A
rua é ainda egrégia e simpática. Tudo se vem fazendo por
transformá-la em ponto de estacionamento de automóveis, mas a
sombra de Rui Barbosa, a de João Ribeiro, de poetas antigos, sábios,
professores, bibliófilos, estudantes, gente rica e gente pobre, com
amor à leitura, que por lá buquinou durante anos e anos, parece
frequentá-la ao jeito das sombras: discretamente, na memória dos
que gostam de evocar, na saudade de alguns sobreviventes da velha
geração de caixeiros, um pouco na poeira das estantes, que as
estantes veneráveis não devem ser luzidias. Há também, esparsas,
memórias de leiloeiros e antiquários.
Os
“sebos” foram rareando, frequentadores assíduos se despediram
para o Caju e o São João Batista, a cidade ensaiou novos hábitos,
ou simplesmente perdeu velhos e não teve jeito de adquirir outros.
Onde reinava o velho Quaresma e depois o velho Matos, há hoje latas
de comestíveis. A “Principal”, a “Acadêmica”, o J. Leite
saíram da paisagem, emigrando ou desvanecendo-se. Um lado inteiro da
rua desapareceu, e foi como se arrancassem metade do tronco a um
corpo vivo. Mas, no outro meio-fio, o sobrado da velha Briguiet se
mantém fiel a seu destino de casa de livros. Com outro nome e outros
ocupantes, o espírito literário não desertou aquelas paragens. Um
menino, por assim dizer crescido na rua São José, ali está hoje,
homem-feito, e a este não é possível demolir nem convencer de que
deve negociar em política, importações ou apartamentos. Carlos
Ribeiro mantém e revigora, quase sozinho, o espírito da gloriosa
rua São José, que é uma universidade a seu modo: junto às pilhas
de livros, sabedores de coisas filosofam ou pontificam; mocinhas
supõem comprar romances, quando na realidade estão se provendo de
noções da eterna e tenebrosa ciência de amar; o vice-presidente da
Câmara, José Augusto, foge à barafunda parlamentar e mergulha nos
clássicos; amadores contemplam estampas; o cônego Monteiro
seleciona obras para a biblioteca do Círculo Operário de São José
dos Campos, criada com o seu suor; não faltam nem as presses
universitaires, pois a rua edita desde manuais de macumba até
estudos eruditos; e há sempre uma ideia, um projeto, um traço
intelectual no ar, um traço que não quer perder-se e reage contra a
burrificação geral da vida carioca.
Mas
essa rua é também uma praia, aonde vão dar os volumes de
bibliotecas que naufragaram. Vêm de mistura os mestres do pensamento
e aquelas tímidas obrinhas de principiantes, que o destinatário nem
chegou a abrir. O livreiro recolhe esses destroços e os reanima,
pondo-os de novo em circulação. Só na aparência é triste o
comércio de livros usados. Realmente, ele assegura, dans un
tumulte au silence pareil, uma vibração contínua, uma rotação
infatigável aos produtos do espírito, que espírito também são, e
não se sentiriam bem se agrilhoados eternamente à mesma prateleira
imóvel.
O
grande poeta estrangeiro oferece seu cântico ao grande poeta
nacional e este, de alma doadora por natureza, o passa a um terceiro
poeta, que, premido pela dura circunstância (e quem ainda não
desfez ou pensou em desfazer sua biblioteca, num dia negro?), o lança
à correnteza da rua São José, onde um quarto poeta o resgata —
por quanto tempo? Assim a poesia circula como um facho levado por
mãos que a prezam, e alguma coisa, no abismo, se salvará.
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
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