quarta-feira, 13 de abril de 2022

Por que Almocei meu Pai | 1


Quando os ventos do Norte sopravam com força, trazendo a gélida lembrança da permanente progressão da grande calota de gelo, tentávamos convencer-nos de que a poderíamos enfrentar e vencer, por mais ao Sul que avançasse, mesmo chegando à África. E, assim, tratávamos de empilhar as nossas reservas de ramos secos e pedaços de árvore em frente da caverna, fazendo uma enorme fogueira.
Era-nos difícil manter um suprimento de combustível suficiente para alimentar uma grande fogueira, ainda que com uma boa aresta de quartzito conseguíssemos cortar um ramo de cedro, de dez centímetros de espessura, em dez minutos. Eram os elefantes e os mamutes que nos mantinham quentes com o seu atencioso hábito de arrancar árvores para testarem a força das suas presas e das suas trombas. O Elephas Antiquus era ainda mais dado a este procedimento que o elefante moderno, porque tinha algumas dificuldades em evoluir, e não há nada que preocupe mais um animal em evolução do que saber como progride a sua dentição. Os mamutes, que nesse tempo consideravam a si mesmos quase perfeitos, apenas arrancavam árvores quando estavam coléricos ou quando queriam se exibir perante as fêmeas. Na época de acasalamento, apenas tínhamos de seguir as manadas para recolher madeira para o fogo, mas nas outras ocasiões uma pedrada certeira atrás da orelha de um que estivesse pastando, produzia verdadeiras maravilhas, podendo prover-nos de lenha suficiente para um mês. Conheço bem esse jogo ardiloso com os grandes mastodontes, mas um baobá arrancado pela raiz custa muito a arrastar para casa. Queima bem, mas mantém-nos a uma distância de quase trinta metros. Não faz sentido levar as coisas a esses extremos. De modo geral conseguíamos manter uma boa fogueira quando estava muito frio e as calotas de gelo do Kilimanjaro e do Ruwenzori desciam abaixo dos três mil metros.
Nas frias e límpidas noites de inverno as fagulhas voavam em direção às estrelas, a madeira verde crepitava, os ramos secos estalavam, e a nossa fogueira tinha o efeito de um enorme farol pelo Vale do Rift abaixo. Quando a temperatura do solo baixava o bastante ou a chuva cerrada trazia uma humidade que fazia estalar e doer as articulações, o tio Vanya vinha visitar-nos. Durante uma calmaria no barulho do tráfego da selva era possível ouvi-lo chegar com um som sussurrante pelas copas das árvores, pontuado por um ocasional e sinistro estalido de um ramo esforçado a partir-se, e uma praga abafada que se tornava num grito de raiva incontida quando ele acabava mesmo por cair.
Uma figura maciça chegava, por fim, arrastadamente ao círculo de luz em volta da fogueira, com os longos braços quase roçando o solo, a cabeça quadrada enterrada entre os ombros largos e peludos, os olhos ejetados de sangue, os lábios franzidos do esforço que costumava fazer para manter os caninos espetados fora da boca. Isto dava-lhe, quando acontecia, o aspecto de alguém que põe um sorriso totalmente falso numa festa de que só quer se livrar, o que para mim, como criança, era aterrorizador. No entanto, mais tarde descobri que por detrás das suas manias e excentricidades, pelas quais ele era o primeiro e único a sofrer, se escondia uma pessoa bondosa que arranjava sempre um pouco de zimbro ou alguns figos para oferecer a uma criança que ele, afetuosamente, supunha assustada com a ferocidade natural do seu aspecto.
Mas como falava! Como discutia! Mal nos saudava, inclinando a cabeça na direção da tia Mildred, mal estendia as suas pobres mãos, azuis de frio, para a fogueira, começava a investida contra o Pai, tal qual um rinoceronte de cabeça baixa, apontando o seu longo dedo acusador contra todo mundo, como se fosse a ponta do seu corno. O Pai deixava-o desabafar e descarregar os seus sentimentos, até aí reprimidos, numa torrente de denúncia. Então, depois de ele ter se acalmado um pouco e comido talvez uns ovos de epiórnis e uns duriões, o pai juntava-se à refrega, travando as investidas do tio Vanya com as suas brandas e irónicas interjeições, reduzindo-o por vezes a um silêncio estupefato, ao admitir alegremente as suas barbaridades e ao gabar-se delas com orgulho.
Acredito que no fundo gostavam muito um do outro, apesar de terem passado a vida inteira em violento desacordo. E dificilmente seria de outro modo, uma vez que eram homens-macaco de inabaláveis princípios, vivendo em estrita concordância com as suas crenças, as quais eram totalmente opostas em todos os aspectos. Cada um seguia o seu próprio caminho, firmemente convencido que o outro estava tragicamente enganado quanto ao rumo de evolução da espécie antropoide. A sua relação pessoal, embora atravessada por estas disputas, mantinha-se incólume. Discutiam, por vezes gritavam um com o outro, mas nunca chegavam a vias de facto. E, apesar de normalmente partir furioso, o tio Vanya acabava sempre por voltar.
A primeira discussão de que consigo lembrar-me entre os dois irmãos, tão diferentes em aparência e comportamento, foi sobre a questão de dispor ou não de uma fogueira acesa nas noites frias. Eu estava acocorado bem longe daquela coisa vermelha, revolteante, ferida mas voraz, olhando o pai a alimentá-la com uma esplêndida mas circunspecta indiferença. As mulheres estavam agachadas em monte, tagarelando enquanto se catavam umas às outras. A minha mãe, que ficava sempre um pouco à parte, contemplava o Pai com os seus olhos sombrios e melancólicos, enquanto mastigava papa para os bebés já desmamados. O tio Vanya surgiu no meio de nós como uma figura ameaçadora que falava em tom de condenação.
Desta vez arranjaste-a bonita! Edward — trovejou ele — Eu devia ter adivinhado que isto iria acontecer mais tarde ou mais cedo, mas pensei que, mesmo para a tua loucura, havia limites. Mas claro que estava enganado! É só voltar as costas por uma hora e venho encontrar-te com uma nova idiotice. E agora isto! Edward, se alguma vez te avisei, se alguma vez te implorei, como teu irmão mais velho, para pensares duas vezes antes de continuares no teu catastrófico rumo, para arrepiares caminho antes que te envolvas a ti e aos teus num desastre irremediável, deixa agora que te diga com redobrada ênfase: Para! Para, Edward! Antes que seja tarde demais — se realmente ainda vais a tempo, pára...
O tio Vanya recuperou o fôlego antes de acabar este discurso impressionante mas obviamente difícil de levar a bom termo, e o Pai aproveitou para intervir.
Ora viva, Vanya, há muito tempo que não te víamos por aqui. Vem aquecer-te, meu caro. Por onde tens andado?
O tio Vanya fez um gesto de impaciência.
Não muito longe. Tem sido uma estação bastante fraca para a fruta e os vegetais de que tanto depende a minha dieta...
Eu sei — disse o Pai num tom compreensivo. Parece que, apesar de tudo, sempre vamos entrar num período interpluvial. Tenho notado como a seca tem se alastrado ultimamente.
Mas não é só isso, de maneira alguma — continuou o tio Vanya irritado. — Há muito para comer na floresta se soubermos procurar. Acontece que cheguei à conclusão que na minha idade devo ter cuidado com aquilo que como. Daí que, como faria qualquer primata razoável, fui um pouco mais longe para encontrar o que queria. Até ao Congo, para ser exato, onde há de tudo e em muita quantidade para toda a gente, sem que tenhamos de fingir ter os dentes de um leopardo, o estômago de um bode ou o gosto e as maneiras de um chacal.
Estás exagerando, Vanya — protestou o Pai.
Voltei ontem — continuou o tio Vanya — já com a intenção de te fazer uma visita. Ao anoitecer, como é lógico, percebi que havia alguma coisa errada. Tenho conhecimento de onze vulcões nesta região, Edward, mas doze!? Soube logo que vinham problemas por aí e pressenti que tu estavas na sua origem. Esperando sinceramente estar enganado, mas no fundo com receio, apressei-me a chegar aqui. Mas tinha mesmo razão! Vulcões privados, francamente! Desta vez arranjaste-a bonita, Edward!
O Pai sorriu com malícia.
Achas mesmo, Vanya? — perguntou. — Quero dizer, será mesmo este o momento decisivo? Eu pensei que pudesse ser, mas é difícil ter a certeza. É com certeza um momento decisivo na ascensão do homem, mas será o momento decisivo?
O Pai semicerrou os olhos numa expressão de bem-humorado desespero que lhe era característica em determinados momentos.
Não sei se é um momento decisivo — disse o tio Vanya —, nem me interessa o que pensas que andas fazendo, Edward. A passar das marcas, talvez. Digo-te é que isto é a coisa mais perversa e antinatural...
E antinatural, não é? — interrompeu bruscamente o Pai. — Mas, pensando bem, Vanya, tem havido sempre um elemento artificial na vida sub-humana desde que adotamos os primeiros artefatos de pedra. Talvez tenha sido esse o passo decisivo, e isto seja simplesmente o seu desenvolvimento. E mesmo tu utilizas lascas de sílex, portanto...
Já falamos disso outras vezes — disse o tio Vanya. Dentro de limites razoáveis, as ferramentas e os artefatos não transgredem a natureza. As aranhas apanham a presa através da sua teia; os pássaros constroem melhores ninhos do que nós; e muitas são as vezes que apanhas com um coco na tua dura cabeça atirado por um macaco, como bem sabes. Se calhar foi isso que te deu cabo do juízo. Ainda há poucas semanas vi um bando de gorilas dar uma sova num grupo de elefantes — elefantes, vê bem! — com paus. Estou disposto a aceitar que simples pedras lascadas estejam de acordo com a natureza, desde que não nos tornemos demasiado dependentes delas e não seja feita qualquer tentativa indevida de aperfeiçoá-las. Eu não sou um conservador, Edward, e aquilo ainda aceito. Mas isto, Edward! Isto é bem diferente. Isto pode acabar sabe-se lá onde. Afeta todo mundo.
Até a mim. Com isto podes queimar toda a floresta. E depois para onde é que eu vou?
Não penso que chegue a tanto, Vanya — disse o Pai.
Ah não? Então pergunto, Edward, és capaz de controlar totalmente essa coisa?
Hummm... mais ou menos. Mais ou menos, sabes...
Que queres dizer com mais ou menos? Ou és capaz ou não és. Deixa-te de evasivas.
Podes apagá-la, por exemplo?
Se não a alimentar apaga-se por si mesma — disse o Pai na defensiva.
Edward, — disse o tio Vanya. — Eu aviso-te. Começaste algo que podes não conseguir parar. Pensas então que se apaga se não a alimentares! E já te ocorreu que pode um dia resolver alimentar-se a si própria? E nesse caso o que poderás tu fazer?
Isso ainda não aconteceu — disse o Pai, zangado. A verdade é que perco todo o meu tempo mantendo-a acesa, sobretudo nas noites úmidas.
Nesse caso, o meu mais veemente conselho é que não a mantenhas acesa mais tempo — disse o tio Vanya — antes que provoques uma reação em cadeia. Há quanto tempo é que andas brincando com o fogo?
Oh, já o descobri há alguns meses — disse o Pai. E, sabes Vanya, é a coisa mais fascinante que existe. As possibilidades são fantásticas. Há tanta coisa que se pode fazer com ele. Muito para além do mero aquecimento central, embora já seja um grande passo em frente. Ainda mal comecei a trabalhar as suas possíveis aplicações. Mas considera apenas a fumaça: acredites ou não, sufoca as moscas e afugenta os mosquitos. Claro que o fogo é um material complicado. É difícil de transportar, por exemplo. Tem um apetite voraz: come como um cavalo. É maldoso e, se não tiveres cuidado, a sua picada é muito dolorosa. E é de fato uma novidade, abrindo boas perspectivas de…
Mas, de repente, ouviu-se um grito estridente e o tio Vanya começou aos saltos num só pé. Eu tinha estado observando com grande interesse o fato de, já há algum tempo, ele estar pisando em um tição em brasa. Estava tão excitado com a discussão com o Pai, que não dera por nada, e muito menos pelo barulho ciciante ou pelo peculiar cheiro que se seguiu. Mas agora a brasa tinha atravessado a planta do pé.
Aaaaaah! — rugiu o tio Vanya. — Edward, seu maldito louco! Mordeu-me! Foi isso que o teu infernal monte de artimanhas fez! Aaaaah! O que é que eu te tinha dito? Vai acabar por vos comer a todos! A sentar-se em cima de um vulcão em atividade, é o que vocês estão fazendo! Não te digo mais nada, Edward! Vão ser extintos, todos vocês, num abrir e fechar de olhos! Conseguiste! Aaaaah! Eu vou voltar para as árvores! Desta vez passaste da medida, Edward! Foi exatamente isso que os Brontossauros fizeram!
Coxeando, afastou-se até o perdermos de vista, mas os seus uivos ouviram-se no mínimo durante mais quinze minutos.
De qualquer maneira, acho que foi o Vanya quem passou dos limites — disse o Pai a Mãe enquanto varria cuidadosamente a soleira com um farfalhudo ramo de árvore.

Roy Lewis, in Por que Almocei meu Pai

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