sexta-feira, 22 de abril de 2022

Uma pequena viagem


Havia duas coisas importantes — uma, que ela era velha demais; outra, que o sr. Thirkell a estava levando para Deus. E ele não tinha dado um tapinha na mão dela e dito: “Senhora Bellowes, vamos partir para o espaço em meu foguete e encontrá-Lo juntos”?
E era assim que ia ser. Ah, este era diferente de qualquer outro grupo de que a sra. Bellowes já havia participado. Em seu fervor de iluminar um caminho para seus pés delicados e hesitantes, ela havia acendido fósforos ao descer becos escuros e encontrado seu caminho para os místicos hindus cujos bruxuleantes cílios, estrelados, pairavam sobre bolas de cristal. Ela havia trilhado os caminhos relvados com filósofos indianos ascéticos importados por filhas em espírito de Madame Blavatsky. Ela havia feito peregrinações às florestas de gesso da Califórnia para caçar o vidente astrológico em seu hábitat. Havia até mesmo consentido em abrir mão do direito a uma de suas casas a fim de ingressar em uma ordem de incríveis pregadores gritalhões que lhe haviam prometido fumaça dourada, fogo de cristal e a grande mão macia de Deus vindo carregá-la para casa.
Nenhuma dessas pessoas jamais abalara a fé da sra. Bellowes, mesmo quando ela as viu serem levadas na noite, ao som de sirenes, em um camburão preto, ou viu suas fotos, deprimentes e sem romantismo, nos tablóides matutinos. O mundo as havia oprimido e mantido em isolamento porque sabiam demais, era tudo.
E então, duas semanas antes, ela havia visto o anúncio do sr. Thirkell na cidade de Nova York:

Venham Para Marte!
hospedem-se no thirkell repousorium por uma semana. e depois, vá para o espaço na maior aventura que a vida pode oferecer! pegue o panfleto gratuito “mais perto de ti, meu deus”. preços de excursão. viagem de ida e volta com desconto.

Viagem de ida e volta”, pensava a sra. Bellowes. “Mas quem ia querer voltar depois de vê-lo?” E, então, ela havia comprado uma passagem e voado para Marte e passado sete dias agradáveis no Repousorium do sr. Thirkell, o prédio com a placa que piscava: foguete de thirkell para o paraíso! Ela havia passado a semana se banhando em águas límpidas e apagando a dor de seus pequenos ossos, e agora estava inquieta, pronta para ser carregada no foguete espacial particular do próprio sr. Thirkell, como uma bala, a ser disparada lá fora no espaço, para além de Júpiter e Saturno e Plutão. E assim — quem poderia negar? — ficar cada vez mais perto do Senhor. Que maravilhoso! Não é que se conseguia senti-lo se aproximando? Não é que se conseguia sentir Seu hálito, Seu olhar, Sua Presença?
Aqui estou”, disse a sra. Bellowes, “um elevador antigo em frangalhos pronto para subir pelo poço. Deus só precisa apertar o botão.”
Agora, no sétimo dia, enquanto galgava com elegância os degraus do Repousorium, um monte de pequenas dúvidas a assaltava.
Particularmente”, ela disse em voz alta para ninguém, “aqui em Marte, não é bem a terra de leite e mel que eles disseram que seria. Meu quarto parece uma cela, a piscina é na verdade bastante inadequada e, além disso, quantas viúvas que parecem cogumelos ou esqueletos querem nadar? E, finalmente, o Repousorium inteiro cheira a repolho cozido e tênis!”
Ela abriu a porta da frente e deixou-a bater, com certa irritação.
Estava espantada com as outras mulheres no auditório. Era como perambular pelo labirinto de espelhos de um parque de diversões, sempre se deparando consigo mesma, o mesmo rosto empoado, as mesmas mãos de galinha e as pulseiras tilintantes. Uma após outra, as imagens de si mesma flutuavam diante dela. Estendeu a mão, mas não era um espelho; era uma outra senhora sacudindo seus dedos e dizendo:
Estamos esperando pelo senhor Thirkell. Shh!”
Ah”, cochicharam todas.
A cortina de veludo se abriu.
O sr. Thirkell apareceu, fantasticamente sereno, os olhos egípcios sobre todos. Mas havia algo, entretanto, em sua aparência que fazia com que se esperasse que ele dissesse “Olá!”, enquanto cães peludos pulavam por sobre suas pernas, através de seus braços fechados em arco e por sobre suas costas. Então, com cães e tudo, ele deveria dançar com um sorriso ofuscante de teclado de piano e sair para os bastidores.
A sra. Bellowes, em um canto secreto de sua mente que constantemente tinha de conter, esperava ouvir o som de um gongo chinês barato, quando o sr. Thirkell entrou. Seus grandes olhos escuros e líquidos eram tão improváveis que uma das velhas senhoras havia alegado brincalhonamente que vira uma nuvem de mosquitos pairando sobre eles como nos barris cheios de chuva de verão. E a sra. Bellowes algumas vezes captava o odor da naftalina do teatro e o cheiro de vapor em seu terno muito bem passado.
Mas com a mesma racionalização selvagem com que havia recebido todas as outras decepções em sua vida em ruínas, ela rechaçava a suspeita e sussurrava: “Desta vez é de verdade. Desta vez vai funcionar. Não temos um foguete?”.
O sr. Thirkell fez uma mesura. Deu um repentino sorriso de máscara de comédia. As velhinhas viram sua epiglote e perceberam ali o caos.
Antes mesmo de ele começar a falar, a sra. Bellowes o viu escolher cada uma de suas palavras, lubrificá-las e certificar-se de que corriam bem sobre os trilhos. O coração dela se apertou como um pequeno punho e ela rangeu os dentes de porcelana.
Amigas”, disse o sr. Thirkell, e podia-se ouvir o gelo se quebrar no coração de toda a plateia.
Não!”, disse a sra. Bellowes antes do tempo. Ela podia ouvir as más notícias correndo para ela e ela mesma amarrada aos trilhos, indefesa, enquanto as imensas rodas negras ameaçavam e o apito gritava impotente.
Haverá um ligeiro atraso”, disse o sr. Thirkell.
No instante seguinte, o sr. Thirkell deve ter gritado, ou se sentido tentado a gritar “Senhoras, permaneçam sentadas!”, como um menestrel, pois as mulheres haviam se levantado das cadeiras e se acercado dele, protestando e tremendo.
Um atraso não muito longo”, o sr. Thirkell levantou as mãos, dando tapinhas no ar.
Quanto tempo?”
Apenas uma semana.”
Uma semana!”
Sim. As senhoras podem ficar aqui no Repousorium por mais sete dias, não podem? Um pequeno atraso não terá importância no fim das contas, terá? As senhoras esperaram toda uma vida. Somente alguns dias a mais.”
A vinte dólares por dia, pensou a sra. Bellowes, friamente.
O que há de errado?”, uma mulher gritou.
Um problema jurídico”, disse o sr. Thirkell.
Temos um foguete, não temos?”
Bem, ss-sim.”
Mas estou aqui há um mês inteiro, esperando”, disse uma velhinha. “Atrasos, atrasos!”
É isso mesmo”, disse todo mundo.
Senhoras, senhoras”, murmurou o sr. Thirkell, sorrindo serenamente.
Queremos ver o foguete!” Era a sra. Bellowes adiantando-se, brandindo o punho como um martelinho de brinquedo.
O sr. Thirkell olhou dentro dos olhos das velhinhas, um missionário entre canibais albinos.
Bom, agora?”, disse.
Sim, agora!”, gritou a sra. Bellowes.
Receio que...”, ele começou.
Eu também receio!”, ela disse. “É por isso que queremos ver a nave!”
Não, não, agora, senhora...” Ele estalava os dedos pedindo seu nome.
Bellowes!”, ela gritou.
Ela era um recipiente pequeno, mas agora todas as pressões ebulientes que haviam se acumulado durante longos anos eram liberadas pelas delicadas aberturas de seu corpo. As bochechas se tornaram incandescentes. Com um grito que parecia o apito melancólico de uma fábrica, a sra. Bellowes correu para a frente e se pendurou nele, quase que com os dentes, como um cão dos Alpes ensandecido pelo verão. Ela não iria e nunca poderia largá-lo a não ser depois de morto, e as outras mulheres acompanharam, pulando e rosnando como uma matilha investindo contra seu treinador, o mesmo que as havia acariciado e para quem elas se agitavam e ganiam alegremente uma hora atrás, agora cercando-o, amassando suas mangas e afugentando a serenidade egípcia de seu olhar.
Por aqui”, grita a sra. Bellowes, sentindo-se como Madame Lafarge. “Por trás! Esperamos tempo demais para ver a nave. Toda hora ele adia, todo dia ficamos à espera, agora vamos ver.”
Não, não, senhoras!”, gritou o sr. Thirkell, saltando para lá e para cá.
Elas atravessaram em bando a parte de trás do palco e saíram por uma porta, como uma inundação, arrastando consigo o pobre homem para dentro de um galpão e depois para fora, entrando muito repentinamente em um ginásio abandonado.
Ali está!”, disse alguém. “O foguete.”
E então fez-se um silêncio que era terrível de suportar.
Lá estava o foguete.
A sra. Bellowes olhou para ele e suas mãos se soltaram do colarinho do sr. Thirkell.
O foguete era algo como um bule de cobre amassado. Havia mil protuberâncias e fissuras e canos enferrujados e respiradouros sujos dentro e sobre ele. As entradas estavam toldadas de poeira, parecendo olhos de uma porca cega.
Todas deram um suspiro lamentoso.
Este é o foguete Glória ao Altíssimo?”, gritou a sra. Bellowes, consternada.
O sr. Thirkell assentiu e olhou para os próprios pés.
Pelo qual pagamos mil dólares cada uma e viemos de longe até Marte para embarcar com o senhor e voar para encontrá-Lo?”, perguntou a sra. Bellowes. “Ora, isso não vale uma penca de bananas”, disse a sra. Bellowes. “Não passa de lixo!”
Lixo, cochicharam todas, começando a ficar histéricas.
Não o deixem fugir!”
O sr. Thirkell tentou se soltar e correr, mas mil armadilhas para gambá caíram sobre ele de todos os lados. Ele se contorcia. Todo mundo andava em círculos como ratos cegos. Houve choro e confusão que duraram cinco minutos, enquanto elas se aproximaram e tocaram o Foguete, o Bule Amassado, o Contêiner Enferrujado dos Filhos de Deus.
Bem”, disse a sra. Bellowes. Ela subiu até a entrada torta do foguete e se virou para todo mundo. “Parece que fizeram uma coisa terrível conosco”, ela disse. “Não tenho dinheiro nenhum para voltar para casa na Terra e tenho orgulho demais para ir ao governo e contar a eles que um homem comum como este nos tapeou, levando todas as nossas economias. Não sei como vocês se sentem quanto a isso, todas vocês, mas o motivo por que todas viemos é que tenho oitenta e cinco anos e você tem oitenta e nove e você tem setenta e oito e todas nós estamos nos encaminhando para os cem anos, e não há nada na Terra para a gente, e não parece haver nada em Marte também. Nenhuma de nós espera continuar respirando por muito mais tempo ou fazendo milhares de tapetes de crochê, ou nunca teríamos vindo aqui. Então, o que eu tenho a propor é uma coisa simples — correr o risco.”
Estendeu a mão e tocou a carcaça enferrujada do foguete.
Este é o nosso foguete. Pagamos pela viagem. E vamos fazer a nossa viagem!”
Todas se juntaram e ficaram na ponta dos pés, e abriram a boca atônitas. O sr. Thirkell começou a chorar. Ele o fez com bastante facilidade e muita eficiência.
Vamos entrar nesta nave”, disse a sra. Bellowes, ignorando-o. “E vamos decolar para onde estávamos indo.”
O sr. Thirkell parou de chorar tempo suficiente para dizer:
Mas era tudo um golpe. Eu não entendo nada de espaço. Ele não está lá fora, de modo algum. Eu menti. Não sei onde Ele está e não conseguiria encontrá-lo se quisesse. E as senhoras foram tolas de acreditar no que eu dizia”.
Sim”, disse a sra. Bellowes, “fomos tolas. Concordo com isso. Mas o senhor não pode nos culpar, pois somos velhas, e era uma ideia boa e bonita, umas das ideias mais adoráveis do mundo. Ah, nós na verdade não nos enganamos pensando que podíamos chegar mais perto d’Ele fisicamente. Era o sonho louco e gentil de gente velha, o tipo de coisa a que você se agarra durante uns poucos minutos por dia, mesmo que saiba não ser verdade. Então, todas vocês que querem ir, sigam-me na nave.”
Mas as senhoras não podem ir!”, disse o sr. Thirkell. “Não têm um navegador. E a nave é uma ruína!”
O senhor”, disse a sra. Bellowes, “será o navegador.”
Ela entrou na nave e, depois de um momento, as outras velhinhas se acotovelaram. O sr. Thirkell, rodando os braços freneticamente, foi assim mesmo empurrado pela entrada e, em um minuto, a porta se fechou com uma batida. O sr. Thirkell foi amarrado com cintos à cadeira do navegador, com todo mundo falando ao mesmo tempo e segurando-o. Os capacetes especiais foram distribuídos para serem ajustados em cada cabeça grisalha ou branca, para fornecer oxigênio extra em caso de vazamento no casco da nave e, finalmente, chegara a hora e a sra. Bellowes se postou atrás do sr. Thirkell e disse:
Estamos prontas, senhor.”
Ele não disse nada. Implorava a elas silenciosamente, usando os grandes olhos escuros e molhados, mas a sra. Bellowes balançava a cabeça negativamente e apontava para os controles.
Decolar”, concordou o sr. Thirkell morosamente, e apertou um botão.
Todo mundo caiu. O foguete decolou do planeta Marte com um grande rastro de fogo, e o barulho de uma cozinha inteira jogada no poço de um elevador, com o som de panelas e frigideiras e chaleiras e fogos crepitando e molhos borbulhando, com um cheiro de incenso queimado e borracha e enxofre, com cor de fogo amarelo e uma faixa em vermelho se estendendo abaixo deles, e todas as velhas cantando e se abraçando, e a sra. Bellowes subindo pelas paredes da nave suspirante, oscilante, tremente.
Rume para o espaço, senhor Thirkell.”
Não vai durar”, disse o sr. Thirkell, tristemente. “Esta nave não deve durar. Vai...”
Ela não durou.
O foguete explodiu.
A sra. Bellowes sentiu-se levantada e arremessada de lá para cá, vertiginosamente, como uma boneca. Ela ouviu os gritos altos e viu de relance os corpos, passando por ela em fragmentos de metal e luz empoeirada.
Socorro, socorro!”, gritava o sr. Thirkell, ao longe, em uma fraca transmissão de rádio.
A nave se desintegrara em um milhão de pedaços, e as velhinhas, todas as cem, foram lançadas diretamente para a frente com a mesma velocidade que a da nave.
Quanto ao sr. Thirkell, por algum motivo de trajetória, talvez, saíra pelo outro lado da nave. A sra. Bellowes o viu caindo separado e distante delas, berrando.
Lá vai o senhor Thirkell, pensou a sra. Bellowes.
E ela sabia aonde ele estava indo. Ia ser queimado e assado e grelhado para valer, mas para valer mesmo.
O sr. Thirkell estava caindo para dentro do Sol.
E aqui estamos, pensou a sra. Bellowes. Aqui estamos, indo e indo e indo.
Quase não havia impressão de movimento, mas ela sabia que estava se deslocando a oitenta mil quilômetros por hora e que continuaria a viajar àquela velocidade por uma eternidade, até que...
Ela viu as outras mulheres rodopiando à sua volta em suas próprias trajetórias, com poucos minutos de oxigênio restantes para cada uma em seus capacetes, e cada uma estava olhando para cima, para onde estavam indo.
É claro, pensou a sra. Bellowes. Indo espaço adentro. Indo e indo, e a escuridão como uma grande igreja, e as estrelas como velas, e apesar de tudo, do sr. Thirkell, do foguete, da desonestidade, estamos indo em direção ao Senhor.
E lá, sim, lá, enquanto ela continuava caindo e caindo, vindo em sua direção, ela podia discernir o contorno agora, vindo em direção a ela estava Sua poderosa mão dourada, estendendo-se para baixo, para segurá-la e confortá-la como a um pardal assustado.
Sou a senhora Amelia Bellowes”, ela disse tranquilamente, em sua melhor voz. “Sou do planeta Terra.”

Ray Bradbury, in A cidade inteira dorme e outros contos breves

Nenhum comentário:

Postar um comentário