segunda-feira, 25 de abril de 2022

– Porque acordam tão cedo os velhos? É para terem mais comprido o dia?



Quando o rapaz voltou, o velho adormecera na cadeira e o sol pusera-se já. O rapaz tirou da cama o velho cobertor da tropa e lançou-o sobre as costas da cadeira e os ombros do velho. Eram ombros estranhos, ainda fortes apesar de muito velhos, e o pescoço era ainda forte também e as rugas não tão evidentes quando o velho dormia e a cabeça lhe pendia para a frente. A camisa dele havia sido remendada tantas vezes que era como a vela, e aos remendos o sol os desbotara matizadamente. A cabeça do velho era, porém, muito velha, e de olhos fechados, não havia vida no rosto. O jornal estava pousado nos joelhos, e o peso do braço segurava-o da brisa da tarde. Estava descalço.
O rapaz deixou-o ficar, e, quando voltou, ainda o velho dormia.
Acorda, velho – disse o rapaz, e pousou a mão num dos joelhos dele.
O velho abriu os olhos e, por momentos, vinha regressando de muito longe. Sorriu depois.
Que arranjaste? – perguntou.
Ceia – respondeu o rapaz. – Vamos ter ceia.
Não tenho grande fome.
Anda comer. Não se pode pescar sem comer.
Eu tenho pescado – disse o velho, levantando-se, pegando no jornal e dobrando-o. Começou depois a dobrar o cobertor.
Deixa-te ficar de cobertor – recomendou o rapaz. – Não hás-de pescar sem comer, enquanto eu for vivo.
Pois então trata de viver muito tempo – disse o velho.
Que vamos comer?
Feijão e arroz, banana frita, e carne.
O rapaz trouxera tudo do Terraço, numa marmita dupla, de metal. As facas, os garfos e as colheres vinham na algibeira, o talher para cada um embrulhado num guardanapo de papel.
Quem te deu isto?
Martin. O dono.
Tenho de lhe agradecer.
Eu já agradeci – disse o rapaz. – Não precisas de agradecer.
Hei-de dar-lhe a carne fina de um peixe graúdo. Já fez isto por nós mais que uma vez?
Acho que sim.
Então tenho de lhe dar mais ainda. Pensa muito em nós.
E mandou duas cervejas.
Gosto mais de cerveja de lata.
Bem sei. Mas esta é Hatuey, de garrafa, e levo outra vez as garrafas.
Muito obrigado – disse o velho. – Se comêssemos?
Tenho estado a pedir-te – respondeu o rapaz, delicadamente. – Não queria abrir a marmita, enquanto não estivesses pronto.
Já estou pronto. Só precisava de tempo para me lavar.
Onde te lavaste?, pensou o rapaz. O chafariz da aldeia era duas ruas abaixo. Tenho de ter aqui água para ele, e sabão e uma boa toalha. Porque sou tão distraído? Tenho de lhe arranjar outra camisa e um casaco para o Inverno e uns sapatos e outro cobertor.
A tua carne é excelente – disse o velho.
Conta-me do “baseball” – pediu o rapaz.
Na Liga Americana são os Yankees, como eu disse – declarou o velho com satisfação.
Hoje, perderam – observou o rapaz.
Isso nada significa. O grande DiMaggio é sempre o mesmo.
Têm outros homens no grupo.
É claro. Mas a diferença está nele. No outro campeonato, entre Brooklyn e Filadélfia, escolho Brooklyn. Mas então penso em Dick Sisler e nos outros.
Nunca houve ninguém como eles. O Dick apanha a bola mais comprida que jamais vi.
Lembras-te de quando ele costumava vir ao Terraço? Eu queria levá-lo comigo à pesca, mas tinha tanta vergonha de lhe pedir... Depois pedi-te que lhe pedisses, e tu também tiveste vergonha.
Bem sei. E foi uma grande tolice. Podia ter ido com a gente. E teríamos tido isso para a vida inteira.
Gostava de levar o grande DiMaggio à pesca – disse o velho. – Dizem que o pai dele era pescador. Talvez tenha sido pobre como nós e percebesse.
O pai do grande Sisler nunca foi pobre e jogava, com a minha idade, nos grandes campeonatos.
Quando eu era da tua idade, ia de marujo num navio rumo à África e vi leões nas praias ao anoitecer.
Bem sei. Já me contaste.
Falamos de África ou de “baseball”?
– “Baseball”, acho eu – respondeu o rapaz. – Conta-me do grande John J. McGraw.
Em tempos idos, também costumava aparecer pelo Terraço.
Mas era bruto, duro de falas e tinha mau vinho. E trazia a cabeça tão cheia de cavalos como de “baseball”. Andava sempre com listas de cavalos na algibeira e muitas vezes dizia nomes de cavalos ao telefone.
Era um grande chefe – disse o rapaz. – Meu pai acha que ele era o maior.
Porque vinha cá muito – respondeu o velho. – Se Durocher tivesse continuado a vir para cá todos os anos, o teu pai acharia que era ele o maior.
E quem é de verdade o maior, o Luque ou o Mike Gonzalez?
Acho que são iguais.
E o melhor pescador és tu.
Não. Sei de outros melhores.
Qué va – disse o rapaz. – Há muitos pescadores bons e alguns dos grandes. Mas tu és só tu.
Obrigado, alegras-me muito. Espero que não apareça por aí um peixe tão grande que nos desminta a ambos.
Não há tal peixe, se ainda és tão forte como dizes.
Posso não ser tão forte como julgo – disse o velho. – Mas sei muitas manhas e tenho força de vontade.
Devias ir para a cama, para estares bem disposto pela manhã. Eu levo as coisas ao Terraço.
Então, boa noite. Pela manhã, acordo-te.
És o meu despertador – disse o rapaz.
E a idade é o meu – disse o velho. – Porque acordam tão cedo os velhos? É para terem mais comprido o dia?
Não sei. O que eu sei é que os rapazes pequenos ferram no sono até tarde.
Bem me lembro – concordou o velho. – Eu acordo-te a tempo.
Não gosto que ele me acorde. É como se eu fosse um inferior.
Eu sei.
Dorme bem, velhote.
O rapaz saiu. Haviam comido na mesa, às escuras, e o velho tirou as calças e meteu-se na cama. Enrolou as calças para fazerem de travesseiro, metendo o jornal dentro delas.
Enrolou-se ele próprio no cobertor para dormir sobre os outros jornais velhos que cobriam o colchão de arame.
Não tardou que estivesse a sonhar com a África, quando era rapaz, e as extensas praias douradas, e as praias brancas, tão brancas que faziam doer os olhos, e os cabos alterosos e as grandes montanhas escuras. Vivia ao longo da costa todas as noites agora, e em sonhos ouvia o estrondo da ressaca e via as canoas nativas deslizarem por ela. Cheirava o alcatrão e a estopa do convés, a dormir, e cheirava o cheiro da África, que a brisa de terra pela manhã trazia.
Em geral, quando cheirava a brisa de terra, acordava e vestia-se para ir acordar o rapaz. Mas, esta noite, o cheiro da brisa de terra viera muito cedo, e em sonhos soube que era ainda cedo e continuou a sonhar para ver as brancas alturas das Ilhas a erguerem-se do mar, e sonhou depois com os diferentes portos e ancoradouros das Ilhas Canárias.
Já não sonhava com tempestades, nem com mulheres, nem com grandes acontecimentos, nem com grandes peixes, nem com lutas, nem com provas de força, nem com sua mulher.
Sonhava apenas com lugares e os leões na praia. Brincavam quais gatos pequenos no escuro, e gostava deles como gostava do rapaz. Com o rapaz nunca sonhava. Acordou, olhou pela porta para a lua, desenrolou as calças e enfiou-as. Urinou fora da choupana e foi estrada acima para acordar o rapaz.
Tiritava ao frio da manhã. Mas sabia que tiritaria até aquecer, e que daí a pouco estaria a remar.

Ernest Hemingway, in O velho e o Mar

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