A
praia Preta fica a menos de três horas de casa. Mas, como é
Ano-Novo, a praia Preta pode ficar a mais de dez horas de casa. A
praia Preta pode ficar a “não dá pra chegar em casa” de casa
dependendo do dia e da hora que eu decida voltar. A praia Preta pode
ficar a “quem teve essa ideia de merda?” dependendo da hora que
eu decida ir. A praia Preta, tranquila, não badalada, não
conhecida, dentro de um condomínio de casas familiares com
labradores e bebês, no Litoral Norte de São Paulo, pode ficar a
“sério que você vai pra Marte de triciclo trajando apenas sua
carne viva?” de casa.
Se
eu fosse realmente explicar (como se explicar não alimentasse ainda
mais um ciclo que é apenas ansiedade e que piora quando alimentado),
diria que pode acontecer muita chateação. Por exemplo, semana
passada. A reunião era para durar “uma horinha”, mas durou duas.
O percurso de Higienópolis até em casa era para durar vinte
minutos, mas havia muito trânsito e durou mais de quarenta. Tudo
isso atrasou muito um xixi programado desde a metade da reunião, e
também impediu que eu tirasse logo uma calça que estava me
apertando muito. A soma de “segurar xixi” com “calça apertada”
com “suar de muito calor” com “nervoso de não conseguir chegar
logo em casa para fazer xixi e tirar logo a calça apertada e molhada
de suor” me deu candidíase. A candidíase me deu dor lombar e
enjoo. Fiquei um dia inteiro meio pra baixo, querendo deitar, os
olhos ardendo. Cândida dá uma deprimida. A sensação de que somos
mais abertas do que gostaríamos. Agora me diz se eu não estivesse
em casa, pertinho da minha chaleira, da minha cama, do Onofre em
Casa, do meu ginecologista, do banheiro.
Por
exemplo, semana retrasada. Eu comi o melhor polvo de todos os tempos.
E, porque era o melhor polvo de todos os tempos, comi muito. Onze da
noite, tive uma daquelas dores de barriga que dão calafrios e
arrepios e você teria tempo de ler Grande sertão: veredas no
banheiro caso tivesse alguma condição de ler algo em vez de ficar
se contorcendo. Se abraçando como se dissesse o tempo todo para si
mesmo: “eu estou aqui com você”. Agora me diz se eu não
estivesse em casa, pertinho da minha chaleira, da minha cama, do
Onofre em Casa, do meu gastroenterologista, do banheiro.
Por
exemplo, mês passado. Eu briguei feio com uma das minhas melhores
amigas. Um pouco porque ela mereceu, mas muito porque a verdade é
que tenho um pouco de mania de perseguição. A verdade é que tenho
muita mania de perseguição. E criei na cabeça uma história de que
ela não estava sendo legal. Bastava eu dizer que estava triste, mas
eu disse outras cinquenta e seis coisas que para mim queriam dizer:
“estou triste” e para ela queriam dizer: “vou te foder, sua
vaca” e para nós, depois, acabaram querendo dizer que sou maluca.
E a gente brigou feio. E eu fiquei com muita gastrite e um pouco de
labirintite e ninguém vem me dizer que não foi o fígado, porque
fígado pode até não doer mas é quem dá tontura e é quem mais
sofre quando a gente está sofrendo. Aquilo que parece a boca do
estômago, ninguém me tira da cabeça que é fígado. Isso, meu pai
me ensinou. Agora me diz se eu não estivesse em casa, pertinho da
minha chaleira, da minha cama, do Onofre em Casa, da minha analista,
do banheiro.
Se
eu fosse realmente explicar, diria que hoje mesmo eu tive uma
daquelas enxaquecas insuportáveis que começam com dor no pescoço
que começa com uma tensão típica dos dias em que terei enxaqueca.
Fiquei muito enjoada e deitei no escuro com a cabeça para fora da
cama, para alongar o pescoço. O que piorou a enxaqueca, porque acho
que mandar mais sangue para um lugar que já me parecia inchado não
foi bom negócio. Agora me diz se eu não estivesse em casa,
pertinho. Você já entendeu. Essas coisas dão uma segurança, é
isso que eu quero dizer.
Pode
parecer papo de velha, e claro que a coisa piora com a idade. Mas eu
já pensava essas coisas aos quinze anos. Eu sempre pensei essas
coisas, desde que comecei a pensar coisas. Aos vinte viajei com um
namorado para Ilhabela e ele estava realmente preocupado se no dia
seguinte “ventaria mais ao norte”, ou algo parecido, para ele
praticar kitesurf. “Olha bem pra minha cara”, eu queria dizer a
ele. Eu estava preocupada se meus pais morreriam antes do Natal,
mesmo ainda sendo eles muito jovens e saudáveis (e sendo ainda
jovens e saudáveis até hoje). Estava preocupada se acordaria às
quatro da manhã com um ataque intenso de pânico que inviabilizaria
estar naquela pousada, namorar, tomar café, ter amigos, trabalhar,
ser promovida, ser promovida de novo, ter um parto normal, ter mais
um filho, ir passar o Natal na casa dos pais de um marido “x”,
andar pelas ruas, fazer compras num supermercado, envelhecer na
companhia de alguém, ter alguém próximo a mim no dia da minha
morte, não sentir dor ao morrer, ter alguém que eu amasse muito e
com quem pudesse ficar muito à vontade para gemer de dor e talvez
estar meio suja e talvez precisar de ajuda para ir ao banheiro no dia
que eu bem velhinha tivesse que morrer.
E
ele preocupado com o vento de Ilhabela. Ele era bem bonito, mas
realmente fiquei me perguntando de que me servia tudo aquilo. A
pousada, o fato de ele ser bonito, a praia. A festa que haveria no
dia seguinte, com todos aqueles “jovens” amigos dele, “você
vai adorar”. Daí eu perguntava o que eles faziam da vida e ele não
entendia por que eu perguntava isso. E daí se uma das meninas não
trabalha, se um dos caras trabalha com o pai numa empresa em que o
próprio pai não trabalha e muito menos o filho que trabalha com o
pai? E daí que eram apenas jovens querendo curtir? Eu a noite
inteira tentando ter um pouco de conversa de verdade com algum
daqueles “jovens”. Queria perguntar a uma das meninas bêbadas
amigas dele: “e você tem mais angústia em que hora do dia?”. Eu
desistindo deles, talvez meio enjoada, trancada no banheiro, deitada
no geladinho com as pernas em cima do bidê, algo como “parece o
fim dos tempos, mas sou só eu querendo que a minha pressão volte”.
Ele estava preocupado com o vento e me dizia o quanto eu ia adorar
seus amigos.
Já
está tudo combinado para o Ano-Novo na praia Preta. Cada um dos nove
amigos paga quatro mil duzentos e quarenta reais. Nesse valor estão
inclusos aluguel de uma casa enorme de frente para a praia, limpeza
feita pelo caseiro por seis dias, almoço e jantar feitos pela mulher
do caseiro por seis dias, e muitas bebidas alcoólicas que certamente
vão acabar antes. Pensei em pedir um desconto porque não bebo. Mas
ninguém gosta de dificuldade na hora de dividir uma conta. Nem eu.
Prefiro pagar a mais a ficar com uma calculadora atrás dos outros.
Mas, quando a bebida acabar no quarto dia e todo mundo for dar mais
dinheiro, espero que tenham a decência de não me pedir. Porque não
bebo. E talvez esse pensamento nem seja necessário, porque muito
provavelmente no quarto dia já não estarei na casa.
O
quarto dia é dia 30 de dezembro. Imagina o vazio da estrada nesse
dia. Ninguém volta da praia um dia antes da virada do ano. Ninguém
volta da praia um dia antes de fazer o que foi fazer na praia. É por
isso mesmo, porque ninguém vai travar minha passagem, que estou
pensando em voltar no dia 30. Vão achar estranho, eu sei. O cara que
estou levando comigo “numas de namorado mas ainda estamos nos
conhecendo” talvez fique meio enojadinho, talvez apenas me ache
misteriosa. Os outros vão balançar a cabeça enquanto estou ali e
“falar de mim” depois que eu me for. Vão comentar: “que puta
doida, podia estar aqui agora com a gente” quando estiverem bêbados
pulando ondinhas e se achando mais que felizes e mais que espertos.
Mas tudo isso é melhor que seis dias ininterruptos pensando: “e se
eu quiser ir embora agora, vão travar minha passagem?”. Talvez eu
aguente esse pensamento por dois dias, talvez por nenhum. Nem por um
único dia. Eu nem gosto de Ano-Novo. Eu tenho, na verdade, pavor de
Ano-Novo. Eu nem realmente gosto das pessoas que vão nessa viagem.
Eu nem gosto desse namorado. Então talvez, e, agora sim, esta é uma
decisão muito verdadeira e séria, eu nem vá. Não vou, acho.
Apesar
do valor alto, estou tranquila em desmarcar a viagem e pagar mesmo
assim. Ou em ficar apenas quatro, dos seis dias, e pagar a quantia
inteira, mesmo assim. Ou em ir num dia, voltar no outro, e pagar os
quatro mil duzentos e quarenta reais, mesmo assim. Se bem que é uma
sacanagem comigo, pagar por algo que talvez eu não faça. Mas é uma
sacanagem com os outros desistir em cima da hora. Talvez eu vá de
manhã e no fim da tarde já queira voltar. Porque eu posso voltar. É
importante que eu saiba disso, que fique muito claro, que fique claro
para todo mundo. É importante que eu chegue por último, para o meu
carro ficar mais perto da saída. É importante que não travem meu
carro, caso eu queira ir embora de madrugada (não quero incomodar,
acordar os outros). Vou porque quero e volto quando quero. Mesmo que
seja meio doente voltar duas horas depois de chegar. Ainda assim
posso voltar. E é bem capaz que eu volte. Talvez não duas horas
depois, porque nem é muito seguro, preciso descansar. Mas posso
dormir um pouco e voltar. Talvez eu simplesmente vá embora, deixe um
bilhete, escolha a pessoa de quem gosto ao menos um pouco e avise:
“minha mãe tá mal”. Não é exatamente uma mentira, nunca é,
minha mãe e meu pai nunca estiveram exatamente bem em todas essas
décadas. Quem é que está de fato cem por cento bem qualquer que
seja o dia e a idade e a década? Então não é exatamente mentira.
Vou
fazer a mala para seis dias, apenas para o caso de “e se”. Mas já
meio que negociei, só comigo, claro, que ficarei metade disso. Ou um
terço. E tenho essa opção maravilhosa, muito cristalina, muito
real, muito ensolarada, muito possível, de, quando chegar o dia, não
ir. Ou de, no meio da estrada, indo, voltar. Mas farei a mala,
comprarei protetor solar, calcinha branca, uma canga enorme para me
refestelar na areia. Legumes, frutas e ovos orgânicos (porque sei
que vão ignorar meu pedido de “somente comida orgânica”, então
vou me garantir). Aliás, como farei isso sem que achem que estou
segregando minha comida? Não sei. Está vendo? Coisa demais para
pensar, coisa demais para lidar. Seis intermináveis anos em Marte,
em carne viva, correndo o risco de travarem meu carro, travarem a
estrada, travarem minha saída com frases como “fica aí, doida”.
Como se faz para ir a qualquer lugar sem achar isso gigantescamente
insuportável? Sem ficar cansada antes mesmo de ir?
Vou
com meu carro, mas, para o caso de “dar uma merda com o carro ou
dar uma merda com a minha capacidade de dirigir ou dar uma merda com
o namoradinho de quem eu nem gosto e ele precisar ficar com meu
carro”, descubro pelo Google um único ponto de táxi na praia
Preta e ligo para o Jerônimo. Jerônimo diz que está de férias. “É
férias, moça. É Ano-Novo.” Eu digo que é uma emergência e que
posso pagar quinhentos reais, pergunto se ele pode me indicar alguém.
Ele rapidamente indica a si mesmo.
Explico
que vou para a praia Preta no dia 27 de manhã, mas a qualquer
momento posso precisar voltar. Minto que minha mãe está internada
num hospital, fazendo exames, e que, a depender da gravidade do
resultado deles, vou precisar voltar com urgência. Mas vou precisar
voltar na hora exata em que precisar voltar. Pode ser, inclusive, de
madrugada. Pode ser durante o almoço. Eu preciso ligar e saber que,
quinze minutos depois do segundo em que eu ligar, ele estará na
porta da casa. Ele topa. Diz que tem pai doente e entende. Me dá o
número do celular dele. Antes de sair, mando uma mensagem para
confirmar que nossos celulares estão sabidos e salvos e são aqueles
mesmo. Vejo a foto dele, parece boa gente. Ele responde um “vai com
Deus”. Faço terapia há mais de dez anos, mas só consigo ir para
a praia Preta por causa do Jerônimo. Preencho um cheque com o valor
de quinhentos reais só para o caso de “estar ansiosa demais pra
preencher um cheque”, e vou. Só por causa do cheque consigo ir.
Na
estrada penso que meu pai não vai para a praia, vai passar o
Ano-Novo sozinho com seu cachorro. Outro cachorro, porque o primeiro
morreu. Na estrada penso que minha mãe não vai para a praia, vai
passar o Ano-Novo sozinha com sua cachorra. Outra cachorra, porque a
primeira morreu. A primeira cachorra morreu e fico triste. Penso na
minha analista dizendo: “você precisa ter a sua vida”. Com quem
será que minha analista vai passar o Ano-Novo? O Ano-Novo joga uma
bomba na cidade e todas as formigas correm para fora de suas vidas e
isso é triste e assustador. Meus pais estão envelhecendo e isso é
triste e assustador. Eles não gostam muito de festa, mas ao mesmo
tempo gostam e preferem ficar sozinhos, mas ao mesmo tempo não
preferem e isso é triste e assustador. Eu ainda não tive filhos e
seria bonito passar o Ano-Novo com um filho. E talvez meus pais
ficassem mais felizes com um neto. Mas agora o que tenho são amigos
na praia e isso é triste e assustador. Uma coisa boa e feliz e verão
e festa ser tão triste e assustadora me deixa muito triste e
assustada. Estou cada vez mais longe de casa, mas, ao chegar lá,
ainda será perto. Vou conseguir. Dia 1o, não. Melhor dia 2. Dia 2
está aí. E as pessoas voltam e vão retirar a bomba do meio da
cidade. E meus pais estarão sozinhos, cada um numa casa, com seus
cachorros, passando a noite do dia 2, sozinhos, com seus cachorros.
Mas aí tudo bem, porque não tem fogos. São os fogos, acho, que
deixam tudo com cara de “festejo solene e obrigatório”. Os
fogos, quando não estamos comemorando, são como tiros de canhão no
peito, lembrando como somos sozinhos e tristes e assustados. São
como estouros de tímpanos porque nossa solidão e tristeza e susto
não suportam os sons tão altos dos outros em solenes festejos
obrigatórios. Lembrando que cachorros morrem e famílias se desfazem
e pessoas, por causa da bomba que foi jogada no meio da cidade, fogem
como formigas. Mas dia 2, qualquer coisa, eu estou por perto. Na
verdade, antes, bem antes. Talvez eu volte agora. Acho que não vou.
Tati Bernardi, in Depois a louca sou eu
Nenhum comentário:
Postar um comentário