Bastian
Balthazar Bux, herói de A história sem fim, viajava pelo
reino da Fantasia. A beleza era grande demais, e ele estava
encantado. Mas a beleza é perigosa. Precisamente por ser bela. É na
arena da beleza que Deus e o Diabo travam as suas batalhas.
Olhando-se
para um céu cheio de estrelas igualmente brilhantes, perde-se a
noção de direção. E foi o que aconteceu – a beleza era tanta
que Bastian acabou por se perder. Esqueceu-se de quem era. Perdeu sua
própria imagem, a imagem que era o coração da sua alma. E começou
então a vagar sem rumo.
Em
seu vagar sem rumo, acabou por chegar a uma mina perdida numa
planície gelada. Essa mina era guardada por Ior, o mineiro cego, que
explicou a Bastian o segredo dela:
Dentro
dessa mina profunda e escura encontram-se guardados, sob a forma de
transparências de mica, todos os sonhos da humanidade. Os seus
sonhos também estão dentro dela. Se você quiser voltar a saber
quem você é, terá de se lembrar dos sonhos de que se esqueceu.
Para isso será preciso descer até o fundo da mina e trabalhar sem
nada ver, arrancando as placas de mica e trazendo-as para fora. No
claro do dia, você poderá ver as imagens que não via no fundo
escuro da mina. A maioria das imagens vai deixá-lo indiferente.
Esses não são os seus sonhos. Mas, se por acaso acontecer de uma
placa de mica o comover, você poderá ter a certeza de que aquela
imagem é o retrato da sua alma. Aquela imagem é o seu destino.
Foi
isso que Bastian sentiu ao voltar de uma de suas incursões pelas
profundezas escuras da mina. Tinha uma folha transparente de mica nas
mãos. Olhava fixamente para ela.
Enquanto
colocava a imagem sobre a neve, Bastian sentiu muita saudade... Era
um sentimento que vinha de muito longe, como uma onda do mar que ao
longe parece inofensiva, mas que, à medida que vai se aproximando,
se transforma numa parede de água da altura de uma casa, que arrasta
tudo consigo. Bastian quase se afogou nessa onda de saudade, e teve
de fazer um esforço para respirar. Seu coração lhe doía, era como
se não fosse suficientemente grande para uma saudade tamanha...
Ele
acabara de se encontrar com a imagem da sua alma.
***
Aquele
rosto, na placa de mica que o poeta via pela primeira vez – ele já
o havia visto antes. Foi por isso que à surpresa seguiu-se a
saudade. Ele se viu diante de um passado ao mesmo tempo desconhecido
e conhecido. É por isso que, por vezes, a gente sente saudade sem
saber de quê. Como se do passado viesse um perfume que toma conta do
corpo – mas não conseguimos ver o lugar de onde ele vem, não
sabemos o seu nome. Sentimos saudade do que não sabemos.
A
saudade é o sentimento que mais se aproxima da paixão. Porque a
paixão é o amor quando tocado pela morte. O amor tocado pela morte
se inflama pelo medo da perda. E é assim que eu distinguiria o
apaixonado do amoroso: o amoroso goza o seu amor com a leveza de uma
criança, enquanto o apaixonado sofre a sua paixão por vivê-la
sempre iluminada pela possibilidade da perda. Esse sentimento, que
surgiu tão de repente, não poderá desaparecer tão de repente
quanto apareceu? Rilke estava apaixonado e deprimido quando escreveu:
“Quem foi que assim nos fascinou para que tivéssemos esse olhar de
despedida em tudo o que fazemos?”.
Por
isso o amante sente saudades da mulher amada mesmo estando ela
presente. Cassiano Ricardo perguntava:
Por
que tenho saudade
de
você, no retrato,
ainda
que o mais recente?
O
que explica a razão de a visão do rosto amado ser sempre
acompanhada de uma certa tristeza. A pessoa, objeto da paixão, está
sempre pronta para partir. A alma, lá no fundo, é saudade...
Rubem Alves, in Cantos do Pássaro Encantado
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