“Ele,
guerreiro, cavalgava um cavalo negro. Seus olhos eram tranquilos, seu
rosto triste, seus cabelos dourados como a luz do sol, e sua voz só
se ouvia depois de longos silêncios.
Ela,
diáfana como a lua, cabelos loiros e voz mansa como a luz das
estrelas.
Eles
muito se amavam.
Mas
havia naquela terra um feiticeiro das trevas. Ele se apaixonou pela
moça-lua. Quis tê-la para si. Mas ela amava o guerreiro e repeliu
os gestos do feiticeiro. Este, enfurecido, lançou sobre os amantes
um feitiço: estariam condenados, pelo resto dos seus dias, a nunca
se tocarem. A mulher seria como a lua. Só apareceria à noite,
depois de o sol se pôr. Durante o dia ela seria um falcão branco. E
seu amado seria como o sol: só apareceria durante o dia. Durante a
noite ele seria um lobo negro.
E
assim aconteceu. Durante o dia o guerreiro cavalgava em seu cavalo,
levando no ombro sua amada, o falcão branco. Durante a noite o
falcão voltava a ser mulher e ficava ao lado do seu amado, o lobo
negro.
Mas
havia um breve momento encantado, quando eles quase se tocavam. Ao
pôr do sol, quando a luz do dia se misturava com o escuro da noite,
o falcão voltava a ser mulher e o guerreiro se transformava em lobo.
Ao nascer do sol, quando o escuro da noite se misturava com a luz do
dia, o lobo voltava a ser guerreiro e a mulher se transformava em
falcão. Nesse brevíssimo momento, os dois apareciam um para o outro
como sempre haviam sido... Suas mãos se estendiam, uma querendo
tocar a outra – mas o toque era impossível, porque, antes que suas
mãos se tocassem, a metamorfose acontecia.
O
guerreiro amava o falcão. Sabia que dentro do falcão vivia sua
amada, encantada. Ele acariciava suas penas – mas um falcão não é
uma mulher. Ele o carregava movido pela esperança de que, um dia, o
feitiço fosse quebrado.
A
mulher amava o lobo. Sabia que dentro do lobo vivia, encantado, o
guerreiro de olhos profundos que ela amava. Ela acariciava seu pelo
negro – mas um lobo não é um homem. Ela o acariciava movida pela
esperança de que, um dia, o feitiço fosse quebrado.
Mas
o amor é mais forte que os feitiços maus. E aconteceu que, um dia,
depois de uma luta horrenda, o feiticeiro foi morto e o feitiço foi
quebrado. O guerreiro voltou a ser o guerreiro que sempre fora, e a
mulher voltou a ser a mulher que sempre fora. E as suas mãos puderam
se tocar e tudo foi alegria e eles se casaram e viveram felizes para
sempre...”
Assim
termina a estória tal como me foi contada, com um final feliz. Mas
eu, que também sou feiticeiro, imaginei outro final para essa mesma
estória. E é esse outro fim que passo a contar.
O
guerreiro, não podendo suportar a tristeza da sua condição,
resolveu procurar um feiticeiro bom que tivesse poder maior que o
feiticeiro mau. Ele se chamava Merlin. O guerreiro foi à
morada-caverna dele, no alto de uma montanha, levando ao ombro o
falcão. Lá chegando, contou-lhe a sua desgraça e formulou o seu
pedido: queria que ele e a amada deixassem de ser lobo e falcão e
voltassem a ser homem e mulher, para que pudessem se amar.
Merlin
fez um grande silêncio e lhe disse:
– Não
posso atender o seu pedido, porque isso seria a sua perdição, o fim
do seu amor. A magia nada cria. A magia só tem o poder de trazer das
profundezas aquilo que lá existe. Você, no fundo da sua alma, é um
lobo selvagem. A sua amada, no fundo da alma dela, é um falcão
selvagem. Ela o ama porque vê, no fundo dos seus olhos mansos, um
lobo que anda sem medo por florestas escuras. E você a ama porque
vê, no fundo dos olhos mansos dela, um falcão que voa sem medo nas
alturas. Se eu, por um feitiço, destruir o selvagem que há em você
e o selvagem que há nela, não mais haverá mistérios dentro dos
seus olhos. Vocês se transformarão em animais domésticos: um cão
que abana o rabo para ganhar um osso, uma pata que rebola sem poder
voar. Domesticados, se transformarão em seres banais. Você não
terá estórias das matas escuras para lhe contar nem ela terá
estórias de voos pelos picos gelados das montanhas para contar a
você. E o seu amor se transformará num tédio interminável.
O
guerreiro chorou.
– Então,
nosso amor está condenado?
– Não
— disse Merlin. — Há esperança, mas não do jeito como vocês
querem. Não vou desfazer o feitiço, vou rearranjá-lo. Quando os
primeiros raios de sol iluminarem o horizonte, você se transformará
em lobo e ela se transformará em falcão. Você irá para o mistério
das matas, e ela para os mistérios dos céus. Vocês serão
selvagens ao mesmo tempo, cada um no seu mundo. Quando o sol se puser
e a primeira estrela aparecer, você voltará a ser o guerreiro-sol,
e ela voltará a ser a mulher-lua. Aí então vocês se
encontrarão...
Ditas
essas palavras, Merlin ficou em silêncio. Acendeu a fogueira na sua
caverna, porque estava ficando frio. O sol estava se pondo. A noite
se aproximava. Aceso o fogo, ele pronunciou palavras de bruxedo e
despediu-se do guerreiro com o seu falcão.
O
guerreiro, falcão no ombro, começou a longa descida da montanha
para a planície. Seu rosto estava iluminado pelos últimos raios do
sol que se punha. E foi então que, no meio do céu, viu a primeira
estrela que aparecia…
Rubem Alves, in Cantos do Pássaro Encantado
Nenhum comentário:
Postar um comentário