– É
dizendo e o Bacurau escrevendo...
Imagem
afirmativa de origem misteriosa
O
sino da matriz distante derramou a sonoridade vagarosa das três
lentas badaladas das “Trindades” dando à paisagem imóvel do fim
crepuscular a suavidade de uma paz melancólica. A noite iniciante
foi adormecendo as cores, e as névoas da treva dispersavam os
contornos dos seres e das coisas.
A
rodovia onde passam trepidantes os caminhões de carga e os
automóveis de trabalho ou vadiagem é paralela à velha estrada de
areia solta, com blocos de barro batido que um vago compressor
comprimiu e o tempo esqueceu. Foi caminho das boiadas e estrada do
fio porque se alinhavam, espectrais, os postos do telégrafo Morse. A
orla é feita por um mato raro e ralo, espalhado entre os tufos de
capim amarelo e duro, desdenhado pela fome dos ruminantes e asilo das
saúvas e besouros variados. Há formigueiros de muitas cores e
formigas de tamanhos, conformações e tintas diversas, ocupadas
todas, umas de dia, outras de noite e as saúvas de dia e de noite.
Agora,
que a tarde acabou e a noite começa, Niti está cumprindo sua tarefa
habitual, andando com gravidade ou saltando como um palhaço, dando
voos baixos e curtos, com reviravoltas, descidas e curvas que nenhum
piloto acrobático plagiaria. Vezes para, estendendo o abreviado
pescoço e fica quase deitado ao rés do areal, o bico escancarado
mostrando o abismo vermelho da goela palpitante. Bruscamente fecha o
bico para dar um pulo vertical, aproveitando o impulso num pequenino
voo com alguns coleios aéreos que terminam numa descida de folha
seca ou parafuso da morte.
Quando
está imóvel, espectante, vezes a luz dos holofotes dos automóveis
incide por um segundo na ave e os dois olhos de Niti se iluminam,
imensos, redondos, deslumbrantes, como se fossem dois espelhos de
cegantes reflexos, amarelos e rutilantes, insustentáveis à
contemplação humana.
Niti
está caçando insetos e o fará, com maior ou menor entusiasmo, até
o clarear do dia. De papo abastecido por algumas horas, volta ao seu
pouso ocasional porque independe, bicho feliz, de possuir domicílio
certo até a postura dos dois ovos brancos, com pintinhas violeta.
Niti
é conhecido por curiango e também bacurau. Teodoro Sampaio informou
que bacurau é voz onomatopaica mas Rodolfo Garcia disse que talvez
fosse originária de mbaê, coisa, bicho, e curau,
que-solta-a-língua, o maldizente. Essa habilidade humaníssima do
bacurau ser falador, mexeriqueiro, enredador, creio injusta para ave
de tão composto e sisudo porte.
Retraído,
isolado, solitário, desconfiado, como é que Niti vai preocupar-se
com a vida do xexéu, do canário, do bem-te-vi e das lavadeiras
doidivanas e peraltas? Tem todas as horas ocupadas em misteres
indispensáveis. Não podendo ver de dia e sim das horas
crepusculares em diante, emprega-as para sua estimável subsistência.
Anunciado o dia, Niti retoma seu lar num oco de pau ou cavidade de
pedras e adormece, de consciência tranquila. Nunca se aproxima de
outra ave e sim, duas vezes por ano, da senhora Niti, também de
livre escolha ocasional, para o sacrifício da propagação da
espécie no tempo e no espaço. Com quem o velho bacurau ia exercer o
exercício gostoso de falar do próximo se ele não tem próximo,
excetuando os insetos assimiláveis?
Passava,
pesado e lento com sua clava maciça, o homem de Heidelberg e o
bacurau já caçava suas predileções ao escurecer a noite de
quinhentos mil anos.
É
um caprimulgídeo, gênero Nyctidromus albicollis, Gm. Nyctidromus
porque passeia, anda, corre, durante a noite. Albicollis por ostentar
certo tipo uma mancha branca, semilunar, na garganta. Por isso o
chamam bacurau-de-peito-branco. Porque fica deitado, pisando devagar
pela estrada, gastando tempo de um para outro ponto, dizem-no
bacurau-mede-léguas, explicando-se que Niti está espontaneamente
verificando a honestidade dos construtores rodoviários, medindo
escrupulosamente a quilometragem.
Quanto
ao nome ilustre de caprimulgídeo há uma história longa e séria,
digna de qualquer almanaque de gota. Aristóteles – sim senhor,
Aristóteles – escreveu que certas corujas gregas (a Grécia é a
sua terra; lá são dedicadas a Minerva, Palas-Atenas) tinham a
técnica maravilhosa de ordenhar as cabras. Pior é que as cabras
ficavam cegas depois da ordenha. Esta tradição escorreu pela Europa
e ficou densamente na península itálica, irradiando-se com a
memória romana.
Encontrando-se
sempre certas aves junto aos currais ou rebanhos de cabras,
especialmente nas tardes, horas da colheita do leite, houve uma
interpretação inteligente de dizer que as cabras eram mungidas por
aquelas aves pequenas, de cores neutras, espantadiças e humildes. A
história, aqui, “estória” como escrevo, teimoso, das corujas da
Grécia vestiu como uma luva a observação local e deram para chamar
as aves de Caprimulges, Capra-mulgere. E daí a família dos
caprimulgídeos que o austero inglês denomina, seriíssimo,
Goat-suck, no mesmo roteiro. Pela Borgonha o nome ficou ainda
mais significativo, Sèche-trappe ou Sèche-terrine.
Naturalmente
os sábios têm suas horas de niño e esquecem que as aves, os
pássaros, não podem mungir animal algum. Não possuem o movimento
da sucção. Não precisava o pesquisador Schwenckfeld realizar longo
inquérito entre criadores de cabras para assegurar-se da
inexistência de qualquer caprino permitir ser ordenhado por uma ave.
E nem pensou que, funcionalmente, o caprimulgídeo não conseguiria
extrair leite da teta da cabra com o atrapalhante auxílio do seu
bico curto. São as horas de niño, de rejuvenescedora
presença.
Na
França os caprimulgídeos receberam o doce nome de Engoulevent
porque voando de bico aberto contra possíveis enxames de mosquitos
ou moscas noturnas engoliam vento. O principal modelo é o
Caprimulgus europoeus, que se diz, em Portugal, noitibó, e que
provocou a pesquisa erudita de Artur Neiva, provando não ser
vocábulo da língua tupi, e sim da portuguesa. Provinha de noctivoo
e este de noctivolans. Volans e não o dromus de sua
classificação científica e mais justa, exceto o ordenhar cabras.
Niti
mede seus 25 centímetros da altura, vestindo modestamente os tons de
ferrugem-canela sobre fundo cinzento. Cores discretas como convém a
um notívago que o esplendor do sol não iluminará as garridices
vistosas das cores vivas e atraentes. Suas penas macias e moles lhe
dão silêncio no voo. Não sei se ele, como seus primos europeus,
voa com o bico aberto, engolindo vento e fazendo rumor de tear cuja
intensidade denuncia a rapidez, enfim o wheel-bird da
Grã-Bretanha. No mais ou menos é idêntico aos da família.
O
Senhor Conde de Buffon afirmava que o caprimulgídeo era originário
do continente americano e que o Caprimulgus carolinensis, Gmel.,
partindo da parte setentrional, d’où le passage en Europe était
facile, alcançara o Velho Mundo estabelecendo a primeira
colônia. Pelo menor cálculo é a espécie parecida e residindo,
ainda hoje, nas regiões mais próximas, o elo para os engoulevents
europeus.
Muito
se tem falado contra a preguiça de Niti em fazer o seu ninho. Não o
faz e sim utiliza cavidade de árvore velha ou simplesmente uma
depressão de terreno para oferecer à senhora Niti o conforto
indispensável à maternidade. Buffon, há dois séculos, contrariou
o libelo-crime acusatório. Os pássaros não trabalham à noite na
tarefa da nidificação. A noite para Niti é um período totalmente
preenchido pelas suas ocupações alimentares. As aves da noite não
nidificam. Servem-se do que encontraram já feito, por outra ave ou
pela Mãe-Natureza, sempre raseiros e fáceis de entrar e sair porque
Niti é ave do solo, dromus e não volans.
A
senhora Niti guarda com carinho os dois ovos brancos com salpicos
violeta e cumpre a incubação dedicadamente. Não defende o ninho
como a galinha faz, bico e patas incansáveis, mas chega ao heroísmo
de permanecer até a máxima aproximação do observador que ela, a
inocente, não sabe distinguir entre o interesse do ornitologista ou
o atrevimento do caçador. Sua área restringe-se sob a força do
amor maternal. Permite uma aproximação muitíssimo maior que
noutras ocasiões. Além desta solicitude, a senhora Niti, informa
Buffon, empurra os ovos com as asas para um recanto mais sossegado,
ocultando-os ou tentando ocultá-los quando os crê ameaçados.
Verdade é que o segundo ninho é tão rude e primitivo quanto o
primeiro. Lembro Buffon para mostrar a antiguidade da observação.
Não
posso afirmar que Niti tenha vista sobrenatural. Deduzo-a apenas
razoável pela pouca distância dos seus golpes. A olfação é
reduzida ou quase nula. O ouvido é sensível e põe o bacurau de
sobreaviso de qualquer anormalidade nas suas horas de caça. Horas de
caça são horas visíveis para visitá-lo com decente afastação
cerimoniosa. De dia o bacurau é fidalgo. Não recebe. De mais a mais
não lhe sabemos o endereço. Só um acaso conduz o felizardo à
morada do velho Niti. A recepção é impossível. Niti foge,
infalivelmente. Reposez-vous et laissez reposer les autres,
monsieur!
Nunca
tive o encanto de encontrar o velho Niti empoleirado numa árvore.
Centenas de vezes o deparo pela estrada, andando, deitado, pulando,
esvoaçando, com os dois grandes olhos de fogo radiante,
denunciando-lhe a presença.
Pequeno,
grosso, o bico curto, o rasgão da boca segue até o nível das
órbitas dando-lhe um aspecto trágico e uma impressão vaga de sábio
meditativo na quadratura do círculo ou cubagem da esfera.
É
preciso um lento e precavido rodeio, com paradas de minutos,
escondendo-se nos acidentes do terreno, para vê-lo em ação
caçadora. Vê-lo a uma determinada distância. Durante os
fulgurantes lampejos dos faróis dos automóveis identifica-se Niti
que, imediatamente, levanta acampamento para dentro do mato rasinho,
retomando a posição desde que a obscuridade se restabeleça. Há
uma espécie de cauda bem maior, arrastando-se, ornamental mas
inútil, na areia escura. Nunca o vi abrindo esta cauda que dizem não
ter muita plumagem. Nunca cheguei a ver Niti no seu gênero
Hydropsalis torquatus, com as retrizes formando asas de
tesoura, a mais cega de todas as tesouras deste mundo. Dias da Rocha
recenseou quatro no Ceará, o Caprimulgus parvulus, Gould, o
Eleotreptus anomalus, Gould, o Nyctidromus albicollis, que
vive nos arredores do canto de muro, e o Nyctibius grandis, Wild,
o Mãe-da-lua, cheio de espantos e de lendas assombrosas, fabuloso
pelo canto lúgubre e espalhador de pavores.
Como
o velho Niti passa sua noite atarefada rasteiro ao solo, dizem que
ele escreve. Para quem e o que escreve é que é segredo da natura.
Daí virá a frase sertaneja do Nordeste do Brasil: É dizendo e
bacurau escrevendo, imagem corroborante de qualquer afirmativa que
não admitia dúvida.
Nunca
me disseram que o bacurau bicasse outra ave ou gostasse de frutas
verdes, maduras ou podres. Tampouco lhe ouvi canto ou rumor no voo.
Vários mestres da ornitologia afirmam que ele canta, mas não me
concedeu as honras de audição mesmo longínqua.
O
dia vem longe mas a noite esfriou, anunciando a madrugada remota
quando os pássaros cantarão. Niti apagou seus olhos coruscantes e
sentiu-se o voo rápido, intervalado de pousos, rumo ao lar que só
ele sabe onde será.
Não
faz mal. Amanhã quando a noite vier encontrá-lo-ei na estrada
abandonada, na moldura do mato raro e ralo, caçando infatigado os
invisíveis insetos que vivem na areia pobre e nos arbustos tristes…
Luís da Câmara Cascudo, in Canto de Muro
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