Quando
o avião decolou, ela deu seu primeiro grito. E foi dando outros,
misturados ao choro e à frase “ai, não, meu Deus do céu, não”.
A aeromoça a trouxe para a primeira fileira: lugar para gestantes,
idosos, pessoas com deficiência. Eu estava ali, e a vi chegando
suada e tremendo e curvada como se as costas pudessem cobrir seu
rosto e ela pudesse sentir no anonimato aquele medo tão intenso e
tão “sem sentido”. Pensei em puxar papo: “se avião fosse bom,
não davam um saquinho de vômito pra gente, né?”.
Se
não dá para escolher até a fileira 3 ou 4, minto que estou grávida
e consigo sentar bem na frente. Você já está preso num negócio
com quinhentos desconhecidos que tossem e, para sair desse inferno,
ainda vai ter que esperar os quinhentos desconhecidos que tossem
levantarem, pegarem as malas, andarem com lerdeza (alguns), andarem
com mais pressa do que educação (pior que lerdeza) (a maioria)? Lá
na frente é como um palco para que te vejam surtar de angústia,
então o certo deveria ser minha fobia escolher o último assento.
Mas a vontade de cair fora é tão enorme, que é ainda maior que o
medo de chamar atenção.
Já
menti centenas de vezes em avião. Já menti chegando a Portugal que
estava grávida, para não ficar na fila da imigração. Já menti
chegando ao Rio que estava prestes a desmaiar, para sair de cadeira
de rodas (fiz isso porque tive medo de estar prestes a desmaiar
porque senti que estava prestes a estar prestes a desmaiar). Já
menti que estava grávida “e enjoando demais”, para sentar na
primeira de todas as cadeiras, a 1A. Já menti que estava com
suspeita de H1N1, para convencer uma aeromoça a não deixar ninguém
sentar perto de mim. Ela disse que eu teria que sair do avião, eu
fiquei tão feliz ao ouvir que teria que sair do avião
“mandada por alguém e não por um pensamento invasivo”, que fui
logo juntando minhas coisas, calma, solar. A aeromoça percebeu que
eu não estava doente e me evitou durante todo o voo.
A
fobia pode ter cara de arrogância, de esperteza, de “falta de uns
tabefes na infância”, de nazismo comezinho. Num avião, eu tenho
nojo de qualquer um que tussa, tenho aflição de qualquer um que
sente perto de mim. Vale mencionar que, se essa pessoa for uma modelo
sueca cravejada de diamantes, minha angústia será a mesma, ou até
pior.
Em
Lisboa, quando saí do aeroporto em cinco minutos, “estou grávida
de algumas semanas e me sinto muito mal”, deixando para trás
milhares de seres tão cansados e famintos quanto eu, pensei
seriamente em me proclamar um monstro.
Mas
não é bem isso que acontece com o fóbico de viagem. Acompanhe
comigo. Eu só consigo entrar num avião, para uma viagem
internacional, misturando 0,75 mg de Rivotril com um Dramin (aquele
para dar sono). Já dentro do avião, um pouco antes de comer
(belisco meio pão com um quinto da comida) tomo mais 0,25 mg do
mesmo remédio. Quando as luzes estão prestes a apagar, tomo mais
0,25 mg de Rivotril e tomo o cuidado de deixar um Vonal Flash por
perto.
É
importante dizer que só viajo à noite e que, naquele dia, desde que
acordo, tomo 0,5 mg de Rivotril sublingual a cada três horas. É
importante dizer que dez dias antes de viajar, quando começo a
sentir os sintomas de forma quase insuportável (e começo a pensar
em seiscentas e setenta e oito maneiras de cancelar a viagem, pois só
isso me acalma), já estou tomando 0,5 mg de Rivotril a cada seis
horas. Então, meu amigo, quando apagam as luzes do avião e não há
mais nada a ser feito, eu durmo como se pedras hibernassem.
Dito
tudo isso, você imagina o meu estado quando chego ao outro país?
Dez dias sem me alimentar direito, assada de tanta diarreia (uma
semana antes de qualquer viagem meu intestino entende que comi ostras
estragadas), com hipoglicemia e pressão baixa por não comer quase
nada no avião, com enxaqueca profunda devido à mistura de remédios
(vários médicos já me pediram que não misturasse Dramin com
Rivotril, mas ou faço isso ou não viajo), e com uma dosagem de
tarja-preta na cabeça que me faria inventar uma religião chamada
Abraçando Árvores na Jamaica. Você consegue imaginar esse ser
humano em pé por uma hora numa fila de imigração, sem morrer? Por
isso eu minto que estou grávida, para poder desmaiar o mais rápido
possível numa cama de hotel e só acordar no dia seguinte. Começo a
“contar” uma viagem a partir do terceiro dia. No primeiro eu
durmo, no segundo acordo aos poucos, no terceiro começo a ficar bem,
o que significa que volto a sentir medo e volto a tomar remédios.
Uma vez me contaram de um cara que foi até a Rússia e, ao pisar lá,
sacou que “não, não tô a fim”, voltou para o aeroporto e
voltou para casa. Cheguei a adicioná-lo no Facebook, crente que
viveríamos uma história linda de amor, sem jamais sair de casa, em
São Paulo. Mas ele era feio e desencanei. Ainda bem que ele era
feio.
Mas
eu falava da menina que gritava no avião e veio sentar ao meu lado,
na primeira fileira. Todo mundo se cutucando, comentando. O marido
dela, roxo de vergonha. A aeromoça tentando convencê-la a tomar
suco de laranja. “Cê jura, minha filha, que um suco de laranja vai
melhorar a vida de uma moça que está gritando?” Esperei
longos dez minutos, mas, como não apareceu nenhum psiquiatra (tive
um namorado psiquiatra que ajudava garotas em avião, ele sempre me
contava isso antes da transa, eu tinha um fetiche absurdo por essa
história. Por essa e por outra: aos dezenove anos, ele levou uma
barraca para um “jogos universitários de medicina no Rio de
Janeiro” e transou com catorze mulheres em seis dias. Eu amava as
duas histórias. Ele jovem e uma barraca, o terror do Rio. Ele já
formado, o super-herói do avião. Namoramos por quatro meses e, como
ele morava em Porto Alegre, toda vez eu me drogava com Rivotril para
voar até lá. E sempre achava que ele me fazia muito bem e que eu
era muito plena e feliz e calma com ele. Mas eu estava drogada: achei
que era amor e era Rivotril), resolvi falar com ela.
Me
apresentei: “sei exatamente que merda é essa”. Apresentei o
Rivotril: “você vai melhorar em poucos minutos”. Ela disse que
não tomava nada “que os outros lhe dessem” e sem receita. Ainda
era grossa, a maluca. Eu descartei um sublingual, dei na mão dela e
lancei o mistério: “não precisa tomar, às vezes só de ter ele
por perto eu já fico bem”. Voltei para o meu assento e fiquei
observando. Marido, aeromoça e passageiros ao redor da menina
começaram a fazer um coro: “toma, eu já tomei”. Toma, eu
já tomei. Não é legal ter alguém surtando do nosso lado,
lembrando que todos têm motivo para enlouquecer e que apenas os mais
sãos de fato dão voz a isso. E ela tomou. E capotou em estado de
graça cinco minutos depois. Como uma criança que relaxa sugando o
seio da mãe depois de várias mamadeiras azedas. A garota tinha
voltado para casa.
O
marido dela sorria tanto para mim que temi “estar rolando um lance
entre nós”. Achei que era Rivotril e era só amor. Sempre.
Senti
uma inveja profunda da maluca. A primeira vez com o Rivotril é
única, é perfeita, é a comunhão das maravilhas universais
traduzidas em aconchego. Eu ocupo o espaço e isso é totalmente
possível. Já não tenho uma carne viva entrando em “combinações
químicas perigosíssimas e putrefatas com um oxigênio tomado por
uma poluição devastadora”. Tenho uma couraça magnífica que me
leva virtualmente pelo mundo enquanto mantenho os órgãos vitais
protegidos embaixo da cama.
A
primeira vez que tomei um Rivotril foi numa noite de segunda-feira,
depois de somar “fora do namorado” com “dia muito difícil no
trabalho”. Na época eu namorava outro psiquiatra (namorei uma
infinidade de psiquiatras, psicanalistas, psicólogos, médicos de
outras áreas que se interessassem por psiquiatria — o maior tesão
que eu tenho num homem é fantasiar que seu pau é também uma vara
de condão contra o mal-estar da loucura. “Me deixa louca de amor e
depois me deixa calma para eu poder dormir mesmo amando” é o que
eu gostaria de tatuar na minha virilha. Naquela brincadeira “quem
você levaria para uma ilha deserta?”, sempre deu primeiro um
médico e depois o Brad Pitt. Imagina levar um médico e um namorado
no mesmo homem para uma ilha deserta? Isso significava economizar um
desejo!) que tinha me pedido “um tempo para que ele sentisse minha
falta” (estávamos indo para o décimo dia, e nada!), e eu ainda
trabalhava em agência de publicidade e estava trancada havia dias
numa sala criando um novo conceito para o Bradesco. Foram noites e
noites sem dormir para que meu chefe viesse com o conceito
“Bradescompleto”. Vocês lembram dessa pérola? Ele jogou fora
semanas de trabalho de todos os redatores da agência, não sem antes
deixar claro que éramos uns merdinhas porque não tínhamos
resolvido algo tão simples.
Cheguei
à casa da minha mãe com muita dor na nuca, um pouco de febre,
tontura, sede. Medi a pressão (claro que minha mãe tinha um medidor
de pressão!), estava altíssima. Pensei em ir para o hospital, mas
resolvi encurtar a conversa. Meu desejo era “dormir muitas horas
cagando em absoluto pra humanidade”, e minha mãe, viciada em
Rivotril fazia mais de dez anos, me apresentou o danado.
Botei
na boca o sublingual de 0,25 mg sentada no sofá da sala e não tive
tempo de jantar ou tomar banho. Não lembro como cheguei ao quarto.
Lembro de sonhar (juro!) que rolava entre travesseiros
branquinhos, postos para arejar numa grama muito verde, num lindo dia
de sol. Dormi por treze horas e, quando acordei, estava decidida a
ignorar namorado e emprego e a partir de então só me relacionar com
aquela droga.
Você
que curte cocaína, ácido, MDMA… me explica: para que se
sentir pilhado? Eu me sinto pilhada desde que nasci e… que cansaço,
pelo amor de Deus. Jura que você precisa de algo “que te tire de
você”? Que “te leve daqui”? Eu só quero algo que me devolva a
mim. Que me deixe ficar sentada, quieta, calma. Cansei de ser o balão
com uma carinha histérica desenhada, preso por uma cordinha fraca
que depende da boa vontade de quem segura. Rivotril é a única droga
possível, certamente tão perigosa quanto todas as outras, ou mais,
e quem me apresentou foi a minha mãe. Veja você como é a vida.
Então
isso é que “é ser humano”. Lembro de ruminar esse pensamento
ininterruptamente após o primeiro Rivotril. Então é assim que se
sentem todas aquelas pessoas que não falam como se estivessem caindo
num carrinho de montanha-russa? Que maravilha ser vocês! Nunca mais
senti como na primeira vez, mas sempre me senti muito bem. Me senti
como deveria ser um ser humano. É como dispor de pequenas doses de
dignidade numa cartela. É como se, depois de trinta anos correndo
debaixo de sol, numa maratona chamada Estar Vivo, você finalmente
pudesse chegar a algum pódio com água e sombra e camas onde o
troféu fosse o parafuso que faltava na sua cabeça. É como ter
acesso rápido e indolor a “ser adulto”. Você mete uma “versão
adulta de você” embaixo da língua, e espera que ela tome seu
corpo todo e fale no seu lugar, aja no seu lugar, viaje no seu lugar,
ganhe dinheiro, termine namoros, durma, tudo no seu lugar.
Cheguei
a um ponto em que eu queria lembrar a palavra “cadeira” numa
conversa e não conseguia. “Aquele negócio de sentar, ca… ca…
ah, sim, cadeira!” Conversar comigo sobre cinema, assunto que
sempre amei, havia se tornado patético. Eu não lembrava nomes de
filmes, atores, nem de diretores. Meu corpo flutuava calmamente sobre
os problemas que pouco me atingiam, mais uma semana rivotrilsada e eu
abriria mão de tudo o que sempre quis e viraria surfista.
Quando
resolvi parar com o Rivotril, após meses sem me irritar com tudo e
sem sentir medo da minha própria sombra, tive a maior ressaca da
vida. Foram semanas dormindo mal, sentindo cansaço e sono em horas
erradas, ouvindo os músculos retesados gritarem pelo remedinho,
lidando com ocos assustadores no centro da cabeça, andando pela casa
como se tivessem tirado a tampa do meu crânio, como se as paredes
houvessem mudado de lugar, com buracos peludos no meio do peito, com
disparadas insanas do coração, e bebendo litros e litros de água
que nunca saciavam a pele seca da minha goela.
Parei,
mas não saio de casa sem uma cartelinha na bolsa. E se o monstro do
“medo sem explicação” ousar enfiar as garras em minha jugular?
Não quero mais ser um zumbi. O tarja-preta virou o pretinho básico.
Se você espirrar no consultório, o médico te receita um. Parei. E,
de “daqui a pouco” em “daqui a pouco”, prorrogo a loucura
para nunca. “Quem pensa sobre ficar louco, jamais vai ficar louco”,
me contou um dos muitos psiquiatras que fui largando pela vida. E eu
me agarro nisso. Mentira, acho que tomei um Rivotril ontem.
Acabei
de tomar outro. Há meia hora estou feliz, mas meu cérebro guarda as
lembranças terríveis da falta de ar e da sensação humilhante de
não conseguir ser um adulto.
A
maluca do avião não gritava mais, mas todos a sua volta gritavam,
abafados, silenciosos, em cantinhos estraçalhados de unhas, em
bolotas cutucadas de bochechas, em estalos gordos de pescoço.
Gritavam as coisas todas que ela agora, infelizmente, estava muito
digna para pensar.
Tati Bernardi, in Depois a louca sou eu
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