Como
fazíamos todos os dias, menos aos domingos, andávamos de bicicleta
lado a lado na academia enquanto conversávamos sem parar. A música
barulhenta não nos incomodava.
“É
melhor ver do que ser visto. Mas o Updike disse: ‘Ou você vê, ou
é visto’, como se fossem alternativas excludentes. Mas há uma
ocasião em que se pode ver e ser visto, de maneira simultânea e com
a mesma intensidade. E nessa situação, uma coisa não é melhor do
que a outra.”
“Não
complica as coisas, Luiz Carlos.”
“Foi
você quem me provocou, ao perguntar se é melhor ver do que ser
visto.”
“Mas
não precisa tratar desse assunto como se fosse uma ciência, fazendo
uma exposição preliminar dos seus princípios.”
“Você
está me gozando?”
“Por
que a Renata deu um beijo na sua boca?”
“O
quê? Ela me deu um beijo no rosto. Todo mundo se beija no rosto.”
“A
boca dela roçou na sua.”
“Esse
cacófato é horrível. Vamos voltar ao nosso assunto. Você me
perguntou o que era melhor, ver ou ser visto.”
“Não
tergiversa. Você é o rei do subterfúgio. Por que a Renata te
beijou na boca? Você está tendo um caso com aquela mulher?”
“Que
absurdo, você está maluca? Na hora provavelmente o nosso rosto se
desencontrou, mas nem notei que a boca dela roçou na minha. Posso
continuar?”
“Você
deve sentir muita saudade do tempo em que foi professor. Da audiência
cativa.”
Calei-me.
Não era a primeira vez que Daniele me acusava de enfadonho. Fiquei
pedalando sem olhar para ela.
“Você
anda muito não-me-toques.”
“Como
assim?”
“Você
sabe que sou ciumenta. Para que essas frescuras, fazendo caras?”
“Ciumenta
e irônica.”
“Sempre
fui. De repente você fica todo abespinhado.”
“Daqui
para a frente você só pode me perguntar se gosto de escargô ou de
amarelo. De gustibus et coloribus...”
“Você
gosta de amarelo? Nunca lhe perguntei isso.”
“Não.”
“Eu
gosto.”
“Viu
como é fácil? Acabou o assunto.”
Fiquei
acompanhando os movimentos da turma no step. Daniele não gostou do
meu silêncio.
“Diz
alguma coisa.”
“Você
acha que vai chover?” perguntei.
Ela
não respondeu.
“Você
sabe, por acaso, a previsão do serviço de meteorologia?” insisti.
“Não
enche.”
“É
a ironia? O seu repertório acabou?”
“Estou
com aquela mulher atravessada na garganta. E você sabe muito bem por
quê.”
“Não
sei. Falando sério, não sei.”
“Olha
para a minha barriga.”
“Estou
olhando. E daí?”
“Você
ontem, na cama, me disse que eu estava com umas gordurinhas extras na
barriga. Foram essas exatamente as suas palavras, gordurinhas
extras.”
“E
daí?”
“Você
gostaria que eu tivesse a barriga da Renata, uma tábua de lavar
roupa. E ela usa aquelas malhas apertadas para me humilhar. Outro dia
ela me disse, depois de me olhar de alto a baixo, ‘Você deve
gostar muito de doce’. Me contive para não mandar ela à merda.”
“Onde
foi que você viu uma tábua de lavar roupa?”
“Entendi
muito bem o significado do seu recado de ontem. Essas gordurinhas vão
fazer você perder o tesão por mim.”
“Fala
mais baixo.”
“Não
se preocupe, essas narcisistas só ouvem as imagens delas, nos
espelhos.”
“Já
vi que você gosta mais de ver. Aliás essa é uma das suas virtudes,
saber ver.”
“E
sei ouvir, também. Umas gordurinhas extras na barriga.”
“Ouvir,
você não sabe.”
“Não
quero brigar com você, Luiz Carlos. Vamos fazer as pazes?”
“Vamos.”
“E
o que é mais importante, saber ver ou saber ouvir?”
“Está
vendo, Dani? Você faz perguntas complicadas depois me acusa de ser
prolegomênico.”
“Existe
essa palavra?”
“Sei
lá. Devia existir.”
“Não
acusarei você dessa coisa horrível. Uma última pergunta: os alunos
gostavam de você?”
“Me
achavam um pouco chato.”
“As
garotas também?”
“Menos.”
“Você
namorava as alunas?”
“Não.”
“Assunto
encerrado. Vamos voltar ao que estávamos conversando, ver e ser
visto.”
“Você
não está me achando muito chato?”
“Um
pouco. Como os seus alunos.”
“Você
quer ouvir assim mesmo?”
“Quero.
Não sei ouvir, mas quero.”
“Vamos
lá. Há quem diga que é melhor ver do que ser visto.”
“Eu
também acho. Através do sentido da visão posso adquirir
conhecimentos, perceber o mundo que me cerca. Ser vista não me
acrescenta nada.”
“Depende.
Se você for vaidosa...”
“Isso
não vale coisa alguma.”
“Também
depende. Agora a frase do Updike: ‘ou você vê ou é visto’.”
“Também
é fácil de entender. Quem quer ser visto não vê nada do mundo à
sua volta. Está com uma venda nos olhos.”
“Vou
dar um exemplo que contradiz isso. A Renata, fazendo o step e se
olhando no espelho, está vendo e sendo vista. Ela faz as duas
coisas. Não está tapada com uma venda nos olhos.”
“Como
assim?”
“Ela
está se vendo em movimento, analisando a linguagem gestual, o seu eu
se expressando, sua imaginação sendo estimulada, o mundo não está
à sua volta, está dentro da sua cabeça. Existe um mundo
inexplorado dentro da nossa mente. Ela está vendo e ao mesmo tempo
sendo vista, ela por ela mesma. Ocorre nela algo que podemos chamar
de transcendente, ela está sendo o que está vendo, e vendo o que
está sendo”
“A
palavra transcendência devia ser proibida, já a vi ser usada até
para descrever um bobó de camarão. E outra coisa, essa mulher não
tem nada dentro da cabeça.”
“Dani,
nós fizemos as pazes.”
“Você
acha a Renata bonita?”
“Não
pensei nisso.”
“Deixa
de ser cretino, você fica aqui na bicicleta espiando ela bailar no
step ao som dessa música cafona. Ela só tira o olho da própria
imagem no espelho para olhar você. Pensa que não notei isso tudo?
Anda, responde. Olha para ela e responde, você acha a Renata
bonita?”
Olhei
para Renata se contemplando no espelho, fascinada com sua beleza e
elegância, fazendo os movimentos num ritmo perfeito, ao som do
bate-estaca transmitido pelos alto-falantes.
“Mais
ou menos.”
“Fala
a verdade, eu não me incomodo, sou superior, Renata é uma burra,
ignorante, não posso ter ciúme de uma mulher dessas. Anda, me diz,
ela é mais bonita do que eu?”
“Vocês
são diferentes. Ela é loura, de olhos azuis, você é morena, de
olhos castanhos.”
“Eu
não sou morena, sou mulata, com muito orgulho”
“Isso.
Vocês são diferentes.”
“Os
homens são todos uns filhos da puta. Chegou a hora de trocar uma
mulata com gordurinhas extras na barriga por uma loura sarada de
olhos azuis, é isso?”
“Você
me interpretou mal.”
“A
vaca não tira o olho de você.”
Daniele
saiu da bicicleta e foi até perto de Renata, que fazia exercícios
com as outras mulheres do grupo, no meio do salão cercado de
espelhos refletindo imagens de todos os ângulos.
“Olha
aqui, Renata, chega de dar em cima do Luiz Carlos, você sabe que ele
é comprometido comigo.”
Renata
parou, mas observava Daniele pelo espelho. As outras continuaram a
fazer os movimentos, acompanhando a música e a discussão.
“Você
ouviu? Não vou falar uma segunda vez.”
“Está
me ameaçando?” perguntou Renata.
“Entenda
como quiser.”
Renata
veio em minha direção. Continuei pedalando, onde ia me esconder?
Meu rosto no espelho era o de um cachorro com o rabo entre as pernas.
“Olha
aqui, Luiz Carlos, vê se dispensa logo essa louca, já está na hora
de resolver esta situação” disse Renata.
Daniele
agarrou Renata pelos cabelos.
“Eu
avisei, não avisei?”
As
duas rolaram engalfinhadas pelo chão. O instrutor da academia parou
a música. A turma do deixa disso separou, com dificuldade, as duas
mulheres.
“Você
vai continuar com essa vagabunda, Luiz Carlos? Você pediu um tempo,
o seu tempo acabou” gritou Renata.
“Professorzinho
de merda” berrou Daniele, “fodendo essa loura burra pelas minhas
costas.”
Elas
se agarraram novamente.
Peguei
o meu celular no escaninho e fui embora, aquela comoção me
perturbava. As mulheres são todas loucas. Cercadas por espelhos, se
alucinam ainda mais.
A
alma do ser humano mudou quando surgiu o espelho. E os homens são
mesmo uns filhos da puta.
Rubem Fonseca, in Pequenas Criaturas
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