Tenho
uma saúde de ferro, mas andava sentindo umas dores de cabeça e fui
à farmácia comprar aspirina. Foi assim que conheci Genoveva. Ela me
perguntou para que eu queria aspirina.
“Para
dor de cabeça.”
“Aspirina
ataca o estômago.”
Se
ela trabalhava numa farmácia devia saber o que estava dizendo.
“Então
eu tomo o quê?”
“Tylenol.”
“Já
tomei esse troço e não passou a dor.”
Ficamos
batendo um papo, não tinha outros fregueses na farmácia. Ela morava
na rua do Camerino, logo no início, perto da farmácia, que ficava
na rua Larga, também conhecida como Marechal Floriano. Eu morava no
Santo Cristo.
Gostei
de Genoveva. Mesmo sem estar com dor de cabeça, voltei à farmácia
no dia seguinte.
“Já
acabou o Tylenol?”
“Vim
só dizer oi para você.”
“Oi.
Como é o seu nome?”
“Valdo.”
“Parece
nome de jogador de futebol. Você joga futebol?”
“Jogo.
Pelada. Todo brasileiro joga futebol.”
“O
meu é Geni.”
Depois
desse dia, começamos a namorar. O problema é que eu tinha que
namorar escondido dos meus irmãos e da minha mãe. Eu gostava da
Genoveva, mas ela era feia, nem muito gorda nem muito magra, nem
tinha a pele ruim, mas era feia. Não sei como explicar a feiura da
Genoveva. Se fosse uma garota bonita era mais fácil.
Já
namorávamos havia dois meses quando Genoveva me disse que a mãe
dela queria me conhecer. As confusões entre namorados sempre começam
quando as famílias se metem no meio. A velha ia achar uma porção
de defeitos em mim.
Mas
não foi nada disso. A velha disse:
“Genoveva,
seu namorado é muito bonito e educado.”
“Mamãe,
eu disse a ele que me chamava Geni, a senhora sabe que eu não gosto
desse nome.”
“Se
o moço vai casar com você tem que saber o seu nome verdadeiro.”
“Meu
nome também não é Valdo. É Oduvaldo.”
“Acho
Oduvaldo bonito” disse a garota.
“Eu
acho Genoveva mais ainda.”
Depois
a mãe foi ver televisão no quarto onde as duas dormiam. A casa era
pequena. Ficamos sozinhos no sofá da sala e eu não fiz nada. Não
fiz nada porque Genoveva era virgem e eu não queria mandar o cabaço
dela pro espaço, aquela coisa de a mãe falar em casamento me deixou
arrepiado. Tirar cabaço é coisa feita no impulso, e a mulher sempre
embucha. Aí o cara tem que casar. Eu até casava com Genoveva, se
não fosse a minha família. Todo mundo na minha casa era bonito.
Como é que eu ia chegar e dizer, olha aqui pessoal, vou casar com
esta moça feia? Ainda por cima, no momento nem estou trabalhando,
quem me sustenta é o meu irmão que tem um restaurante no Santo
Cristo. Ele é casado com uma dona que podia trabalhar no cinema.
Santo
Cristo é um lugar perfeito, nasci e me criei lá, não tem boteco,
loja, oficina, casa que eu não conheça, pelo menos por fora. Sei
onde se pode comer uma boa gororoba, claro que o melhor lugar é o
restaurante do meu irmão. Santo Cristo é um paraíso, eu podia
passar a vida sem sair do bairro nem para ir à praia. Como é que
fui comprar um remédio para dor de cabeça na rua Larga, se Santo
Cristo tem suas farmácias? Foi o destino. O destino arma essas
coisas pra cima da gente, colocou Genoveva no meu caminho.
“Você
não gosta do lugar onde mora?”
“Por
quê?”
“Nunca
me leva para passear em Santo Cristo.”
“Não
gosto daquele bairro. Prefiro a Tijuca. Já morei na rua dos
Araújos.”
Era
mentira. Eu detestava a Tijuca, mas não queria andar pelo Santo
Cristo e ser visto com Genoveva. Quem morava na rua dos Araújos era
uma meio prima minha, a Glorinha, nós namoramos até que eles se
mudaram para a Barra e eu inventei que isso complicou o namoro. Foi
um pretexto, ela era bonita, gostava de mim, mas eu não gostava dela
e dizem que filhos de primos podem nascer aleijados. Meus irmãos,
apesar de detestarem a nossa tia, que era irmã da minha mãe por
parte de pai, achavam que seria um casamento perfeito para mim. O pai
dela, sócio de uma companhia de ônibus na Baixada, podia me arrumar
um emprego, já que eu não queria ser garçom no restaurante do meu
irmão. Eu não era daqueles caras que inventam que estão
desempregados porque não encontram emprego, eu não encontrava
mesmo, só não queria ser garçom.
“Você
não vai me apresentar sua família? Você nunca fala dela.”
“Qualquer
dia desses.”
“Eu
te apresentei minha mãe. Não tem pai e mãe?”
“Sou
igual a você, só tenho mãe. Mas ela não gosta de receber visita.”
“Também
não tem irmãos?”
“Irmãos?
Eles estão viajando.”
Você
nunca conta uma mentira apenas. Vem sempre uma porrada delas, de
enxurrada. Acho que eu dizia pelo menos uma mentira por dia para
Genoveva. Eu gostava dela, mas não podia gostar dela, uma mulher
bonita pode gostar de um homem feio, mas nenhum homem pode gostar de
uma mulher feia, o mundo é assim. Se eu tivesse dinheiro para sair
de casa, fugia com ela. E o trambolho da mãe, o que a gente ia fazer
com aquilo? Quem sustentava a velha era a Genoveva, com a merreca que
ganhava na farmácia, e olha que ela era a gerente.
Como
diz o ditado, é mais fácil pegar um mentiroso do que um coxo. Coxo
é uma espécie de perneta. Um dia fui apanhar Genoveva na farmácia
na hora do almoço, íamos comer um sanduíche com caldo de cana num
pé-sujo da rua do Acre e descíamos pela rua Larga quando ouvi uma
voz:
“Oduvaldo,
Oduvaldo.”
Reconheci
a voz, fingi que não ouvi. Continuei andando, mas Genoveva parou,
olhou para trás.
“Tem
uma moça te chamando.”
“Moça?
Deixa pra lá, vamos embora.”
Mas
a minha irmã já tinha chegado perto.
“Hoje
é o aniversário de Clodoaldo. Não vá se esquecer. Oito horas.
Você é meio cabeça-tonta.”
Lá
em casa todos os nomes de homem terminam em aldo. E o nome das
mulheres em alva.
“Não
vai me apresentar a sua amiga?”
“É
a moça da farmácia.”
“Eu
sou irmã dele. Marialva, muito prazer.”
“Muito
prazer, Geni. Pensei que estava viajando.”
“Viajando?
Quem me dera.”
“O
que você está fazendo aqui na rua Larga?” perguntei, irritado.
“Vim
comprar o presente do Clodoaldo. Você está aborrecido com alguma
coisa?”
“Temos
que ir, tchau” eu disse, puxando Genoveva.
O
caldo de cana naquele dia estava com gosto ruim. Genoveva não comeu
o sanduíche. Disse estar sem fome e não falou mais nada. Quando
voltávamos para a farmácia, me perguntou:
“Por
que você não me apresentou como sua namorada? Moça da farmácia?
Moça da farmácia?”
“Eu
não quis, sabe como é, dizer assim, sem mais nem menos, esta é
minha namorada, minha irmã ia dizer, meu irmão tinha uma namorada e
não apresentava para a gente. Sabe como é, ia ficar esquisito.”
“Ela
não estava viajando? Ou você está me engrupindo?”
“Que
é isso, Genoveva? Está zangada?”
“Estou
zangada, sim.”
“Eu
um dia te apresento a eles.”
“Por
que não me leva no aniversário do, do, como é o nome dele? Do seu
irmão.”
“Clodoaldo.
Assim, sem mais nem menos?”
“Como,
sem mais nem menos? Tem que chegar uma hora para isso.”
“Não
sei se a hora certa é numa festa de aniversário sem graça, com
bolo e parabéns para você.”
Eu
e o Clodoaldo fazíamos anos no mesmo mês, mas Genoveva não sabia
disso, eu não podia dizer para ela que minha família ia dar uma
festa para mim nos próximos dias, no meu aniversário. Eu não podia
levar a garota na minha casa. Família é uma merda.
“Você
pensa que eu sou boba, não pensa?”
“Que
é isso, Genoveva?”
“Pára
de dizer o que é isso. Isso é isso mesmo. Não me leva até a
farmácia, quero pensar, você está me atrapalhando.”
Ela
saiu correndo, correndo mesmo, como se estivesse disputando os cem
metros rasos.
Cheguei
às oito em ponto na festa do Clodoaldo, no restaurante dele, fechado
para os fregueses naquela noite. Entre os presentes que ganhou, o
único mixuruca foi o escudo do Vasco que dei a ele, mas Clodoaldo
era um vascaíno fanático e gostou do escudinho, além disso sabia
que eu estava na pindaíba. Fiquei espiando a minha família, todo
mundo elegante, todos bonitos e bem de vida, a mulher do Clodoaldo
era bonita, a do Reinaldo, que tem uma oficina mecânica, era bonita,
até minha mãe, que era velha, era bonita, o único que era apenas
bonito e não estava se dando bem na vida era eu, mas beleza não põe
mesa, a menos que você seja mulher, como dizem.
Além
da minha mãe e dos meus irmãos, estavam na festa os amigos deles.
Eu não tenho amigos. Vá lá, os amigos deles são também um pouco
meus amigos. Todo mundo bebeu, teve cantoria, gargalhadas, tudo numa
boa, eu também bebi, mas não adiantou nada, a cerveja e o vinho
tiveram o mesmo efeito que chá de agrião, só me deixaram enjoado.
“O
Oduvaldo arranjou uma namorada”, anunciou Marialva, lá para as
tantas.
Todo
mundo caiu na minha pele. Disseram um monte de besteiras, contaram
piadinhas.
“Esse
cara é um moita”, disse Ronaldo.
“Quem
é a moça?” perguntou minha mãe.
“Trabalha
numa farmácia”, disse Marialva.
“A
Jaqueline? Aquela garota é um anjo.”
“Ela
não trabalha na farmácia daqui, mãe. Acho que é numa das
farmácias da rua Larga. Os dois estavam andando pela rua Larga. O
nome dela é Geni.”
Ouvi
mais um monte de piadinhas idiotas. Marialva não contou que Geni era
feia. Para falar a verdade, Marialva era legal, estava noiva de um
médico, ia casar com ele, o cara estava na festa, era meio prosa,
sabe como são esses médicos, mas não era mau sujeito, muito gentil
com todos nós, mas graças a Deus eu não precisava dos serviços
dele, o cara era médico de hemorroidas. Além de bacana, o puto
também era bonito. Porra, tinha gente feia pra caralho no Brasil,
menos na minha família? Que merda.
No
dia seguinte passei na farmácia. Genoveva estava emburrada.
“O
senhor deseja algum produto?”
“Quero
falar com você.”
“Não
temos nada a conversar. Estou muito ocupada” disse, virando as
costas e se escondendo no fundo da farmácia.
Eu
estava numa sinuca de bico. Não podia apresentar Genoveva à minha
família, eu ia morrer de vergonha, estava também com vergonha de
mim mesmo, de ser um babaca, acho que era porque perdi o meu emprego
e não conseguia arranjar outro, larguei o colégio no meio porque só
gostava de jogar bilhar e bater bola, minha mãe e os meus irmãos
deviam me encher de porrada, mas passavam a mão na minha cabeça.
Fiquei
rondando a porta da farmácia até a hora de fechar. Quando Genoveva
saiu, cheguei perto dela e disse:
“Quero
te pedir perdão.”
Nenhuma
mulher resiste quando um homem pede perdão. Ela olhou para mim, viu
alguma coisa na minha cara e me perdoou.
“Está
perdoado” disse, me dando um beijo no rosto...
Perdão
eu pedi de verdade, mas o que disse em seguida era meio verdade meio
mentira.
“Não
te apresentei minha família porque eles são todos metidos a besta,
só por isso.”
Eles
eram mesmo metidos a besta, até minha mãe, que se chamava Ednalva,
era metida a besta, mas o motivo não era só esse, era como a minha
família ia reagir quando visse a feiura de Genoveva.
“E
qual é o problema de eles serem convencidos? Qual é o problema?”
Consegui
driblar o assunto e me separei dela numa boa, mas Genoveva parecia
preocupada com alguma coisa.
No
dia seguinte ao aniversário de Clodoaldo, me deu uma coisa e eu
chamei Marialva para uma conversa particular. Disse a ela que estava
apaixonado por Genoveva. Se você quer abrir o seu peito, abra para
uma mulher. Se ela for sua irmã, é claro. Mãe é mais complicado,
mãe é boa numas coisas, noutras é melhor a irmã.
“Aquela
moça da rua Larga?” perguntou Marialva.
“Aquela.”
“Muito
apaixonado?”
“Loucamente
apaixonado. Não posso viver sem ela. Sei que ela é feia, mas não
posso viver sem ela.”
“Existe
gente mais feia do que aquela moça.”
Depois,
Marialva não disse mais nada. Mordeu o beiço de baixo, só isso.
Fiquei
andando pela rua, passei na porta do bilhar, resolvi que não ia
jogar sinuca nunca mais, nem pelada de futebol, sei que ia sofrer por
isso, mas a minha vida já estava mesmo um lixo. Ainda por cima, na
quinta-feira era o dia do meu aniversário; a minha família sempre
fazia uma festa para mim e eu não ia levar a Genoveva. Se ela
soubesse, eu estava frito, Genoveva se chateou só porque não a
convidei para o aniversário do Clodoaldo. Eu estava no mato sem
cachorro.
Fiquei
dois dias sem ver Genoveva. No dia do meu aniversário, cheio de
remorso, dei uma passada na farmácia. Pensei que ela ia me dar um
esporro, mas me recebeu com um sorriso. Achei esquisito, mas a gente
nunca sabe o que uma mulher está pensando.
“Passei
aqui só para te dizer que te amo.”
“Mais
alguma coisa?”
“Não,
só isso. A gente se vê amanhã?”
“Está
bom, a gente se vê amanhã” disse ela, sempre rindo. Parecia ter
pirado completamente.
O
meu aniversário foi na casa da minha mãe. Eu morava na casa da
minha mãe, acontece com os caçulas, ainda mais temporão e
desempregado, como eu. Estava a turma toda lá, meus irmãos, as
mulheres dos meus irmãos, o doutor da Marialva, aqueles bestalhões
todos. A festa mal havia começado quando minha mãe disse:
“Marialva,
vai pegar o presente do Oduvaldo.”
Minha
irmã desapareceu por algum tempo.
A
campainha da porta tocou, e todos começaram a cantar parabéns para
você. Aquela musiquinha me dava nojo.
Então
minha mãe abriu a porta e surgiu Marialva, puxando Genoveva pela
mão.
“Genoveva...?”
eu disse, surpreso.
“Não
tem tanta farmácia assim na rua Larga, foi fácil encontrar a moça”
disse Marialva.
Tive
vontade de chorar, acho que é porque estava desempregado, e sujeito
desempregado fica fraco. Para falar a verdade, meus olhos ficaram
úmidos quando abracei Genoveva. Depois abracei os meus parentes e
todos cobriram Genoveva de beijos. Minha mãe trouxe um bolo da
cozinha, cheio de velas acesas.
Estou
casado com Genoveva. Minha família gosta muito dela, dizem que é
meiga, prestativa e cuida bem de mim. Trabalho como garçom no
restaurante do Clodoaldo. Não é tão ruim assim, ser garçom, e o
meu irmão me ofereceu sociedade. Estou dando duro, sem hora para
entrar nem sair.
Quem
foi que disse que família é uma merda?
Rubem Fonseca, in Pequenas Criaturas
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