Quarteto
de Hindemith – por que mão aborda ele o tema que descobriu? Não,
caminha encostado à parede, escamoteia a melodia descoberta, anda ao
lado, nesse lugar onde tantas coisas acontecem. Às vezes escorre
pelo muro, em lugar onde não bate sol. Seu amadurecimento já seria
outra música – outro compositor faria música do amadurecimento
desse quarteto. Ele é antes do amadurecimento.
A
melodia seria o fato. Mas que fato tem uma noite que se passa
inteira num atalho, onde não tem ninguém, e enquanto dormimos?
História de escuridão tranquila, de raiz adormecida na sua força,
de odor que não tem perfume. O violino de Hindemith não conta
sobre, antes se conta, antes se desdobra. Ele não é grave, ele é
gravidade. E em nada disso existe o abstrato. É o figurativo do
inaudível. Quase não existe carne no seu quarteto, essa carne que,
embora transparente e vulnerável, está em Debussy, por exemplo.
Pena que a palavra nervos esteja ligada a vibrações dolorosas, que
“nervos expostos” sejam expressão de sofrimento. Se não, seria
quarteto de nervos. Cordas escuras que, tocadas, não falam sobre
“outras coisas”, “não mudam de assunto” – são em si e de
si, entregam-se iguais como são. Depois é difícil reproduzir de
ouvido a sua música, não é possível cantá-la sem tê-la
estudado. E como estudar uma coisa que não tem história? Mas se
lembrará de alguma coisa que também esta aconteceu de lado.
Terá compartilhado dessa primeira existência musical, terá, como
em tranquilo sonho de noite tranquila, escorrido com a resina pelo
tronco da árvore. Depois dirá: nada sonhei. Será que basta? Basta,
sim. E sobretudo essa falta de erro. Esse tom de emoção de
quem poderia mentir mas não mente. Basta? Basta, sim.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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