segunda-feira, 16 de maio de 2022

A estória de Vênia


Vênia desceu no muro por entre os ramos enlaçados da trepadeira. Baixou em linha reta e, trinta centímetros antes do solo, pulou elegantemente. O ventre largo e chato de um amarelo sujo e baço roçou na areia fulva. Vênia arqueou ainda mais as patas curvas e musculosas, agachando-se, dissimulada, arrastando-se como um pequenino jacaré de brinquedo. Bruscamente estendeu, numa projeção de dardo, a tira estreita, fina e longa de sua língua vermelha. Apanhara um casal de mosquitos. Depois um tonto moscardo. Três moscas idiotas que não ganharam altura no momento preciso.
Terminado o desjejum andou diante. Deu uma carreirinha nervosa e saltou, airosa, para cima de uma pedra. Ficou parecendo, na claridade matinal, um bronze. Balançou para baixo e para cima, repetidamente, a cabecinha triangular cinza-esverdeada, concordando que a vida é agradável e há momentos felizes na existência de um Hemidactylus mabuia, lagartixa de muro de quintal sem trato.
É uma soberba lagartixa de quarenta meses bem vividos, robusta, audaciosa, sólida no curto pescoço e nas patas fortes e flexíveis, corredora olímpica, saltadora esplêndida, caçadora admirável. Vênia é exemplar macho, sabendo lutar e manter a fêmea na carícia decisiva de sua pressão mandibular. Sua velhíssima família, as Geckonídeas, garante vitalidade e saúde normais. Da ponta da cabeça à extremidade da cauda mede uns dezessete centímetros. Talvez mais. É larga, gorda sem excesso, movendo-se com rapidez e precisão técnica.
Há alguma variedade no desenhos dorsais. Vezes, ligadas ao fio branco que lhe percorre todo corpo, estão manchas claras que lembram miosótis. Noutros tipos, as duas riscas longitudinais seguem ponta a ponta, paralelas e negras, ressaltadas no fundo cinza do corpanzil.
Vênia é uma consequência da curiosidade geográfica aliada à exploração do negro proletarismo africano. É uma resultante econômica, política e social de outrora.
Sua terra antiga é a África Ocidental. Digamos que ama os territórios portugueses da Guiné, do Congo, de Angola. De lá é que emigrou embarcando clandestinamente nos navios negreiros desde o século XVI.
Que fora Vênia quinhentista e seiscentista fazer a bordo dos brigues e dos bergantins carregados da gente escrava que vinha para o Brasil, é que não posso deduzir, se não aceitar o impulso da verificação geográfica como tiveram Ibne Batuta, Marco Polo, Vasco da Gama e Cristovão Colombo. Atravessou o Atlântico alimentando-se perfeitamente das sevandijas vivas das naus e desceu, tranquila, nas praias de areia do Nordeste brasileiro, onde quer que despejassem a bagagem humana consignada ao esforço criador e duro. Nordeste e Sul. O transporte de Vênia encostava em muita terra e nesta o lacertíleo penetrava, aceitando a nova pátria. Devia ter sido problema insolúvel a viagem de machos e fêmeas e a coincidência dos casais para a multiplicação da espécie que se nacionalizou, depressa e abundantemente. Certo é que estes colonos trouxeram companheiras em número suficiente e ganharam o Brasil, com decisão e conforto. Em parte explica-se a adaptação fácil pelo temperamento amável e concordante de Vênia. Ainda hoje repete o gesto afirmativo a qualquer pensamento. Não é possível repelir-se um hóspede assim gentil e conformado.
Agora Vênia abandonou o pedestal e recomeçou a caçada com precaução e vagar. Cada salto sobre a vítima é antecedido por uma série preparatória de movimentos lógicos de acomodação no terreno, visão da presa, cálculo da aproximação pela ângulo de mais provável segurança no rendimento. Vezes fica no nível na menor elevação, rente com os montículos de areia, possivelmente invisível e aparentemente imóvel mas está se deslocando, em frações de milímetro, linha a linha, na perfeita consciência de sua responsabilidade caçadora. Este processo de acercamento, de rojo, silencioso, avançando sempre, corrigindo os enganos com paradas e simulações imediatas, denuncia a respeitável antiguidade, aperfeiçoamento e seleção de Vênia nos seus métodos de captura de besourinhos e moscas distraídas.
Esta longa e visível capitalização de experiência demonstra a velhice espantosa da espécie e como as maneiras de obter a caça foram sendo filtradas pela crítica obscura e feliz do instinto.
Se Vênia se dignasse responder a um questionário, daria outra tradução ao cômodo “instinto” como nos referimos à sua inteligência que não é uniforme e mecânica mas atua de acordo com os tipos que persegue e as horas de luz e penumbra em que exerce a nobre arte de viver à custa da morte alheia.
Vênia sabe os hábitos e recursos de cada uma de suas peças de caça habituais, como nenhum caçador conseguiria imitá-la. Depende da rapidez com que o inseto possa elevar-se e mesmo a duração de sua trajetória antes de ficar fora do alcance de Vênia, a intensidade do seu salto e a posição tomada para desfechá-lo. Há besouros que sobem quase em vertical e outros numa diagonal relativamente vagarosa. Vênia pula como uma fera esfaimada sobre o primeiro e não tenta segurá-lo se o golpe falhou. Sabe que o besouro está muito além de suas mandíbulas. Para o segundo a técnica é diversa e a lagartixa salta, duas ou três vezes, confiando apanhar o inseto antes que este ganhe distância suficiente para livrar-se.
Nas horas do crepúsculo matutino e vespertino há sempre uma nuvem de mosquitos esvoaçando num determinado nível próximo ao solo úmido. Vênia só se apresenta quando o cortejo dos mosquitos baixa a uma conveniente posição para as sucessivas dentadas e lançamentos de língua. Conhece ela que os mosquitos não fogem imediatamente e que ficarão um ou dois minutos volteando o mesmo ponto e em situação acessível à captora. Aproveita este tempo correndo e pulando, focinho no ar, dentro do círculo limitado sobre o qual sua caça volteia.
Para outros insetos de vulto a forma é mudada e a lagartixa dissimula sua vigilância em todos os objetos que a separam da vítima. Caco de telha, rumo de areia de formigueiro, arbustos, folha amassada de papel, tufo de capim são outros tantos esconderijos, abrigos provisórios, postos de escuta e observação, descrevendo curvas, zigue-zagues, evitando rumor e percepção direta do inseto que continua, tranquilo, sua refeição infeliz.
O final desta manobra é um arranco irresistível, no momento exato que deveria ser iniciado sobre o objetivo. Não sei de caçador mais veterano de mata e brejo que superasse Vênia na cuidadosa precaução com que acompanha sua caça. E chamamos a este conjunto de raciocínios acumulados no tempo e exercitados na justa oportunidade, “instinto”. Qualquer caçador abatendo um par de marrecas numa lagoa ou pescando um peixe mais avultado não admitiria que “instinto” fosse a palavra premiadora do seu sucesso.
Não posso afirmar que outra Vênia repetisse a sabedoria desta de minhas relações pessoais. Que todas têm a solução idêntica para os momentos decisivos de caça, não devo afirmar.
Pela manhã a sombra da folhagem da mangueira se recorta em manchas negras quase salientes pela intensidade da luz. Uma manga madura, de casca esfarelada, mostra convidativamente o conteúdo amarelo e mole. Dois besouros estão almoçando, as trombas mergulhadas na polpa úmida, saciando-se. Vênia veio vindo, parando de nódoa em nódoa sombria, ocultando-se nelas, detendo-se como para manter a tranquilidade do ambiente. Dois segundos de parada, e recomeçava, rente ao chão, a marcha coleante, pondo a cabeça de sáurio na areia, os dois olhos redondos e fixos focando os convivas desprevenidos. Três palmos perto deu a arrancada definitiva, entortando a cauda rugosa e áspera, rubra garganta entreaberta e voraz. Um dos besouros foi apanhado pelo meio e o segundo arrastou-se, lambuzado e capenga, sacudindo desesperadamente as asas molhadas pelo sumo da fruta, sob os élitros erguidos como protetores, enfiando as finas patas na areia solta e fina. Vênia deglutiu o primeiro comensal e antes que o segundo pudesse desprender-se no voo, derrubou-o com uma dentada em falso, segurou-o na boca acerada e voltou depressa para a penumbra do muro.
Em poucos minutos modificara sua maneira de caçar de acordo com as circunstâncias. Instinto... Ou, como sugere Bouvier, “estímulo”...
Edmond Jaloux raciocinava mais claro que muitos estudiosos especialistas: “ – Opomos o critério humano ao animal porque aplicamos a palavra critério a uma série de raciocínios que seguem determinada ordem, e ignoramos em que consiste o critério animal. Se observamos, todavia, os seres irracionais teremos de reconhecer que cometem muito menos erros em sua vida que nós outros, o que parece bastante humilhante. É raro que um animal que as circunstâncias obriguem a sofrer certos equívocos, devidos a uma imprudência de sua parte, não a evite pela segunda vez se as circunstâncias o colocam diante do mesmo perigo. Ao contrário, em nossa espécie, um indivíduo que sofreu dano considerável pode encontrar-se pouco depois ante igual alternativa e novamente sofrer o mesmo dano, e o erro se prolonga assim indefinidamente”.
Os únicos erros, ou melhor, enganos, que um animal comete são os devidos à idade e baseados na sua vaidade de parecer moço e ágil. Não podemos, evidentemente, jogar-lhe a primeira pedra.
Certas lagartixas que atingiram idade provecta erram os saltos e mesmo caem do muro apesar de suas patas com uma espécie de ventosas fixadoras nas superfícies lisas. Pulando de um para outro ângulo do muro, nas esquinas, vêm ao chão com estrépito disfarçando a legitimidade da queda com uns ares esportivos de intenção saltadora. Uma velha lagartixa negra, que deve ser a matriarca da região, escorrega constantemente e fica no solo balançando a cabeça veneranda com um jeito de quem solicita aplausos para sua destreza. Conheço, noutros planos, gente velha com a mesma mania.
Pouco perderam de sua agilidade para caçar e da sagacidade nas manobras de acercamento da presa. Apenas certo tipo de caça está abandonado porque suas forças não correspondem às exigências da captação. A vaidade obriga-as a cometer o erro de perseguir e perder a comida que sabe escapar-lhes com naturalidade. É a deformação psicológica da autocrítica pessoal permitindo a certos gloriosos dançarinos de outrora, fisiologicamente aposentados, que, na embriaguez dos excitamentos da plateia, dancem esquecidos da impossibilidade de manter a leveza, graça e brilho rítmico do passado distante. Não se convencem que o tempo passou e seus músculos não correspondem à intenção íntima de elevação e força criadora coreográfica. Identicamente, velhos tenores, barítonos e músicos têm estas zonas de vácuo no cérebro, talqualmente as lagartixas que se supõem aptas para os saltos limpos, dos anos decorridos. Já assisti no Teatro Municipal do Rio de Janeiro ao maduro sucessor de Nijinsky submeter-se a esta demonstração negativa de sua esgotada capacidade de força rítmica. Não é demais que as lagartixas repitam ou deem exemplos de tais erros de julgamento individual.
Vênia não é exclusivamente insetívora como registram os livros que a estudam. Gosta de mergulhar a língua no mamão maduro. Degustação rápida mas visivelmente deleitosa. Vezes procurando o mamão espapaçado depara caça inesperada e sabe aproveitar a boa fortuna.
Uma característica desses animais é a sua inesgotável capacidade de absorver alimentos. Jamais estão fartos ou displicentes para um bom-bocado fortuito. Comem, numa jornada diária, duas ou três vezes o próprio peso. Nunca pude ver Vênia com indigestão ou nos rigores da dieta recuperadora. Está sempre com o estômago em forma e apetite disponível.
O desejo amoroso nos humanos independe de sua aptidão fecundadora. E também do tempo. Meninos apaixonam-se por velhas e anciões por mocinhas. Vice-versa. Em qualquer época do ano estão em amor potencial ou funcional. Vênia, bem ao contrário, possui seu tempo, tempo útil em que a espécie recebe a contribuição individual de seus componentes para os misteres da perpetuação. Não há perda da ânsia criadora nem desperdícios da capacidade de sedução para a conquista da indispensável companheira. Tudo está regulado com segurança e previsão e os resultados pertencem à classe matemática das certezas e das materialidades infalíveis.
Vênia começa no verão a realçar sua decoração dorsal que se torna mais nítida e visível. Pode ser um elemento de apelo, chamamento de atenção, sugestão de escolha para as fêmeas disputadas, ou armadura defensiva para os inevitáveis rivais do prélio sexual, desenhos mais notórios para assustar, distanciar o competidor ao mesmo objeto. Vênia nunca permitiu informação a respeito e os estudiosos escrevemconforme deduções próprias e naturalmente dignas de crédito.
Liga-se à exasperação amorosa de Vênia um elemento da organização administrativa do seu território, onde não pode residir outra lagartixa idosa e masculina. É fácil constatar a existência de animais menores e em idade pueril, se me permitem o preciosismo. Na época da ânsia sexual os machos invadem todas as fronteiras e os combates são ferrenhos e ferozes porque se unem os dois ciúmes, da fêmea desejada e da terra possuída. Vênia deve bater-se pela Dama e pela Grei...
Independentemente da fase da fecundação, em que o odor do sexo atordoa as possantes lagartixas, há uma ou outra visita bem dispensável de machos durante o ano mas, curiosamente, raro é o combate nesse tempo. Limita-se o encontro a uma rápida investida de Vênia sobre o intruso, que sofre uma dentada ou não dá tempo para este ataque e quase sempre dispensa a represália, fugindo. Ouve-se perfeitamente o estrépito desabalado da carreira do perseguido e do perseguidor na folhagem seca e desaparecimento de ambos personagens na sombra das trepadeiras ao prumo do muro.
Apesar de Vênia possuir, logo debaixo do queixo, uma bolsa gular, peles moles que a carreira sacode, nunca a vi cheia, distendida pelos gases do estômago que a excitação provocará e que constitui outro meio de intimidação aos adversários e atração para as fêmeas, segundo observadores de tipos semelhantes.
O balanceio da cabeça de Vênia é que me seduz. Nada descobri intrinsecamente. Auxilia os movimentos peristálticos, facilitando a digestão ou será unicamente mania de aderir à unanimidade banal?
Gesto inconsciente é que não creio que seja. Não há inconsciente nos animais. Todos agem no plano sensitivo, respondendo às excitações imediatas. Podem esses ademanes ligarem-se às formas mentais. Mas, com licença da palavra, lagartixa terá ideia de que proceda uma ação?
Será linguagem? Estou me convencendo da comunicação animal através de cantos, gestos, toques de antenas. O Homo sapiens deseja muito defender o seu monopólio mas os animais um dia responderão às perguntas feitas há tanto tempo. Não responderão ao que perguntarem porque dispensarão prudentemente maior convívio com a raça humana, mas permitirão ao observador a visão dos elementos positivos de que se entendem perfeita e naturalmente.
Não posso arriscar-me a confidenciar sobre a linguagem de Vênia através da cabeça balançada, porque ela repete este gesto quando está sozinha. Dir-me-ão tratar-se de um solilóquio, meditação solitária e profunda. Muita gente ilustre fala só ou sonha em voz alta. A provocação não podemos identificar mas existe mesmo que o falador ou sonhador depois confesse não poder recordar-se do motivo determinante. Nem por isso o ato desapareceu.
Há no Oriente um réptil, o Stellius vulgaris, que os árabes denominam Hardum e que goza de geral antipatia e velho ódio coletivo. Quando o encontram no campo ou na cidade matam-no infalivelmente com fúria de origem religiosa. É que o estelião, de ânimo essencialmente burlador e zombeteiro, diverte-se imitando os movimentos da cabeça dos maometanos quando oram nas mesquitas. Trata-se, evidentemente, de um desrespeito ao profeta do Deus clemente e misericordioso e os muçulmanos não admitem o sacrilégio. Castigam o estelião com infalível morte.
O malfadado estelião apenas plagia, tal e qual, as cortesias habituais de Vênia no cimo do muro.
Deduzo que Vênia, com sua graça afetuosa de concordar, não ganhou os inimigos do seu primo oriental. O valor da concordância está na rápida impressão do solidarismo aplaudidor que ela empresta a todos que a veem.
De sua vida normal há a rotina das pegas de insetos e evoluções no solo e riba do muro. Não é noturna na acepção real do vocábulo mas caça até passar o crepúsculo. Com a noite Vênia desaparece e são outras espécies, aparentadas, as substitutas nas pistas volteadas da insetolândia.
Não sei como descobre a fêmea e a segue obstinado, fulminantemente enamorado e rapidamente desamoroso. Creio que haverá uma emanação das lagartixas fêmeas que impressiona o olfato alertado dos machos, fazendo-os identificar o caminho ignorado para a escolhida do acaso, futura poedeira dos ovos redondos e duros, quase incubados pela luz ardente do sol, depostos nos ângulos do muro e frinchas acolhedoras.
Se nesta procura depara outro macho, Vênia bate-se imediatamente. Nunca pude ver o início do duelo. Assisto já ao embate frenético que é de impressionante violência inacabável.
Emprega apenas as mandíbulas cortantes. Não usa a cauda móbil como os tamanduás e tejuaçus que se chicoteiam mutuamente com estalos sonoros que lembram as espetaculares exibições dos comboeiros nordestinos fazendo romper o ar com as “pontas de linha” tonitruosas.
A luta é de dentadas não rápidas, seguidas, entrecortadas de arremessos como Gô e Musi combatem com seus pares respectivos.
Vênia segura a dentada, dura e forte, durante muitos minutos. Os dois ficam imóveis. Bruscamente o adversário se liberta e reage, rodando, procurando o lugar sensível para a resposta, quase sempre na região mole do pescoço. Se pode fisgar, prolonga o efeito, parada, olhos fixos, gozando a paciência sofredora alheia.
Vezes há um corpo a corpo decorativo mas rápido. As lagartixas se erguem arrimadas uma à outra e abraçam-se num amplexo dramático, em movimentos ansiosos para a mordida decisiva. Também assim batalham os grandes jacarés amazônicos, ruidosos, resfolegantes, espadanando água revolta do rio nativo.
De súbito, uma das lagartixas evita o golpe e foge, patas levantadas, corpo suspenso, numa derrota clássica. A outra persegue-a até onde pode, mas certamente reserva as energias para outros prélios e o encontro amável com a fêmea próxima, mas invisível.
O casal amoroso se esconde na sombra das trepadeiras, o macho cavalgante, a fêmea submissa, cauda dobrada para facilitar o impulso fecundador dos dois hemipenes, e aprisionada pela boca sôfrega de Vênia que a prende na altura da nuca, dominadora e cruel em sua fome de sexo. Depois do ato a separação é instantânea em desabalada carreira um para cada lado. Encontrar-se-ão logo depois numa repetição feliz, terminada pela correria inevitável.
Dizem que Vênia não desdenha o contato amoroso, infecundo e fugaz, com os espécimes do mesmo sexo. Nunca me foi possível a verificação afirmada pelas observações demoradas. Há, entretanto, o registro nas fontes sérias dos sábios de crédito.
A vida é simples e cômoda. Caça insetos, repleta-se, dorme a sesta, volta ao trabalho captor e ao escurecer recolhe-se para dormir. Duas e três vezes por ano bate-se com um colega competidor, permutando dentadas, e subjuga a fêmea, fecundando-a sem romances prévios e responsabilidades posteriores.
Não a segue e desconhece onde a fêmea fecundada deporá os três ou quatro ovos esféricos, branco-pérola, resistentes. Não defende a futura prole nem para ela agarrará o menor besouro fácil. A fêmea escolhe um recanto exposto à reverberação solar mais intensa, sempre com fundo de areia solta ou arrimo de um tijolo. Não é senão cuidado para evitar que os ovos rolem e se dispersem. Não visita muito os ovos mas anda por perto. Aquecê-los-á com seu corpo? Certamente, mas nunca vi. Não arrisca fração de sua ilustre pessoa maternal para livrar um só ovinho. Entrega-os ao espírito protetor da espécie que está encarregado de promover a perpetuidade das lagartixas.
Mas aquele ovo pequenino, abandonado ao pé do muro, significa, na história da vida organizada, a maior e mais permanente vitória sobre o tempo. Graças a ele libertou-se o animal do domínio exclusivo do mar ancestral, fonte única das existências em formas iniciantes. Defendido pela casca, o embrião vivo na gema, cercado por uma membrana porosa que o comunica com a “clara”, o líquido que alimenta e protege, tornou-se independente e transportável. O ovo ainda denuncia a fecundação interna e direta da fêmea pelo macho. Decorrentemente abre o ciclo da conquista, da luta pela captação da simpatia ou posse brutal do elemento feminino. Estava aí o núcleo longínquo e poderoso dos bailados nupciais, das lutas, das batalhas, das mobilizações ao derredor das tocas, furnas, luras, palácios, barracões, aguardando a escolha indispensável da companheira indispensável. Para os efeitos da impressão inicial, da irradiação simpática, os machos obtiveram cores vistosas, agilidades coreográficas, fardões, trinados, cantos, pios, guinchos e bufidos, finuras de olfato, força na extremidades preênseis fixadoras da amada presa que poderia furtar-se ao abraço fecundador.
Tudo quanto nasceu depois e transformou-se nos cultos litúrgicos da vaidade, decoração, enfeite atraente, as mudanças de Júpiter, as batalhas pelo ouro, poder e glória, provém da necessidade poderosa da propagação, da conquista da fêmea, fazê-la portadora do ovo que é a espécie no tempo sem fim. O ovo dos répteis, o primeiro ovo nascido na noite distante de milhares e milhares de séculos, ia criar todo este cortejo, onímodo e deslumbrante que nos entontece e arrebata.
O ovinho da lagartixa simbolizava, legitimamente, a inicial. Era um ovo de réptil no canto de muro, guardando a eternidade.

Luís da Câmara Cascudo, in Canto de Muro

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