noutras ocasiões, porém, a sua expressão amarga ficava úmida das lágrimas; o seu nariz tornava-se vermelho como um morango e ela balançava o corpo anguloso para a frente e para trás numa agonia de remorso.
Podia tê-la cortado eu mesma após alguns metros, — gemia ela — e ele ainda estaria vivo. Não o fiz porque pensei que aprenderia a lição. Deixei-o ir longe demais, vários metros longe demais. Oh, Monty, Monty, porque me provocaste tanto?
Nesses momentos, ela tornava-se uma figura trágica, e a Tia Aggie e a Tia Nellie sentavam-se, conversando com ela, tentando confortá-la; isto acabava com todas elas gemendo e chorando por causa dos companheiros que haviam perdido.
Ah, o me lindo m’nino! — lamuriava-se a Tia Aggie. — O leão levô-ti, Patrick, e põe’ proveo l’e fzeste, ao velho Cromwell!
Nessas ocasiões, as mulheres diziam todos os disparates que lhe vinham à cabeça.
E um rinoceronte lanudo! — soluçava a Tia Nellie.
Não tinha nada que estar aqui em África, bruto mau, odiento e metediço. Porque não ficou na Riviera, onde há gelo? Claro que perdeu a cabeça, vindo para cá e ficando ridiculamente quente!
Não me lembro de todas as crianças da ninhada e, de qualquer modo, algumas delas acabavam sempre por ser comidas pelos lobos antes de terem tempo de crescer. O mais próximo de mim era o meu irmão Oswald que, desde muito novo, se evidenciou pela sua extraordinária habilidade para caçar e apanhar animais, incluindo peixes. Quando era pequeno pendurava-se durante horas sobre o rio observando os peixes e tentando apanhá-los, tal como via os pássaros fazerem. Acabou por apanhar um peixe grande e tentou comê-lo, quase morrendo como o Tio Monty. Só muito mais tarde encontramos uma forma verdadeiramente satisfatória de comer peixe.
Mas devia ser possível comê-lo! — afirmou irritado. — Já vi um leopardo fazê-lo.
Com a tua idade, não tens nada que andar para aí a observar leopardos! — descompô-lo a Mãe. — Como te atreves, criança desobediente! Vai lascar sílex!
Oswald obedeceu carrancudo; ao contrário de Wilbur, não havia nada que ele mais detestasse. Mesmo quando muito criança, Wilbur possuía uma aptidão natural para lascar. “Muito bem, meu rapaz”, dizia o Pai quando ele batia no bolbo de percussão com uma precisão espantosa para um rapazinho da sua idade. No entanto, embora muito hábil com o sílex e o quartzo, não era muito independente e costumava quase sempre seguir a mim e ao Oswald. Fazia os nossos trabalhos mais pesados, transportando as nossas mocas, afiando as nossas pontas de sílex e carregando para casa tudo o que caçávamos; na maior parte das vezes, era ele quem preparava as armadilhas para a caça miúda e era normalmente o escolhido para roubar mel das colmeias para todos nós.
Também costumávamos encarregar o nosso outro meio irmão, Alexander, dessas tarefas; no entanto, embora demonstrasse bastante boa-vontade, tornava-se difícil contar com ele, já que raramente terminava uma tarefa se não estivesse sendo vigiado e não fosse admoestado sempre que parava. Não é que lhe faltasse inteligência ou persistência, mas tendia a dispersar-se numa grande curiosidade por tudo o que via, sobretudo animais. Nessa altura entrava em transe e tornava-se necessário bater-lhe na cabeça com uma pedra para ele acordar. Ele próprio não sabia explicar isto. A sua observação dos animais era extraordinariamente precisa, mas parecia fazê-la sem uma clara intenção de relacioná-la com técnicas de caça, como fazia o Oswald; e ficava igualmente feliz observando pássaros, a maior parte dos quais é, naturalmente, inútil, a não ser por avisarem da proximidade de caça grossa. O Alexander podia às vezes ajudar-nos em expedições de caça por esta razão. O problema é que ele estava igualmente interessado em papa-moscas, avestruzes ou garças-boieiras.
Aquele rapaz tem um grande potencial, tenho a certeza, — ouvi um dia o Pai dizer à Mãe depois de o Alexander lhes ter dito que o rinoceronte fêmea caminha sempre exatamente atrás do macho —, mas não faço a menor ideia para quê.
Referia-se frequentemente ao Alexander como “o nosso jovem naturalista”.
Eu tinha ainda um outro irmão muito mais novo, o William, mas o grupo que ajudava o Pai nas expedições de caça era sempre constituído pelo Oswald, o Wilbur, o Alexander e eu.
Dentre as meninas, a minha melhor companheira era a minha irmã Elsie. Tínhamos decidido formar um casal quando crescêssemos. Ela era alta e graciosa como uma jovem gazela e era capaz de correr, saltar e atirar como qualquer rapaz. Tornou-se a ajudante preferida da minha mãe e, à medida que crescíamos, participava cada vez menos nas nossas expedições de caça. Nunca compreendi porque é que, exatamente quando estávamos para sair, a Mãe encontrava sempre algo urgente para ela fazer. Havia nos seus grandes olhos castanhos um desejo ardente quando me dizia:
Tenho que ficar cuidando do fogo e dos bebês, Ernest, mas traz-me alguma coisa, sim?
Eu trazia sempre. Os olhos de todos os animais que matava, ou um osso inteiro cheio de tutano, ou uma folha cheia de mel ou puré de formigas brancas.
Obrigada, obrigada, querido Ernest — dizia ela enquanto a metia de uma só vez na sua boca vermelha e voluptuosa. — Eu sabia que não me esquecerias.
Depois quando punha os braços à minha volta e me abraçava deliciada, eu sentia que valera a pena não ter desfrutado do prazer que ela estava sentindo. Não conseguia imaginar mais ninguém por quem o fizesse.
Tínhamos três outras irmãs: Ann, Doreen e Alice. Estava assente entre nós rapazes que, quando fôssemos adultos, o Oswald teria a Ann (que era uma rapariga forte, capaz de transportar caça para casa), o Alexander teria a Doreen (que era maternal e gostava muito dele) e o Wilbur teria a Alice. Ia ser muito simples.

Roy Lewis, in Por que Almocei meu Pai

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