quarta-feira, 4 de maio de 2022

A chegada da notícia que mudou tudo


Kamila Jan, eu tenho a honra de lhe entregar seu diploma”.
O homenzinho de cabelos brancos e rugas profundamente marcadas disse com orgulho ao entregar à jovem mulher aquele documento de caráter oficial. Kamila pegou o documento e leu:

Este documento é um certificado de que Kamila Sidiqi concluiu com êxito seus estudos no Instituto de Formação de Professores Sayed Jamaluddin.

Cabul, Afeganistão
Setembro de 1996

Muito obrigada, Agha”, Kamila disse. Um sorriso de orelha a orelha irradiou em sua face. Ela era a segunda mulher de sua família a concluir o curso de dois anos no Instituto Sayed Jamaluddin; sua irmã mais velha, Malika, havia se formado alguns anos antes e já estava trabalhando como professora de uma escola secundária de Cabul. Malika, no entanto, não havia tido que enfrentar os constantes bombardeios e fogos disparados por foguetes da guerra civil quando ia e voltava da escola.
Kamila apertou em suas mãos o documento precioso. O lenço pendia de forma casual de sua cabeça e ocasionalmente desviava-se para trás, revelando alguns fios de seu cabelo castanho ondulado, que resvalavam nos ombros. Calças pretas de pernas largas e sapatos escuros de bico fino e salto baixo transpareciam por baixo da barra de seu casaco comprido até os pés. As mulheres de Cabul eram conhecidas por estender os limites rígidos da tradição de seu país e Kamila não era exceção. Até a derrubada do poder do governo do Dr. Najibullah, que era apoiado por Moscou, em 1992, pelos Mujahideen (“santos guerreiros”) que opunham resistência à presença soviética, muitas mulheres de Cabul andavam pelas ruas vestidas à maneira ocidental e com as cabeças descobertas. Mas naquele momento, apenas quatro anos depois, os Mujahideen definiam o espaço público e a vestimenta das mulheres com muito mais rigor, ordenando que trabalhassem em espaços separados dos homens, que andassem com a cabeça encoberta e usassem roupas largas e recatadas. As mulheres de Cabul, jovens e velhas, se vestiam de acordo com tais regras, embora muitas – como Kamila – acrescentassem um pouco de vida a elas, usando um belo par de sapatos sob aqueles casacos pretos disformes.
Estava muito longe de ser como nas décadas de 1950 e 1960, quando as mulheres elegantes de Cabul deslizavam pela capital do país em trajes de estilo europeu combinando com finos lenços de cabeça. Durante a década de 1970, as estudantes da Universidade de Cabul chocavam seus compatriotas mais conservadores das áreas rurais, usando minissaias que mostravam os joelhos e sandálias sofisticadas. Aqueles anos de mudanças foram marcados por protestos e tumultos políticos no campus da Universidade. Mas tudo isso aconteceu bem antes da juventude de Kamila: ela havia nascido apenas dois anos antes da invasão do Afeganistão pelos soviéticos em 1979, ocupação essa que deu origem a uma guerra de resistência afegã que durou uma década e, sob o comando dos Mujahideen, acabaram dessangrando os russos. Quase duas décadas depois de o primeiro tanque soviético ter entrado no Afeganistão, Kamila e seus amigos ainda não sabiam o que era viver em paz. Após os soviéticos derrotados terem retirado sua última ajuda ao país, em 1992, os comandantes Mujahideen vitoriosos começaram a lutar entre si pelo controle de Cabul. A brutalidade da guerra civil chocou os habitantes daquela cidade. De um dia para o outro, as ruas dos bairros foram transformadas pelas facções adversárias em linhas de frente, atirando uma na outra à queima-roupa.
Apesar da guerra, a família de Kamila, como dezenas de milhares de outras famílias de Cabul, continuou indo à escola e ao trabalho sempre que possível, enquanto a maioria das famílias de seus amigos fugiu em busca de segurança nos vizinhos Paquistão e Irã. Com seu recente diploma de professora, Kamila logo iniciaria seus estudos no Instituto Pedagógico de Cabul, uma universidade aberta a ambos os gêneros, fundada no início da década de 1980 durante os anos de ocupação soviética, que promoveram uma ampla reforma educacional com a expansão das instituições estatais. Dentro de dois anos, ela receberia seu bacharelado e poderia iniciar sua carreira de professora em Cabul. Ela pretendia se tornar professora de dari e, quem sabe, algum dia ensinar literatura.
Mas apesar dos anos de trabalho árduo e de seus planos otimistas para o futuro, não haveria nenhum começo alegre para celebrar a grande conquista de Kamila. A guerra civil havia destruído a imponente arquitetura da capital e os bairros de classe média, transformando as ruas da cidade num monte de ruínas, encanamentos e prédios destruídos. Foguetes lançados por comandos bélicos atravessavam regularmente o horizonte de Cabul, caindo sobre as ruas da capital e matando indiscriminadamente seus habitantes. Eventos corriqueiros como uma formatura haviam se tornado arriscados demais até mesmo para serem levados em consideração e muito menos para se comparecer.
Kamila guardou seu diploma impresso com esmero numa robusta pasta marrom e deixou o escritório administrativo, deixando para trás uma série de jovens à espera de receber seus diplomas. Ao percorrer um estreito corredor com janelas até o teto que ia dar na entrada principal do Instituto Sayed Jamaluddin, ela passou por duas mulheres que teciam uma conversa em meio a uma grande aglomeração.
Ouvi dizer que eles estão chegando hoje”, uma mulher disse para a outra.
Meu primo me disse que eles estão na entrada de Cabul”, a outra respondeu sussurrando.
Kamila soube imediatamente quem eram “eles”: eram os talibãs, cuja chegada era considerada, naquele momento, como inevitável. As notícias percorriam a capital numa velocidade estrondosa por meio de uma rede abrangente de famílias que incluía toda a parentela e que ligava todas as províncias do Afeganistão. As notícias sobre o iminente regime eram devastadoras e diziam que as mulheres estariam enrascadas. As regiões rurais mais afastadas e mais difíceis de serem controladas podiam, às vezes, estabelecer exceções para suas mulheres jovens, mas o Talibã andava a passos largos no sentido de consolidar seu poder nas áreas urbanas. Até ali, eles haviam vencido todas as batalhas.
Kamila ficou parada, em silêncio, no corredor da escola em que ela havia lutado tanto para estudar, apesar de todos os riscos e ficou ouvindo o que suas colegas estavam conversando com uma crescente sensação de inquietude. Ela aproximou-se para ouvir melhor a conversa das garotas.
Você sabe que eles fecharam as escolas para mulheres de Herat”, disse a morena de nariz agudo. Sua voz soava carregada de preocupação. O Talibã havia tomado aquela cidade do oeste um ano antes. “Minha irmã ouviu dizer que as mulheres não podem nem mesmo sair de casa quando eles tomam o poder. E nós aqui que pensávamos já ter passado pelo pior”.
Convenhamos”, disse a outra, segurando a mão da amiga, “pode não ser tão ruim assim”. “Talvez eles até tragam consigo um pouco de paz, se Deus quiser.”
Apertando sua pasta entre as mãos, Kamila desceu correndo as escadas para tomar o ônibus que a levaria por uma longa viagem até a casa de sua família no distrito de Khair Khana, ao norte de Cabul. Apenas alguns meses antes, ela havia percorrido a pé os onze quilômetros depois de um foguete ter caído na estrada de Karteh Char, o bairro em que ficava sua escola, danificando o telhado de um hospital das forças de segurança do governo e interrompendo o serviço de transporte pelo resto daquele dia.
Todo mundo em Cabul já havia se acostumado a buscar abrigo nas ombreiras das portas ou nos porões das casas assim que ouviam o já familiar zumbido dos foguetes se aproximando. Um ano antes, o instituto de formação de professores havia transferido as aulas de Karteh Char, por ser um bairro castigado regularmente pelos ataques aéreos e pelo fogo de morteiros, para o local no centro que um dia fora uma escola francesa e que o diretor acreditava ser mais seguro. Pouco tempo depois, outro foguete, cujo alvo era o Ministério do Interior, que ficava nas proximidades, foi parar diretamente em frente à nova sede da escola.
Todas essas lembranças se atropelavam, rapidamente, na mente de Kamila quando ela embarcou no ônibus “Millie” azul-claro enferrujado, que um dia fizera parte do serviço de transporte público, e tomou seu assento. Ela se debruçou sobre a janela com grandes manchas de barro e ficou ouvindo o que diziam as mulheres à sua volta enquanto o ônibus chacoalhava pelas ruas esburacadas de Karteh Char. Cada uma tinha sua própria versão de como seria o novo regime para os habitantes de Cabul.
Talvez eles tragam segurança”, disse uma garota sentada algumas fileiras atrás de Kamila.
Eu não acho isso”, respondeu sua amiga. “Eu ouvi pelo rádio que, uma vez no poder, eles não permitem a existência de escolas. Tampouco de trabalho. Nós não podemos nem sair de casa sem a permissão deles. Talvez, eles só fiquem aqui por alguns meses...”
Kamila olhava pela janela e tentava ignorar as conversas ao seu redor. Ela sabia que provavelmente aquela garota estava certa, mas não queria nem pensar no que seria dela e de suas irmãs menores que ainda viviam em casa. Ela ficou olhando para os donos de lojas naquelas ruas empoeiradas da cidade, envolvidos em seus afazeres diários de fechar suas mercearias, estúdios fotográficos e padarias. Nos últimos quatro anos, as entradas das lojas de Cabul haviam se tornado um barômetro da violência do dia: quando suas portas estavam totalmente abertas era porque a vida estava seguindo em frente, mesmo que fosse ocasionalmente marcada pelo zumbido de um foguete disparado ao longe. Mas quando elas estavam fechadas em plena luz do dia, os moradores dali sabiam que o perigo estava por perto e que também eles fariam melhor se ficassem em casa.
O velho ônibus seguia em frente sacolejando entre um e outro ronco da descarga de seu escapamento e finalmente chegou ao ponto em que Kamila desceu. Khair Khana, um bairro de periferia ao norte de Cabul, era onde morava uma grande comunidade de tajiques, o segundo maior grupo étnico do Afeganistão. Como a maioria das famílias tajiques, os pais de Kamila vinham do norte do país. O sul era, tradicionalmente, terreno dos pashtuns. O pai de Kamila havia transferido sua família para Khair Khana durante sua última viagem em serviço militar como oficial do exército afegão, ao qual havia servido por mais de três décadas. Cabul, ele pensava na época, ofereceria às suas nove filhas melhores chances de uma boa educação. E educação, ele acreditava, era de suma importância para suas filhas, sua família e o futuro de seu país.
Kamila desceu correndo sua rua empoeirada, segurando o lenço por cima da boca para não inalar a grossa fuligem da cidade. Ela passou pelas calçadas estreitas diante da mercearia onde caixotes de madeira com verduras, cenouras e batatas eram vendidas. Trocou olhares com noivos e noivas sorridentes, carregados de flores, em uma série de fotografias de casamento penduradas na parede de um estúdio fotográfico. Da padaria vinha o cheiro delicioso do pão naan saindo do forno, seguido do açougue onde apareciam pendurados nos ganchos de aço grandes pedaços de carne vermelha. Enquanto andava, Kamila ouviu dois comerciantes trocando suas experiências do dia. Como todos os habitantes de Cabul que haviam permanecido na cidade, aqueles dois homens estavam acostumados a assistir a ascensões e quedas de novos regimes e eram capazes de perceber rapidamente o colapso iminente. O primeiro, um homem baixinho careca e enrugado, estava dizendo que seu primo havia lhe dito que as tropas de Massoud estavam carregando seus caminhões e fugindo da capital. O outro balançava a cabeça em sinal de descrença.
Vamos ver o que vai acontecer”, ele disse. “Quem sabe as coisas não acabem melhorando. Inshallah [se Deus quiser]. Mas eu duvido.”
O comandante Ahmad Shah Massoud era o ministro da defesa do país e um herói militar tajique do Vale de Panjshir, perto de Parwan, de onde vinha a família de Kamila. Durante os anos de resistência contra os russos, as forças do Dr. Najibullah haviam aprisionado o pai de Kamila por suspeita de apoiar Massoud, que era conhecido como o “Leão do Vale de Panjshir” e era um dos mais famosos combatentes Mujahideen. Após a retirada dos russos em 1992, o Sr. Sidiqi foi libertado pelas forças leais a Massoud, que trabalhavam então para o novo governo do presidente Burhanuddin Rabbani. O Sr. Sidiqi passou a colaborar por um tempo com os soldados de Massoud, mas acabou decidindo se aposentar e viver em Parwan, lugar onde havia passado sua infância e amava acima de qualquer outro no mundo.
Durante todo o verão do ano anterior a 1996, Massoud havia jurado acabar com a ofensiva dos talibãs, mesmo com a continuidade do bombardeio incessante da capital e com a tomada pelas forças talibãs de uma cidade após outra. Se as tropas do governo estavam realmente desistindo de lutar e se retirando de Cabul, Kamila pensou, os talibãs não podiam estar longe. Ela apressou o passo com os olhos fixos no chão. Não havia porque se preocupar. Ao se aproximar do portão verde de metal de sua casa, na esquina da movimentada rua principal de Khair Khana, ela soltou um suspiro de alívio. Ela nunca havia sido tão agradecida por morar tão perto da parada de ônibus.
O grande portão verde se fechou com uma batida atrás de Kamila e sua mãe, Ruhasva, correu até o pátio para abraçar sua filha. Ela era uma mulher muito pequena, com tufos de cabelos brancos que emolduravam seu rosto redondo, e de expressão respeitosa. Ela deu um beijo em ambas as faces de Kamila e abraçou-a com força. A Sra. Sidiqi havia ouvido as notícias da chegada dos talibãs durante toda a manhã e havia ficando andando por duas horas, de um lado para outro de sua sala, preocupada com a segurança de sua filha.
Finalmente em casa, junto de sua família e com a noite caindo, Kamila se acomodou sobre uma almofada de veludo na sala de sua casa. Ela pegou um de seus livros preferidos – uma coletânea de poemas cujas páginas estavam gastas pelo uso –, e acendeu um lampião de vidro com um palito de fósforo que tirou de uma das caixas pequenas, em vermelho e branco, que a família mantinha espalhadas pela casa justamente para tais ocasiões. A eletricidade era um luxo; ela chegava de maneira imprevisível e funcionava apenas por uma ou duas horas por dia, isso quando funcionava, e todos haviam se acostumado a viver no escuro. Tinham uma longa noite pela frente e esperavam ansiosamente para ver o que aconteceria a seguir. O Sr. Sidiqi não falou muito ao se juntar à filha no chão, ao lado do rádio, para ouvir as notícias da BBC de Londres.
A apenas seis quilômetros dali, Malika, a irmã mais velha de Kamila, estava finalmente terminando um dia ainda muito mais atribulado.

Gayle Tzemach Lemmon, in A costureira de Khair Khana

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