Vênia
desceu no muro por entre os ramos enlaçados da trepadeira. Baixou em
linha reta e, trinta centímetros antes do solo, pulou elegantemente.
O ventre largo e chato de um amarelo sujo e baço roçou na areia
fulva. Vênia arqueou ainda mais as patas curvas e musculosas,
agachando-se, dissimulada, arrastando-se como um pequenino jacaré de
brinquedo. Bruscamente estendeu, numa projeção de dardo, a tira
estreita, fina e longa de sua língua vermelha. Apanhara um casal de
mosquitos. Depois um tonto moscardo. Três moscas idiotas que não
ganharam altura no momento preciso.
Terminado
o desjejum andou diante. Deu uma carreirinha nervosa e saltou,
airosa, para cima de uma pedra. Ficou parecendo, na claridade
matinal, um bronze. Balançou para baixo e para cima, repetidamente,
a cabecinha triangular cinza-esverdeada, concordando que a vida é
agradável e há momentos felizes na existência de um Hemidactylus
mabuia, lagartixa de muro de quintal sem trato.
É
uma soberba lagartixa de quarenta meses bem vividos, robusta,
audaciosa, sólida no curto pescoço e nas patas fortes e flexíveis,
corredora olímpica, saltadora esplêndida, caçadora admirável.
Vênia é exemplar macho, sabendo lutar e manter a fêmea na carícia
decisiva de sua pressão mandibular. Sua velhíssima família, as
Geckonídeas, garante vitalidade e saúde normais. Da ponta da cabeça
à extremidade da cauda mede uns dezessete centímetros. Talvez mais.
É larga, gorda sem excesso, movendo-se com rapidez e precisão
técnica.
Há
alguma variedade no desenhos dorsais. Vezes, ligadas ao fio branco
que lhe percorre todo corpo, estão manchas claras que lembram
miosótis. Noutros tipos, as duas riscas longitudinais seguem ponta a
ponta, paralelas e negras, ressaltadas no fundo cinza do corpanzil.
Vênia
é uma consequência da curiosidade geográfica aliada à exploração
do negro proletarismo africano. É uma resultante econômica,
política e social de outrora.
Sua
terra antiga é a África Ocidental. Digamos que ama os territórios
portugueses da Guiné, do Congo, de Angola. De lá é que emigrou
embarcando clandestinamente nos navios negreiros desde o século XVI.
Que
fora Vênia quinhentista e seiscentista fazer a bordo dos brigues e
dos bergantins carregados da gente escrava que vinha para o Brasil, é
que não posso deduzir, se não aceitar o impulso da verificação
geográfica como tiveram Ibne Batuta, Marco Polo, Vasco da Gama e
Cristovão Colombo. Atravessou o Atlântico alimentando-se
perfeitamente das sevandijas vivas das naus e desceu, tranquila, nas
praias de areia do Nordeste brasileiro, onde quer que despejassem a
bagagem humana consignada ao esforço criador e duro. Nordeste e Sul.
O transporte de Vênia encostava em muita terra e nesta o lacertíleo
penetrava, aceitando a nova pátria. Devia ter sido problema
insolúvel a viagem de machos e fêmeas e a coincidência dos casais
para a multiplicação da espécie que se nacionalizou, depressa e
abundantemente. Certo é que estes colonos trouxeram companheiras em
número suficiente e ganharam o Brasil, com decisão e conforto. Em
parte explica-se a adaptação fácil pelo temperamento amável e
concordante de Vênia. Ainda hoje repete o gesto afirmativo a
qualquer pensamento. Não é possível repelir-se um hóspede assim
gentil e conformado.
Agora
Vênia abandonou o pedestal e recomeçou a caçada com precaução e
vagar. Cada salto sobre a vítima é antecedido por uma série
preparatória de movimentos lógicos de acomodação no terreno,
visão da presa, cálculo da aproximação pela ângulo de mais
provável segurança no rendimento. Vezes fica no nível na menor
elevação, rente com os montículos de areia, possivelmente
invisível e aparentemente imóvel mas está se deslocando, em
frações de milímetro, linha a linha, na perfeita consciência de
sua responsabilidade caçadora. Este processo de acercamento, de
rojo, silencioso, avançando sempre, corrigindo os enganos com
paradas e simulações imediatas, denuncia a respeitável
antiguidade, aperfeiçoamento e seleção de Vênia nos seus métodos
de captura de besourinhos e moscas distraídas.
Esta
longa e visível capitalização de experiência demonstra a velhice
espantosa da espécie e como as maneiras de obter a caça foram sendo
filtradas pela crítica obscura e feliz do instinto.
Se
Vênia se dignasse responder a um questionário, daria outra tradução
ao cômodo “instinto” como nos referimos à sua inteligência que
não é uniforme e mecânica mas atua de acordo com os tipos que
persegue e as horas de luz e penumbra em que exerce a nobre arte de
viver à custa da morte alheia.
Vênia
sabe os hábitos e recursos de cada uma de suas peças de caça
habituais, como nenhum caçador conseguiria imitá-la. Depende da
rapidez com que o inseto possa elevar-se e mesmo a duração de sua
trajetória antes de ficar fora do alcance de Vênia, a intensidade
do seu salto e a posição tomada para desfechá-lo. Há besouros que
sobem quase em vertical e outros numa diagonal relativamente
vagarosa. Vênia pula como uma fera esfaimada sobre o primeiro e não
tenta segurá-lo se o golpe falhou. Sabe que o besouro está muito
além de suas mandíbulas. Para o segundo a técnica é diversa e a
lagartixa salta, duas ou três vezes, confiando apanhar o inseto
antes que este ganhe distância suficiente para livrar-se.
Nas
horas do crepúsculo matutino e vespertino há sempre uma nuvem de
mosquitos esvoaçando num determinado nível próximo ao solo úmido.
Vênia só se apresenta quando o cortejo dos mosquitos baixa a uma
conveniente posição para as sucessivas dentadas e lançamentos de
língua. Conhece ela que os mosquitos não fogem imediatamente e que
ficarão um ou dois minutos volteando o mesmo ponto e em situação
acessível à captora. Aproveita este tempo correndo e pulando,
focinho no ar, dentro do círculo limitado sobre o qual sua caça
volteia.
Para
outros insetos de vulto a forma é mudada e a lagartixa dissimula sua
vigilância em todos os objetos que a separam da vítima. Caco de
telha, rumo de areia de formigueiro, arbustos, folha amassada de
papel, tufo de capim são outros tantos esconderijos, abrigos
provisórios, postos de escuta e observação, descrevendo curvas,
zigue-zagues, evitando rumor e percepção direta do inseto que
continua, tranquilo, sua refeição infeliz.
O
final desta manobra é um arranco irresistível, no momento exato que
deveria ser iniciado sobre o objetivo. Não sei de caçador mais
veterano de mata e brejo que superasse Vênia na cuidadosa precaução
com que acompanha sua caça. E chamamos a este conjunto de
raciocínios acumulados no tempo e exercitados na justa oportunidade,
“instinto”. Qualquer caçador abatendo um par de marrecas numa
lagoa ou pescando um peixe mais avultado não admitiria que
“instinto” fosse a palavra premiadora do seu sucesso.
Não
posso afirmar que outra Vênia repetisse a sabedoria desta de minhas
relações pessoais. Que todas têm a solução idêntica para os
momentos decisivos de caça, não devo afirmar.
Pela
manhã a sombra da folhagem da mangueira se recorta em manchas negras
quase salientes pela intensidade da luz. Uma manga madura, de casca
esfarelada, mostra convidativamente o conteúdo amarelo e mole. Dois
besouros estão almoçando, as trombas mergulhadas na polpa úmida,
saciando-se. Vênia veio vindo, parando de nódoa em nódoa sombria,
ocultando-se nelas, detendo-se como para manter a tranquilidade do
ambiente. Dois segundos de parada, e recomeçava, rente ao chão, a
marcha coleante, pondo a cabeça de sáurio na areia, os dois olhos
redondos e fixos focando os convivas desprevenidos. Três palmos
perto deu a arrancada definitiva, entortando a cauda rugosa e áspera,
rubra garganta entreaberta e voraz. Um dos besouros foi apanhado pelo
meio e o segundo arrastou-se, lambuzado e capenga, sacudindo
desesperadamente as asas molhadas pelo sumo da fruta, sob os élitros
erguidos como protetores, enfiando as finas patas na areia solta e
fina. Vênia deglutiu o primeiro comensal e antes que o segundo
pudesse desprender-se no voo, derrubou-o com uma dentada em falso,
segurou-o na boca acerada e voltou depressa para a penumbra do muro.
Em
poucos minutos modificara sua maneira de caçar de acordo com as
circunstâncias. Instinto... Ou, como sugere Bouvier, “estímulo”...
Edmond
Jaloux raciocinava mais claro que muitos estudiosos especialistas: “
– Opomos o critério humano ao animal porque aplicamos a palavra
critério a uma série de raciocínios que seguem determinada ordem,
e ignoramos em que consiste o critério animal. Se observamos,
todavia, os seres irracionais teremos de reconhecer que cometem muito
menos erros em sua vida que nós outros, o que parece bastante
humilhante. É raro que um animal que as circunstâncias obriguem a
sofrer certos equívocos, devidos a uma imprudência de sua parte,
não a evite pela segunda vez se as circunstâncias o colocam diante
do mesmo perigo. Ao contrário, em nossa espécie, um indivíduo que
sofreu dano considerável pode encontrar-se pouco depois ante igual
alternativa e novamente sofrer o mesmo dano, e o erro se prolonga
assim indefinidamente”.
Os
únicos erros, ou melhor, enganos, que um animal comete são os
devidos à idade e baseados na sua vaidade de parecer moço e ágil.
Não podemos, evidentemente, jogar-lhe a primeira pedra.
Certas
lagartixas que atingiram idade provecta erram os saltos e mesmo caem
do muro apesar de suas patas com uma espécie de ventosas fixadoras
nas superfícies lisas. Pulando de um para outro ângulo do muro, nas
esquinas, vêm ao chão com estrépito disfarçando a legitimidade da
queda com uns ares esportivos de intenção saltadora. Uma velha
lagartixa negra, que deve ser a matriarca da região, escorrega
constantemente e fica no solo balançando a cabeça veneranda com um
jeito de quem solicita aplausos para sua destreza. Conheço, noutros
planos, gente velha com a mesma mania.
Pouco
perderam de sua agilidade para caçar e da sagacidade nas manobras de
acercamento da presa. Apenas certo tipo de caça está abandonado
porque suas forças não correspondem às exigências da captação.
A vaidade obriga-as a cometer o erro de perseguir e perder a comida
que sabe escapar-lhes com naturalidade. É a deformação psicológica
da autocrítica pessoal permitindo a certos gloriosos dançarinos de
outrora, fisiologicamente aposentados, que, na embriaguez dos
excitamentos da plateia, dancem esquecidos da impossibilidade de
manter a leveza, graça e brilho rítmico do passado distante. Não
se convencem que o tempo passou e seus músculos não correspondem à
intenção íntima de elevação e força criadora coreográfica.
Identicamente, velhos tenores, barítonos e músicos têm estas zonas
de vácuo no cérebro, talqualmente as lagartixas que se supõem
aptas para os saltos limpos, dos anos decorridos. Já assisti no
Teatro Municipal do Rio de Janeiro ao maduro sucessor de Nijinsky
submeter-se a esta demonstração negativa de sua esgotada capacidade
de força rítmica. Não é demais que as lagartixas repitam ou deem
exemplos de tais erros de julgamento individual.
Vênia
não é exclusivamente insetívora como registram os livros que a
estudam. Gosta de mergulhar a língua no mamão maduro. Degustação
rápida mas visivelmente deleitosa. Vezes procurando o mamão
espapaçado depara caça inesperada e sabe aproveitar a boa fortuna.
Uma
característica desses animais é a sua inesgotável capacidade de
absorver alimentos. Jamais estão fartos ou displicentes para um
bom-bocado fortuito. Comem, numa jornada diária, duas ou três vezes
o próprio peso. Nunca pude ver Vênia com indigestão ou nos rigores
da dieta recuperadora. Está sempre com o estômago em forma e
apetite disponível.
O
desejo amoroso nos humanos independe de sua aptidão fecundadora. E
também do tempo. Meninos apaixonam-se por velhas e anciões por
mocinhas. Vice-versa. Em qualquer época do ano estão em amor
potencial ou funcional. Vênia, bem ao contrário, possui seu tempo,
tempo útil em que a espécie recebe a contribuição individual de
seus componentes para os misteres da perpetuação. Não há perda da
ânsia criadora nem desperdícios da capacidade de sedução para a
conquista da indispensável companheira. Tudo está regulado com
segurança e previsão e os resultados pertencem à classe matemática
das certezas e das materialidades infalíveis.
Vênia
começa no verão a realçar sua decoração dorsal que se torna mais
nítida e visível. Pode ser um elemento de apelo, chamamento de
atenção, sugestão de escolha para as fêmeas disputadas, ou
armadura defensiva para os inevitáveis rivais do prélio sexual,
desenhos mais notórios para assustar, distanciar o competidor ao
mesmo objeto. Vênia nunca permitiu informação a respeito e os
estudiosos escrevemconforme deduções próprias e naturalmente
dignas de crédito.
Liga-se
à exasperação amorosa de Vênia um elemento da organização
administrativa do seu território, onde não pode residir outra
lagartixa idosa e masculina. É fácil constatar a existência de
animais menores e em idade pueril, se me permitem o preciosismo. Na
época da ânsia sexual os machos invadem todas as fronteiras e os
combates são ferrenhos e ferozes porque se unem os dois ciúmes, da
fêmea desejada e da terra possuída. Vênia deve bater-se pela Dama
e pela Grei...
Independentemente
da fase da fecundação, em que o odor do sexo atordoa as possantes
lagartixas, há uma ou outra visita bem dispensável de machos
durante o ano mas, curiosamente, raro é o combate nesse tempo.
Limita-se o encontro a uma rápida investida de Vênia sobre o
intruso, que sofre uma dentada ou não dá tempo para este ataque e
quase sempre dispensa a represália, fugindo. Ouve-se perfeitamente o
estrépito desabalado da carreira do perseguido e do perseguidor na
folhagem seca e desaparecimento de ambos personagens na sombra das
trepadeiras ao prumo do muro.
Apesar
de Vênia possuir, logo debaixo do queixo, uma bolsa gular, peles
moles que a carreira sacode, nunca a vi cheia, distendida pelos gases
do estômago que a excitação provocará e que constitui outro meio
de intimidação aos adversários e atração para as fêmeas,
segundo observadores de tipos semelhantes.
O
balanceio da cabeça de Vênia é que me seduz. Nada descobri
intrinsecamente. Auxilia os movimentos peristálticos, facilitando a
digestão ou será unicamente mania de aderir à unanimidade banal?
Gesto
inconsciente é que não creio que seja. Não há inconsciente nos
animais. Todos agem no plano sensitivo, respondendo às excitações
imediatas. Podem esses ademanes ligarem-se às formas mentais. Mas,
com licença da palavra, lagartixa terá ideia de que proceda uma
ação?
Será
linguagem? Estou me convencendo da comunicação animal através de
cantos, gestos, toques de antenas. O Homo sapiens deseja muito
defender o seu monopólio mas os animais um dia responderão às
perguntas feitas há tanto tempo. Não responderão ao que
perguntarem porque dispensarão prudentemente maior convívio com a
raça humana, mas permitirão ao observador a visão dos elementos
positivos de que se entendem perfeita e naturalmente.
Não
posso arriscar-me a confidenciar sobre a linguagem de Vênia através
da cabeça balançada, porque ela repete este gesto quando está
sozinha. Dir-me-ão tratar-se de um solilóquio, meditação
solitária e profunda. Muita gente ilustre fala só ou sonha em voz
alta. A provocação não podemos identificar mas existe mesmo que o
falador ou sonhador depois confesse não poder recordar-se do motivo
determinante. Nem por isso o ato desapareceu.
Há
no Oriente um réptil, o Stellius vulgaris, que os árabes denominam
Hardum e que goza de geral antipatia e velho ódio coletivo. Quando o
encontram no campo ou na cidade matam-no infalivelmente com fúria de
origem religiosa. É que o estelião, de ânimo essencialmente
burlador e zombeteiro, diverte-se imitando os movimentos da cabeça
dos maometanos quando oram nas mesquitas. Trata-se, evidentemente, de
um desrespeito ao profeta do Deus clemente e misericordioso e os
muçulmanos não admitem o sacrilégio. Castigam o estelião com
infalível morte.
O
malfadado estelião apenas plagia, tal e qual, as cortesias habituais
de Vênia no cimo do muro.
Deduzo
que Vênia, com sua graça afetuosa de concordar, não ganhou os
inimigos do seu primo oriental. O valor da concordância está na
rápida impressão do solidarismo aplaudidor que ela empresta a todos
que a veem.
De
sua vida normal há a rotina das pegas de insetos e evoluções no
solo e riba do muro. Não é noturna na acepção real do vocábulo
mas caça até passar o crepúsculo. Com a noite Vênia desaparece e
são outras espécies, aparentadas, as substitutas nas pistas
volteadas da insetolândia.
Não
sei como descobre a fêmea e a segue obstinado, fulminantemente
enamorado e rapidamente desamoroso. Creio que haverá uma emanação
das lagartixas fêmeas que impressiona o olfato alertado dos machos,
fazendo-os identificar o caminho ignorado para a escolhida do acaso,
futura poedeira dos ovos redondos e duros, quase incubados pela luz
ardente do sol, depostos nos ângulos do muro e frinchas acolhedoras.
Se
nesta procura depara outro macho, Vênia bate-se imediatamente. Nunca
pude ver o início do duelo. Assisto já ao embate frenético que é
de impressionante violência inacabável.
Emprega
apenas as mandíbulas cortantes. Não usa a cauda móbil como os
tamanduás e tejuaçus que se chicoteiam mutuamente com estalos
sonoros que lembram as espetaculares exibições dos comboeiros
nordestinos fazendo romper o ar com as “pontas de linha”
tonitruosas.
A
luta é de dentadas não rápidas, seguidas, entrecortadas de
arremessos como Gô e Musi combatem com seus pares respectivos.
Vênia
segura a dentada, dura e forte, durante muitos minutos. Os dois ficam
imóveis. Bruscamente o adversário se liberta e reage, rodando,
procurando o lugar sensível para a resposta, quase sempre na região
mole do pescoço. Se pode fisgar, prolonga o efeito, parada, olhos
fixos, gozando a paciência sofredora alheia.
Vezes
há um corpo a corpo decorativo mas rápido. As lagartixas se erguem
arrimadas uma à outra e abraçam-se num amplexo dramático, em
movimentos ansiosos para a mordida decisiva. Também assim batalham
os grandes jacarés amazônicos, ruidosos, resfolegantes, espadanando
água revolta do rio nativo.
De
súbito, uma das lagartixas evita o golpe e foge, patas levantadas,
corpo suspenso, numa derrota clássica. A outra persegue-a até onde
pode, mas certamente reserva as energias para outros prélios e o
encontro amável com a fêmea próxima, mas invisível.
O
casal amoroso se esconde na sombra das trepadeiras, o macho
cavalgante, a fêmea submissa, cauda dobrada para facilitar o impulso
fecundador dos dois hemipenes, e aprisionada pela boca sôfrega de
Vênia que a prende na altura da nuca, dominadora e cruel em sua fome
de sexo. Depois do ato a separação é instantânea em desabalada
carreira um para cada lado. Encontrar-se-ão logo depois numa
repetição feliz, terminada pela correria inevitável.
Dizem
que Vênia não desdenha o contato amoroso, infecundo e fugaz, com os
espécimes do mesmo sexo. Nunca me foi possível a verificação
afirmada pelas observações demoradas. Há, entretanto, o registro
nas fontes sérias dos sábios de crédito.
A
vida é simples e cômoda. Caça insetos, repleta-se, dorme a sesta,
volta ao trabalho captor e ao escurecer recolhe-se para dormir. Duas
e três vezes por ano bate-se com um colega competidor, permutando
dentadas, e subjuga a fêmea, fecundando-a sem romances prévios e
responsabilidades posteriores.
Não
a segue e desconhece onde a fêmea fecundada deporá os três ou
quatro ovos esféricos, branco-pérola, resistentes. Não defende a
futura prole nem para ela agarrará o menor besouro fácil. A fêmea
escolhe um recanto exposto à reverberação solar mais intensa,
sempre com fundo de areia solta ou arrimo de um tijolo. Não é senão
cuidado para evitar que os ovos rolem e se dispersem. Não visita
muito os ovos mas anda por perto. Aquecê-los-á com seu corpo?
Certamente, mas nunca vi. Não arrisca fração de sua ilustre pessoa
maternal para livrar um só ovinho. Entrega-os ao espírito protetor
da espécie que está encarregado de promover a perpetuidade das
lagartixas.
Mas
aquele ovo pequenino, abandonado ao pé do muro, significa, na
história da vida organizada, a maior e mais permanente vitória
sobre o tempo. Graças a ele libertou-se o animal do domínio
exclusivo do mar ancestral, fonte única das existências em formas
iniciantes. Defendido pela casca, o embrião vivo na gema, cercado
por uma membrana porosa que o comunica com a “clara”, o líquido
que alimenta e protege, tornou-se independente e transportável. O
ovo ainda denuncia a fecundação interna e direta da fêmea pelo
macho. Decorrentemente abre o ciclo da conquista, da luta pela
captação da simpatia ou posse brutal do elemento feminino. Estava
aí o núcleo longínquo e poderoso dos bailados nupciais, das lutas,
das batalhas, das mobilizações ao derredor das tocas, furnas,
luras, palácios, barracões, aguardando a escolha indispensável da
companheira indispensável. Para os efeitos da impressão inicial, da
irradiação simpática, os machos obtiveram cores vistosas,
agilidades coreográficas, fardões, trinados, cantos, pios, guinchos
e bufidos, finuras de olfato, força na extremidades preênseis
fixadoras da amada presa que poderia furtar-se ao abraço fecundador.
Tudo
quanto nasceu depois e transformou-se nos cultos litúrgicos da
vaidade, decoração, enfeite atraente, as mudanças de Júpiter, as
batalhas pelo ouro, poder e glória, provém da necessidade poderosa
da propagação, da conquista da fêmea, fazê-la portadora do ovo
que é a espécie no tempo sem fim. O ovo dos répteis, o primeiro
ovo nascido na noite distante de milhares e milhares de séculos, ia
criar todo este cortejo, onímodo e deslumbrante que nos entontece e
arrebata.
O
ovinho da lagartixa simbolizava, legitimamente, a inicial. Era um ovo
de réptil no canto de muro, guardando a eternidade.
Luís da Câmara Cascudo, in Canto de Muro
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