segunda-feira, 18 de abril de 2022

Na estepe


A vida na estepe não é fácil; qualquer lugar se encontra a horas de distância, e não há outra coisa para ver além dessa grande mata de arbustos secos. Nossa casa fica a vários quilômetros do povoado, mas tudo bem: é cômoda e tem tudo de que necessitamos. Pol vai ao povoado três vezes por semana, envia às revistas de agricultura suas notas sobre insetos e inseticidas e faz as compras de acordo com as listas que preparo. Nessas horas em que ele não está, prossigo com uma série de atividades que prefiro fazer sozinha. Acho que Pol não gostaria de saber disso, porém, quando se está desesperado, quando se chegou ao limite, como nós, então as soluções mais simples, como as velas, os incensos e qualquer conselho de revista parecem opções razoáveis. Como existem muitas receitas para a fertilidade, e nem todas tão confiáveis, aposto nas mais verossímeis e sigo rigorosamente seus métodos. Anoto no caderno qualquer detalhe pertinente, pequenas mudanças em Pol ou em mim.
Escurece tarde na estepe, o que não nos deixa muito tempo. Tudo deve estar preparado: as lanternas, as redes.
Pol limpa as coisas e espera chegar a hora. Isso de tirar a poeira para sujar tudo um segundo depois dá certo aspecto de ritual ao assunto, como se antes de começar já se estivesse pensando na forma de fazê-lo cada vez melhor, revisando atentamente a rotina dos últimos dias para encontrar qualquer detalhe que possa ser corrigido, que nos leve a eles, ou ao menos a um deles: o nosso.
Quando estamos prontos, Pol me passa a jaqueta e o cachecol, eu o ajudo a calçar as luvas e cada um pendura sua mochila no ombro. Saímos pela porta dos fundos e caminhamos campo adentro. A noite é fria, porém o vento se abranda. Pol vai na frente, ilumina o solo com a lanterna. Mais adiante o campo se afunda um pouco em longas colinas; avançamos em direção a elas. Nessa zona os arbustos são pequenos, quase conseguem ocultar nossos corpos e Pol acredita que essa é uma das razões pelas quais o plano fracassa toda noite. Porém insistimos, porque em várias ocasiões nos pareceu que víamos alguns ao amanhecer, quando já estávamos cansados. Nessas horas eu invariavelmente me escondo atrás de algum arbusto, agarrada à minha rede, e cabeceio e sonho com coisas que me parecem férteis. Pol por sua vez se converte numa espécie de animal de caça. Vejo-o se distanciar, agachado entre as plantas, e pode permanecer de cócoras, imóvel, durante muito tempo.
Sempre me perguntei como serão realmente. Conversamos sobre isso várias vezes. Creio que são iguais aos da cidade, só que mais rústicos, talvez mais selvagens. Para Pol, por outro lado, são definitivamente diferentes, e, ainda que esteja tão entusiasmado quanto eu, e não passe uma noite sem que o frio ou o cansaço tentem persuadi-lo a deixar a busca para o dia seguinte, quando estamos entre os arbustos ele se move com certo receio, como se algum animal selvagem pudesse atacá-lo de um momento para outro.

Agora estou sozinha, olhando a estrada da cozinha. Esta manhã, como sempre, nos levantamos tarde e almoçamos. Depois Pol foi ao povoado com a lista de compras e os artigos para a revista. Mas já é tarde, faz tempo que ele devia ter voltado, e ainda não apareceu. Então vejo a caminhonete. Ao chegar em casa me faz sinais pelo para-brisa para que saia. Eu o ajudo com as coisas, ele me cumprimenta e diz:
Você não vai acreditar.
Em quê?
Ele sorri e faz sinal para eu entrar. Carregamos as sacolas, mas não as levamos até a cozinha, pois algo está acontecendo e afinal existe alguma coisa a ser contada. Deixamos tudo na entrada e nos sentamos nas poltronas.
Bem – diz Pol, esfregando as mãos –, conheci um casal; são geniais.
Onde?
Pergunto somente para que continue falando e então ele diz algo maravilhoso, algo que nunca me ocorreu, e sem demora compreendo que tudo vai mudar.
Vieram pelo mesmo motivo – conta. Seus olhos brilham e sabe que estou desesperada para que continue – e eles têm um deles, já vai fazer um mês.
Eles têm um? Têm um! Não posso acreditar…
Pol não para de concordar e esfregar as mãos.
Fomos convidados para jantar. Hoje mesmo.

Alegra-me vê-lo feliz e eu também estou tão feliz que é como se nós também tivéssemos conseguido. Nós nos abraçamos e nos beijamos, e em seguida começamos a nos preparar.
Preparo uma sobremesa e Pol escolhe um vinho e seus melhores charutos. Enquanto tomamos banho e nos vestimos, ele conta tudo o que sabe. Arnol e Nabel vivem a uns vinte quilômetros daqui, numa casa muito parecida com a nossa. Pol a viu porque regressaram juntos, em caravana, até que Arnol tocou a buzina para avisar que viravam e então viu que Nabel lhe apontava a casa. São geniais, diz Pol a cada instante, e sinto certa inveja de que já saiba tanto sobre eles.
E como é? Chegou a ver?
Deixam-no em casa.
Como assim, deixam em casa? Sozinho?
Pol levanta os ombros. Acho estranho que o assunto não lhe chame a atenção, mas assim mesmo peço mais detalhes enquanto prossigo com os preparativos.
Fechamos a casa como se não fôssemos voltar durante um tempo. Colocamos agasalhos e saímos. Durante a viagem levo a torta de maçã sobre a saia, cuidando para que não se incline, e penso nas coisas que vou dizer, em tudo o que quero perguntar a Nabel. Pode ser que quando Pol convide Arnol a um charuto nos deixem a sós. Talvez então possa falar com ela sobre coisas mais privadas; talvez Nabel também tenha usado velas e sonhado com coisas férteis de vez em quando e agora que conseguiram possam nos dizer exatamente o que fazer.
Ao chegar, tocamos a buzina e logo em seguida eles saem para nos receber. Arnol é um sujeito alto e usa jeans e uma camisa vermelha quadriculada; cumprimenta Pol com um forte abraço, como um velho amigo a quem não vê faz tempo. Nabel surge atrás de Arnol e sorri para mim. Acho que vamos nos dar bem. Também é alta, da altura de Arnol, apesar de longilínea, e se veste quase como ele; me incomoda ter vindo tão bem-vestida. Por dentro a casa parece uma velha pousada de montanha. Paredes e teto de madeira, uma grande chaminé no living e peles sobre o piso e as poltronas. É bem iluminada e calafetada. Realmente não é como eu decoraria minha casa, mas penso que tudo bem e devolvo a Nabel o seu sorriso. Há um delicioso cheiro de molho e carne assada. Parece que Arnol é o cozinheiro; move-se pela cozinha, acomodando algumas travessas sujas, e diz a Nabel que nos convide ao living. Sentamo-nos no sofá. Ela serve vinho, traz uma bandeja com aperitivos e em seguida Arnol se junta a nós. Quero perguntar coisas agora mesmo: como o agarraram, como é, como se chama, se come bem, se já foi examinado por um médico, se é tão bonito como os da cidade. A conversa, porém, alonga-se em assuntos vagos. Arnol consulta Pol sobre os inseticidas. Pol se interessa pelos negócios de Arnol, depois falam das caminhonetes, os lugares onde fazem compras, descobrem que discutiram com o mesmo homem, um que atende no posto de gasolina, e concordam que é um péssimo sujeito. Então Arnol se desculpa porque tem de conferir a comida. Pol se oferece para ajudá-lo e se afastam. Acomodo-me no sofá em frente a Nabel. Sei que devo dizer algo amável antes de perguntar o que gostaria. Felicito-a pela casa, e em seguida pergunto:
É lindo?
Ela enrubesce e sorri. Olha para mim meio envergonhada e sinto um nó no estômago e morro de felicidade e penso “eles têm um”, “têm um e é bonito”.

Quero vê-lo – digo. “Quero vê-lo já”, penso, e me levanto. Olho para o corredor esperando que Nabel diga “por aqui”, finalmente poderei vê-lo, pegá-lo no colo.
Então Arnol regressa com a comida e nos convida para a mesa.
É porque dorme o dia inteiro? – pergunto e dou risada, como se fosse uma piada.
Ana está ansiosa para conhecê-lo – diz Pol, e acaricia meu cabelo.
Arnol ri, mas, em vez de responder, põe a travessa na mesa e pergunta quem gosta de carne malpassada e quem de mais cozida, e logo estamos comendo. Durante o jantar, Nabel é mais comunicativa. Enquanto eles conversam, nós descobrimos que temos vidas parecidas. Nabel me pede conselhos sobre plantas e então me animo e falo das receitas para fertilidade. Falo delas como algo engraçado, verdadeiros achados, então Nabel logo se interessa e descubro que ela também as praticou.
E as saídas? As caçadas noturnas? – pergunto, dando risada – As luvas, as mochilas? – Nabel fica um segundo em silêncio, surpreendida, e depois começa a rir comigo.
E as lanternas! – diz ela e segura a barriga. – E essas malditas pilhas que não duram nada!
E eu, quase chorando:
E as redes! A rede de Pol!
E a de Arnol! – diz ela. – Não tenho nem como explicar!
Então eles deixam de falar. Arnol olha para Nabel, parece surpreso. Ela ainda não se deu conta: dobra-se num ataque
de riso, golpeia a mesa duas vezes com a palma da mão; parece que gostaria de dizer algo mais, mas mal consegue respirar. Olho para ela, achando-a divertida, olho para Pol, quero comprovar que também está se divertindo, e então Nabel toma ar e, chorando de tanto rir, diz:
E a escopeta – volta a golpear a mesa. – Pelo amor de Deus, Arnol! Se você parasse de atirar! Nós o teríamos encontrado muito mais rápido…
Arnol olha para Nabel como se quisesse matá-la e afinal solta uma longa risada exagerada. Volto a olhar para Pol, que já não ri mais. Arnol levanta os ombros resignado, buscando em Pol um olhar de cumplicidade. Depois faz o gesto de apontar com uma escopeta e dispara. Nabel o imita. Repetem uma vez mais, apontando um para o outro, já um pouco mais calmos, até que param de rir.
Ai… Por favor… – diz Arnol, e aproxima a travessa para oferecer mais carne. – Afinal temos com quem compartilhar toda essa coisa… Alguém quer mais?
Bem, e onde está? Queremos vê-lo – diz enfim Pol.
Já vão vê-lo – diz Arnol.
Dorme demais – diz Nabel.
O dia inteiro.
Então o vemos dormindo! – diz Pol.
Ah, não, não – diz Arnol –, primeiro a sobremesa que a Ana fez, depois um bom café, e minha Nabel aqui preparou alguns jogos de mesa. Você gosta de jogos de estratégia, Pol?
Mas gostaríamos de vê-lo adormecido.
Não – diz Arnol. – Digo: não faz nenhum sentido vê-lo assim. Para isso, podem vê-lo outro dia qualquer.
Pol me observa um segundo, depois diz:

Bem, então vamos à sobremesa.
Ajudo Nabel a levar as coisas. Tiro a torta que Arnol acomodara na geladeira, levo-a até a mesa e a preparo para servir. Enquanto isso, Nabel se ocupa do café na cozinha.
O banheiro? – diz Pol.
Ah, o banheiro… – diz Arnol e olha para a cozinha, talvez procurando Nabel – é que não funciona bem e…
Pol faz um gesto para diminuir a importância do assunto.
Onde fica?
Talvez sem querer, Arnol olha para o corredor. Então Pol se levanta e começa a caminhar. Arnol também se levanta.
Acompanho você.
Tudo bem, não precisa – diz Pol, já entrando no corredor.
Arnol o segue por uns passos.
À sua direita – diz. – O banheiro é o da direita.
Sigo Pol com o olhar até que ele finalmente entra no banheiro. Arnol permanece uns segundos de costas para mim, olhando para o corredor.
Arnol – é a primeira vez que o chamo pelo nome –, posso servir você?
Claro – responde. Ele me olha e se vira novamente para o corredor.
Está servido – digo, e empurro o primeiro prato até o lugar. – Não se preocupe, ele vai demorar.
Sorrio, porém ele não responde. Volta para a mesa. Senta-se em seu lugar, de costas para o corredor. Parece incomodado, mas afinal corta com o garfo uma porção enorme de sua sobremesa e a leva à boca. Olho com surpresa para ele e continuo a servir. Da cozinha, Nabel pergunta de que modo gostamos do café. Estou prestes a responder, mas vejo Pol sair silenciosamente do banheiro e cruzar para o outro cômodo. Arnol me olha, aguardando uma resposta. Digo que adoramos café, que gostamos de qualquer jeito. A luz do quarto se acende e ouço um ruído surdo, como algo pesado sobre um tapete. Arnol está em via de se virar para o corredor, então o chamo:
Arnol – ele olha para mim já começando a se levantar. Ouço outro ruído; em seguida Pol grita e algo cai no chão, uma cadeira talvez, um móvel pesado que se move e depois coisas que se quebram. Arnol corre até o corredor e pega o rifle que está pendurado na parede. Eu me levanto para correr atrás dele, Pol sai do quarto de costas, sem deixar de olhar para dentro. Arnol segue direto para ele, porém Pol reage, golpeando-o para lhe tomar o rifle, empurra-o para o lado e corre em minha direção. Não consigo entender o que está acontecendo, porém deixo que tome meu braço e saímos. Ouço a porta se fechando lentamente atrás de nós e depois o golpe que volta a abri-la. Nabel grita. Pol sobe na caminhonete e dá a partida, eu subo pelo meu lado. Saímos de marcha a ré e por uns segundos as luzes iluminam Arnol, que corre em nossa direção.
Já na estrada andamos um tempo em silêncio, tratando de nos acalmar. Pol tem a camisa rasgada, quase perdeu por completo a manga direita e no braço sangram uns arranhões profundos. Nos aproximamos de nossa casa a toda velocidade e a toda velocidade nos distanciamos. Olho-o para detê-lo, mas ele respira agitado, as mãos tensas agarradas ao volante. Examina o campo negro por todos os lados, e a parte de trás pelo espelho retrovisor. Deveríamos diminuir a velocidade. Poderíamos nos matar, caso um animal cruzasse o caminho. Então penso que também se poderia cruzar com um deles: o nosso. Contudo, Pol acelera ainda mais, como se de dentro do terror de seus olhos perdidos contasse com essa possibilidade.

Samanta Scheweblin, in Pássaros na boca

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