Eu
tenho um ermo enorme dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um
menino peralta. Agora tenho saudade do que não fui. Acho que o que
faço agora é o que não pude fazer na infância. Faço outro tipo
de peraltagem. Quando era criança eu deveria pular muro do vizinho
para catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu
fazia solidão. Brincava de fingir que pedra era lagarto. Que lata
era navio. Que sabugo era um serzinho mal resolvido e igual a um
filhote de gafanhoto.
Cresci
brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem
comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que
comparação.
Porque
se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de
um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro
e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão
comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro
me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem
pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança
em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão
com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino
e o rio. Era o menino e as árvores.
Manoel de Barros, in Memórias Inventadas – A segunda infância
Nenhum comentário:
Postar um comentário