segunda-feira, 23 de maio de 2022

Intimidade

Casal jantando. Barulho de garfos. Silêncio.
ELE Meu chefe hoje chegou pra mim e disse que…
ELA … Se você quisesse ele te transferia pra São Paulo.
Silêncio constrangedor.
ELA Você já me falou.
Silêncio.
ELE Você viu o que o Jorge escreveu no Facebook?
ELA Eu que te mostrei.
ELE Verdade.
Silêncio.
ELA Acho que tá na hora da gente terminar.
Silêncio.
ELE Eu posso, pelo menos, saber o porquê?
ELA Por quê? Por isso.
ELE Isso o quê?
ELA Eu sabia que você ia dizer “eu posso pelo menos saber o porquê” ao invés de só perguntar “por quê”.
ELE Eu sou realmente assim tão previsível?
ELA Eu também sabia que você ia dizer isso.
ELE É fácil dizer que você sabia que eu ia fazer uma coisa depois que eu já fiz.
ELA Pensa numa palavra.
Os dois falam juntos.
OS DOIS Mesa. Prato. Chão. Parede.
ELE Como é que você consegue?
ELA Você não consegue pensar numa coisa que você não esteja vendo na sua frente.
ELE Claro que consigo.
OS DOIS Plâncton. Peroba. Esfíncter. Michelangelo. Nunchaku.
ELE Como é que você fez isso?
ELA Você olhou pro seu prato e viu um peixe que te fez pensar em plâncton. Plâncton te lembra mar, que te lembrou as férias em Iguaba, que é uma palavra que te lembra peroba, que é uma madeira, que te fez pensar numa farpa, que te deu aflição e fez contrair o esfíncter, que te lembrou do mestre Splinter, que te fez pensar no Michelangelo, sua tartaruga ninja preferida, cuja arma era um nunchaku.
Ela tapa os olhos. Começa a narrar o que ele tá fazendo.
ELA Agora você tá levando a mão direita e colocando na testa. Com a outra mão você tá pegando o copo d’água. Você vai beber a água. Desiste de beber só porque eu falei. Você vai dizer alguma coisa.
OS DOIS Será que tem alguma coisa que eu possa fazer pra te surpreender?
Ele joga a água no rosto dela. Mas ela já estava com um guarda-chuva aberto, seca. Ela fecha o guarda-chuva.
ELA Não, meu amor. Acabou.

Gregório Duvivier, in Put some farofa

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