sexta-feira, 20 de maio de 2022

Irman


Oliver dirigia. Eu sentia tanta sede que começava a ficar enjoado. A parada que encontramos estava vazia. Era um bar amplo, como tudo no campo, com as mesas cheias de migalhas e garrafas, como se um batalhão houvesse acabado de almoçar e não tivesse havido tempo para limpar. Escolhemos um lugar próximo à janela. Sobre o balcão havia um ventilador em pé do qual não chegavam nem notícias. Precisava tomar alguma coisa com urgência. Oliver sacou um menu de outra mesa e leu em voz alta as opções que lhe pareciam interessantes. Um homem apareceu atrás da cortina de plástico. Era muito baixinho. Usava um avental amarrado à cintura e um trapo escuro de tão sujo pendurado no braço. Embora parecesse ser o garçom, demonstrava desorientação, como se alguém o tivesse colocado ali repentinamente e agora ele não soubesse muito bem o que devia fazer. Caminhou até nós. Cumprimentamos; ele apenas assentiu. Oliver pediu as bebidas e fez uma piada sobre o calor, mas não conseguiu que o sujeito abrisse a boca. Tive a sensação de que lhe faríamos um favor se escolhêssemos algo simples. Perguntei então se havia algum prato do dia, algo fresco e rápido, e ele disse que sim e se retirou, como se algo fresco e rápido fosse uma opção do menu e não restasse nada mais a dizer. Regressou à cozinha e vimos sua cabeça aparecer e desaparecer nas janelas que davam para o balcão. Olhei para Oliver, sorria; eu estava com sede demais para rir. Passou um tempo, muito mais tempo do que se leva para escolher duas garrafas geladas de qualquer coisa e trazê-las até a mesa, e afinal o homem apareceu outra vez. Não trazia nada, nem um copo. Eu me senti péssimo; pensei que se não bebesse algo naquela hora ficaria louco, e o que acontecia ao sujeito? Qual era a dúvida? Parou junto à mesa. Tinha gotas na testa e manchas e auréolas na camisa, sob as axilas. Fez um gesto com a mão, confuso, como se fosse dar alguma explicação, mas a interrompeu. Perguntei-lhe o que acontecia, suponho que num tom meio violento. Então se virou para a cozinha e depois, esquivo, disse:
É que não alcanço a geladeira.
Olhei para Oliver. Oliver não pôde conter a risada e isso piorou meu humor.
Como não alcança a geladeira? E como atende as pessoas, porra?
É que… – limpou a testa com o trapo. O sujeito era um desastre – minha mulher é quem pega as coisas na geladeira – disse.
E…? – tive vontade de bater nele.
Está no chão. Caiu e está…
Como no chão? – interrompeu Oliver.
É, não sei. Não sei – repetiu, levantando os ombros, as palmas da mão viradas para cima.
Onde ela está? – perguntou Oliver.
O sujeito apontou a cozinha. Eu só queria algo gelado e ver Oliver levantar acabou com todas as minhas esperanças.
Onde? – voltou a perguntar Oliver.
O sujeito apontou outra vez a cozinha e Oliver se afastou nessa direção, voltando-se uma e outra vez para nós, meio desconfiado. Foi estranho quando desapareceu detrás da cortina e me deixou sozinho, frente a frente com semelhante imbecil.
Tive de me esquivar para conseguir passar quando Oliver me chamou da cozinha. Caminhei rapidamente porque previ que alguma coisa estava acontecendo. Corri a cortina e entrei. A cozinha era pequena e estava repleta de caçarolas, panelas, pratos e coisas empilhadas nas prateleiras ou penduradas. Estirada no chão, a alguns metros da parede, a mulher parecia um monstro marinho deixado pela maré. Segurava com a mão esquerda uma concha de plástico. A geladeira estava pendurada mais acima, na altura dos armários. Era uma dessas geladeiras de lanchonete, de portas transparentes, que ficam sobre o piso e são abertas pela parte de cima, só que esta havia sido ridiculamente presa à parede com suportes, seguindo a linha dos armários e com as portas para a frente. Oliver me olhava.
Bem – disse –, já que veio até aqui, agora faça alguma coisa.
Escutei a cortina de plástico se movendo e o homem parou perto de mim. Era muito menor do que parecia. Acho que eu o ultrapassava em três cabeças. Oliver se agachou junto ao corpo, mas não se animava a tocá-lo. Pensei que a gorda podia despertar a qualquer momento e começar a gritar. Tirou-lhe os cabelos da cara. Os olhos permaneciam fechados.
Ajudem a virá-la – ordenou Oliver.
O sujeito nem se mexeu. Cheguei mais perto e me agachei do outro lado, porém mal conseguimos movê-la.
Não vai ajudar? – perguntei.
Tenho a impressão – disse o desgraçado – de que ela está morta.
Soltamos imediatamente a gorda e a ficamos observando.
Como, morta? Por que não disse que estava morta?
Não tenho certeza, é só impressão.
Disse “tenho a impressão” – disse Oliver –, e não que “é só impressão”.
Tenho a impressão de que é só impressão.
Oliver olhou para mim; sua cara dizia algo como “vou dar umas porradas nesse cara”.
Eu me agachei e tentei sentir o pulso na mão que segurava a concha. Quando Oliver se cansou de esperar, pôs os dedos na frente do nariz e da boca da mulher e declarou:
Esta aqui está mortíssima, vamos embora.
E daí, sim, o desgraçado se desesperou.
Como assim, vão embora? Não, por favor. Não posso com ela sozinho.
Oliver abriu a geladeira, tirou dois refrigerantes, me deu um e saiu da cozinha xingando. Fui atrás dele. Abri minha garrafa e acreditei que o gargalo nunca chegaria à minha boca. Tinha esquecido da sede que estava sentindo.
E aí, o que acha? – perguntou Oliver. Respirei aliviado. Logo me senti com dez anos a menos e com melhor humor. – Caiu ou foi derrubada? – continuou. Ainda estávamos perto da cozinha e Oliver não baixava a voz.
Não acredito que tenha sido ele – respondi em voz baixa. – Precisava dela pra alcançar a geladeira, não?
Ele alcança sozinho…
Acredita realmente que a matou?
Pode usar uma escada, subir na mesa, tem cinquenta cadeiras no bar… – respondeu, apontando ao redor. Parecia que falava alto de propósito, então baixei mais a voz.
Talvez seja um pobre coitado. Talvez seja realmente estúpido e agora está sozinho com a gorda morta na cozinha.
Você quer que o adotemos? Carregamos ele atrás e o soltamos quando chegarmos.
Dei mais uns goles e fiquei olhando a cozinha. O infeliz estava parado em frente à gorda e sustentava um banco no ar, sem saber muito bem onde colocá-lo. Oliver me fez um sinal para que voltássemos a nos aproximar. Vimos quando ele deixou o banco de lado, pegou um braço da gorda e começou a puxar. Não conseguiu movê-la nem um centímetro. Descansou uns segundos e tentou de novo. Procurou apoiar o banco sobre uma das pernas, um dos pés tocando o joelho. Subiu e se esticou o máximo que pôde em direção à geladeira. Agora que a alcançava na altura, o banco ficava muito distante. Quando girou em nossa direção para descer, nos escondemos e ficamos sentados no chão, contra a parede. Surpreendeu-me que não houvesse nada debaixo da bancada do balcão. Escutamos enquanto ele movia o banco. Suspirava. Houve silêncio e esperamos. Logo apareceu atrás da cortina. Sustentava uma faca com gesto ameaçador, porém quando nos viu pareceu ficar aliviado, e voltou a suspirar.
Não alcanço a geladeira – disse.
Nem nos levantamos.

Não alcança lugar nenhum – disse Oliver.
O sujeito ficou olhando para ele como se o próprio Deus estivesse parado diante dele para lhe mostrar a razão pela qual estamos neste mundo. Deixou cair a faca e percorreu com o olhar a parte de baixo da bancada vazia. Oliver estava satisfeito: o sujeito parecia transpor os limites da estupidez.
Olhe só, prepare uma omelete para a gente – disse Oliver.
O homem se voltou rumo à cozinha. Seu rosto imbecilizado pelo estupor refletia os utensílios, as caçarolas, quase toda a cozinha pendurada nas paredes ou sobre as prateleiras.
Ok, melhor não – disse Oliver. – Faça uns sanduíches simples, com certeza isso você pode fazer.
Não – disse o sujeito –, não alcanço a tostadeira.
Não precisa tostar, já percebi que não posso lhe pedir tanto. Só traga o presunto, o queijo e um pedaço de pão.
Não – disse –, não – voltou a repetir, negando com a cabeça; parecia envergonhado.
Ok, então traga um copo d’água.
Negou-se.
E como caralho conseguiu atender este regimento? – perguntou Oliver, apontando as mesas.
Preciso pensar.
Não precisa pensar, o que precisa é de um metro a mais de altura.
Não consigo sem ela…
Pensei em lhe trazer algo gelado, pensei que beber alguma coisa lhe cairia bem, porém, quando tentei me levantar, Oliver me deteve.
Ele tem de fazer sozinho – disse –, tem de aprender.
Oliver…
Diga algo que consegue fazer, uma coisinha, algo.
Levo e trago a comida que me dão, limpo as mesas…
Não parece – disse Oliver.
– …posso misturar as saladas e temperá-las se ela me deixa tudo pronto sobre a bancada. Lavo os pratos, limpo o piso, sacudo os…
Ok, ok. Já entendi.
Então o sujeito permaneceu olhando para Oliver, como que surpreendido:
Você… – disse – você pode alcançar a geladeira. Poderia cozinhar, alcançar as coisas para mim…
O que está dizendo? Ninguém vai alcançar as coisas para você.
Mas você podia trabalhar, tem a altura – deu um passo tímido em direção a Oliver, que a mim não pareceu muito prudente –, eu lhe pagaria – continuou.
Oliver se virou para mim.
Este imbecil está tirando uma com a minha cara, está tirando uma com a minha cara.
Tenho dinheiro. Quatrocentos por semana? Posso lhe pagar. Quinhentos?
Paga quinhentos por semana? E por que não tem um palácio ali no fundo? Puta imbecil…
Eu me levantei e parei atrás de Oliver, que ia dar-lhe uma porrada a qualquer momento; creio que era detido apenas pela altura do sujeito.
Vimos o infeliz cerrar os pequenos punhos como que compactando uma massa invisível que pouco a pouco se reduzia entre seus dedos. Os braços começaram a tremer. Ficou roxo.
Meu dinheiro não lhe diz respeito.
Oliver voltou a olhar para mim a cada vez que o outro lhe dizia algo, como se não pudesse acreditar no que estava vendo. Parecia se divertir, mas ninguém o conhece melhor que eu: ninguém diz a Oliver o que ele deve fazer.
E pela caminhonete que tem – disse o sujeito, olhando para a estrada –, pela caminhonete que tem eu diria que uso o dinheiro melhor que você.
Filho da puta – respondeu Oliver, e se lançou sobre ele. Consegui segurá-lo. O sujeito deu um passo para trás, sem medo, com uma dignidade que lhe conferia um metro a mais de altura, e esperou que Oliver se acalmasse. Eu o soltei.
Ok – disse Oliver. – Ok.
Ficou olhando para ele; estava furioso, porém havia algo a mais em sua calma contida, e então disse:
Onde está a grana?
Olhei para Oliver sem entender.
Vai me roubar?
Vou fazer o que me der na telha, monte de merda.
Que é isso? – perguntei.
Oliver deu um passo, pegou o sujeito pela camisa e o levantou no ar.
Onde está sua grana?
A força com que Oliver o levantara o fazia oscilar um pouco para os lados. Porém, ele o olhava diretamente nos olhos, e não abria a boca.
Oliver soltou-o. O sujeito caiu, arrumou a camisa.
Ok – disse Oliver. – Ou você traz a grana ou quebro sua cara.
Levantou o punho bem fechado e o deixou a um centímetro do nariz do sujeito.
Está bem – disse o sujeito; deu um passo para trás, lentamente. Cruzou o balcão em sentido contrário à cozinha e desapareceu por uma porta.
Um completo imbecil – disse Oliver.
Eu me aproximei de Oliver para que o sujeito não escutasse.
O que você está fazendo? Tem uma mulher morta na cozinha, vamos nessa.
Viu o que ele falou da minha caminhonete? O imbecil quer me contratar, ser meu chefe, compreende?
Oliver começou a revisar as prateleiras do balcão, a tirar garrafas, caixas, papéis.
Esse imbecil deve ter dinheiro por aqui.
Oliver, vamos embora. Você já está quite.
Encontrou uma caixa de madeira; era uma caixa velha com uma gravação à mão que dizia “Habanos”.
Esta é a caixa – disse Oliver.
Caiam fora – ouvimos.
O sujeito estava parado no meio da sala e segurava uma escopeta de cano duplo que apontava diretamente para a cabeça de Oliver. Oliver escondeu a caixa atrás de si. O sujeito destravou a arma e disse:
Um.
Já vamos –, disse, peguei Oliver pelo braço e comecei a caminhar. – Desculpe, realmente desculpe. E sinto muito por sua mulher também, eu…

Tinha de fazer força para que Oliver me seguisse, como as mães que puxam meninos manhosos.
Dois.
Passamos perto dele, a escopeta a um metro da cabeça de Oliver.
Sinto muito – voltei a dizer.
Já estávamos próximos da porta. Fiz com que Oliver saísse primeiro para que o sujeito não visse que levava a caixa.
Três.
Soltei Oliver e corri para a caminhonete. Não sei se ele teve medo ou não, mas não correu. Subiu na caminhonete, deixou a caixa sobre o assento, ligou o motor, e saímos na direção da qual tínhamos vindo.
Abra – mandou.
Oliver…
Abra, boiolão.
Peguei a caixa. Era leve e pequena demais para conter uma fortuna. Tinha uma chave de enfeite, como de cofre. Abri-a.
O que tem aí? Quanto? Quanto?
Dirija. Acho que são só papéis.
Oliver se virava de quando em quando para espiar o que eu olhava. Havia um nome gravado na tampa de madeira, “Irman”, e embaixo havia uma foto do sujeito muito jovem, sentado sobre umas malas num terminal; parecia feliz. Perguntei a mim mesmo quem teria tirado a foto. Também havia cartas encabeçadas com seu nome: “Querido Irman”, “Irman, meu amor”, poesias assinadas por ele, uma bala de menta transformada em poeira e uma medalha de plástico ao melhor poeta do ano, com o brasão de um clube social.
Há dinheiro? Sim ou não?
São cartas – respondi.
Com uma só patada, Oliver me tirou a caixa e a jogou pela janela.
O que você está fazendo? – eu me virei um segundo para ver as coisas já esparramadas pelo asfalto, alguns papéis ainda voando pelo ar.
São cartas – disse.
E um tempo depois:
Olha só… A gente tinha de ter parado aqui. “Leitão à vontade”, você leu? Que custava? – e se sacudiu inquieto no assento, como se realmente lamentasse aquilo.

Samanta Schweblin, in Pássaros na boca

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