sexta-feira, 29 de abril de 2022

Dois guris – ou A maternidade perdida

O Poeta é aquele ser a quem é dado, mais do que aos outros, o poder de manifestar a vida dos afetos; é como se ele tivesse uma maior possibilidade de contato com o próprio inconsciente (pessoal e filogenético) e a poesia é um espaço em que se permite ao inconsciente aflorar. Diz Baudelaire que o Poeta dispõe do privilégio de ser ao mesmo tempo ele próprio e o Outro. E eu especificaria: ou Outra. Não por acaso, em seu famoso estudo sobre a Feminilidade, Freud acaba seu ensaio dizendo: “e agora, quem quiser saber mais sobre a mulher, que consulte os poetas”. É assim que nas canções de Chico Buarque emerge a fala da mulher, de uma perspectiva, por vezes, espantosamente feminina. Penso, por exemplo, numa canção como “Pedaço de mim”, em que surge com grande intensidade o sentimento feminino de perda, de privação, de falta. Trata-se de uma canção que flagra um momento de despedida de um casal, atualizando em nós o estado de incompletude e carência, e a consequente sensação de mutilação que as separações mobilizam:

Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi

Evidentemente, há aqui uma convergência de elementos: de uma perspectiva psicanalítica, o complexo de castração: a percepção feminina de que lhe falta um pedaço, como queria Freud; da perspectiva do mito, há uma dupla referência. De um lado, alusão ao Andrógino do Banquete de Platão: o ser composto, dividido por Zeus em duas metades, que hão de procurar-se o resto da vida, inapelavelmente... De outro lado, ainda no nível mítico, mas de outra vertente cultural, há uma alusão à narrativa da Criação do homem, tal como ela aparece no Gênesis, no primeiro livro da Bíblia: a criação de Eva, por Javé, a partir de uma costela de Adão.
É essa percepção de radical incompletude que experimentamos, a dor da mutilação nas separações amorosas, a percepção da falha, da falta, da carência – é a isso tudo que respondem essas duas narrativas míticas, de culturas diferentes, grega e judaica, à raiz da civilização ocidental. E é essa percepção que o poeta verbaliza, é essa dor que ele nomeia. A unidade (precária, fugaz, ilusória) que se consegue no encontro amoroso, quando rompida, leva à sensação de uma mutilação. O Andrógino era, efetivamente, o ser total, completo, pleno; dividido, restam pedaços incompletos, faltantes. Com efeito, quando essa unidade se rompe, sobram metades desraigadas, procurando sua outra “cara-metade”; há quase que uma perda do próprio eu, no momento da separação. Vivemos na nostalgia de uma unidade perdida.
Mas, continuando a leitura da mesma canção, vejamos a seguinte estrofe:

Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu

Assim, embora no contexto da canção “Pedaço de mim”, que tematiza uma separação de amantes, se patenteie um relacionamento erótico, homem-mulher, a saudade que aqui é flagrada remete a uma outra situação, primordial, em que está em pauta o relacionamento mãe-filho: “[...] a saudade é o revés de um parto”, “A saudade é arrumar o quarto / Do filho que já morreu”.
Pois bem, é exatamente disso que trata “Angélica”, composta por Chico Buarque com Miltinho, em 1977 – uma canção de extrema pungência, em que a protagonista é uma mulher que vive o amor materno na ordem do trágico.1 Vamos a ela:

Quem é essa mulher
Que canta sempre esse estribilho?
Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar

[...]
Que canta sempre esse lamento?
Só queria lembrar o tormento
Que fez o meu filho suspirar


[...]

Sim, quem é essa mulher? A resposta a essa pergunta, tão reiterada no corpo da canção, encontra-se fora dela, no contexto social, na história do Brasil dos anos de chumbo, época da ditadura militar. Essa mulher é a mãe que “Só queria lembrar o tormento / Que fez o (s)eu filho suspirar”; “Só queria agasalhar (s)eu anjo / E deixar seu corpo descansar”; “Queria cantar por (s)eu menino / Que ele já não pode mais cantar”. Desgraçadamente, não há metáforas aqui: as coisas devem ser tomadas na sua literalidade. Essa mãe é Zuleika Angel Jones, a Zuzu Angel, que lutou desesperadamente – até morrer, ela também, num acidente de carro esquisito e nunca explicado – para deslindar o caso do desaparecimento e morte de seu filho Stuart Edgard Angel Jones, estudante de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, militante político, e que em 1971 foi preso, torturado e desapareceu. Angélica: um papel-limite do feminino. Paradigma da função da mulher, de denunciadora da injustiça e da repressão máxima ao instinto de vida, que é a tortura e o assassinato.
Quais suas ações, que a canção registra? “Embalar”, “agasalhar”, “deixar descansar” – verbos que indiciam os gestos da maternidade, de proteção, cuidado e preservação do que é frágil: seu filho, seu anjo, seu menino. A esses verbos acrescentam-se “lembrar” e “cantar por” – marcadamente femininos, desta feita num outro nível, articulando memória e profetismo. Pois cabe à mulher, a serviço da vida, de um lado, ativar o que não pode ser esquecido, resgatar continuamente a memória; de outro lado, denunciar a situação de opressão. Trata-se de profetismo no sentido etimológico (do grego profemi: femi, “falar”; pro, “em lugar de”, “diante de”). O profeta é aquele que fala em lugar de quem não pode falar, do fraco e indefeso; e que fala diante do poderoso, apontando-lhe os crimes. É essa a tradição do profetismo bíblico: basicamente, denúncia de uma situação de injustiça.
Todos sabemos, com Adorno, que “o conteúdo de um poema não é apenas a expressão de emoções e experiências individuais”. Pois bem, mesmo correndo o risco de infringir o “estatuto lírico” dessa composição, ocupando-me tanto com o seu referente da vida real (e parecendo reduzir o poema a um documento do seu tempo), vou me demorar um pouco, inicialmente, nessa personagem real, histórica, nessa figura extraordinária de Zuzu Angel Jones.
Chico Buarque compôs “Angélica” após o acidente que vitimou Zuzu Angel, em 1976, na sequência das reiteradas denúncias que ela fizera da morte e desaparecimento do filho, militante do “Movimento Revolucionário 8 de outubro” – MR-8. Ela estava consciente do risco que corria: advertia conhecidos e amigos de que, se algo lhe acontecesse – por exemplo, se aparecesse morta por acidente – isso teria sido obra dos assassinos de seu filho – que, preso por agentes do CISA (Centro de Informação e Segurança da Aeronáutica), no Rio de Janeiro, morreu sob bárbaras torturas (o “tormento” aludido na canção de Chico Buarque), e seu corpo nunca foi encontrado – supostamente, foi atirado em alto-mar (“mora na escuridão do mar”, diz a canção).
Há que se meditar sobre o percurso dessa mulher, estilista, figurinista, cuja atividade profissional era a moda, campo aberto à fantasia, à beleza, sensualidade e imaginação humanas: uma necessidade cultural. De uma atividade arquetipicamente feminina, de lidar com tecidos, com tecelagens, com costuras, ela se lança numa cruzada de denúncia e de enfrentamento do poder militar que lhe custará a vida. Passa da “ordem da festa” para a “ordem do trágico”: e ela, que nas suas confecções utilizava motivos de anjos (evocados no seu sobrenome), numa fase posterior passará a figurar soldados, cruzes, tanques blindados, pássaros engaiolados. Zuzu Angel passa a utilizar a moda e as suas confecções como forma de protesto, efetivando o que chamava de “primeira coleção de moda política da história”. Torna-se um símbolo de resistência à ditadura brasileira – uma espécie de antepassada das “Mães da Plaza de Mayo” (mães e avós dos presos políticos da ditadura argentina, que se reuniam em protesto silencioso pelos desaparecidos). Angélica/Zuzu Angel: uma daquelas mulheres que, fiel à sua condição visceral, se dedica a denunciar as forças da morte. Mais próxima das “fontes da vida” porque, com a gestação, é no nível do corpo que a maternidade primeiro se manifesta, cabe à mulher defender a vida, e vida por ela própria gerada. Mas, para além dos determinismos biológicos e quase instintuais, evidencia-se em “Angélica” a dimensão política do gesto feminino. E é por isso que Zuzu Angel também encontrará a morte: terá também a sua voz emudecida pela repressão.
Com a canção de Chico Buarque, Zuzu Angel torna-se Angélica: passou do individual para o social, passou de pessoa a personagem; de testemunha de seu tempo para obra de arte. Continuemos o pensamento de Adorno, acima citado: num poema, não é a emoção individual nem a experiência individual que valem, pois “estas não chegam a ser nunca artísticas, a menos que consigam uma participação no geral por meio, precisamente, da especificação que é o seu estético tomar forma”.4 Aqui se apresenta uma bela oportunidade para se tratar daquilo que Hegel chama de passagem do particular para o geral, que a poesia propicia. Não é a incontornável dor dessa mãe que é uma pessoa em carne e osso, chorando um filho que é também uma pessoa real, histórica, que faz de “Angélica” uma obra de arte, de alto nível poético. Nem o testemunho histórico nem a mensagem política. A “mensagem” teve de vir como poesia, no código da arte, como canção popular, com eficácia formal, para nos atingir e perdurar, repito, pela forma. Por sua eficácia estética, acedeu a um “universal”, em que qualquer um pode se reconhecer nessa situação de perda e se sentir interpelado. Passagem do particular ao universal: não estamos nos domínios da informação, ou da mera comunicação, mas no da arte.
Nessa passagem que é a da parte para o todo, viabiliza-se que cada um de nós tenha a possibilidade de nesse todo se reencontrar: não é mais a experiência do indivíduo que na poesia é focada, mas a do ser humano; supera-se o circunstancial atingindo o universal. Adorno: “Só entende o que diz o poema aquele que percebe na solidão do mesmo a voz da humanidade”.
Angélica” é uma canção que testemunha eficientemente a ideia da importância da forma na produção poética, e de em que medida o conteúdo atua por causa da forma. Antonio Candido, num belíssimo ensaio, “O direito à literatura”, ao tratar do poder de organização da palavra poética, que se faz por meio da forma, diz que “A mensagem é inseparável do código, mas o código é a condição que assegura o seu efeito”.6 E na sua admirável clareza, ele exemplifica com uns versos da lira de Gonzaga, e mostra que é no enquadramento de um estilo literário, usando rigorosamente versos de tantas sílabas, explorando a sonoridade, o poder sugestivo da rima, a cadência do ritmo etc. etc., combinando palavras de tal e tal jeito, que o poeta “transforma o informal ou o inexpresso em estrutura organizada, que se põe acima do tempo e serve para cada um representar mentalmente as situações [...] deste tipo”.
Assim, também, na esteira de Antonio Candido, poderíamos dizer, voltando a Chico Buarque, que esse efeito é conseguido pelo compositor usando os recursos do ritmo, e da melodia e sua plangência, explorando o efeito encantatório da palavra e o poder sugestivo da rima (que enlaça termos cujos significados também devem estar em acordo, também deverão “rimar”, como menino/destino/divino; morte/sorte; luar/matar etc.); com a sonoridade que nos atinge sensorialmente; com as figuras de linguagem aí agenciadas que impressionam a percepção; com a força das imagens e seu apelo sensível; e também com o recurso ao patrimônio de memória histórica de que participamos, e assim por diante. Tudo isso como que (nas palavras de Antonio Candido, de novo) “permite que os sentimentos passem do estado de mera emoção para o de forma construída, que assegura a generalidade e a permanência”. E também assegura a comunicabilidade, poderia ser acrescentado. Permanência ao longo do tempo, na memória dos ouvintes (e leitores); os versos da canção se instalam quase que à revelia na nossa memória e sensibilidade. “A forma permitiu que o conteúdo ganhasse mais significado, e ambos, juntos, aumentam a nossa capacidade de ver e de sentir”. E que, além do mais, vai se abeberar em águas profundas do mito. Reitero: a passagem do particular para o geral é aqui exemplar. O caso individual de uma mãe que perde um filho torturado pela ditadura militar é algo de patético, mas particular, que, assim contado, não consegue uma “eficácia estética” que eleve, nos termos do mestre Antonio Candido, “a experiência amorfa ao nível da expressão organizada”. A canção de Chico transcende o caso individual e, pela força da palavra poética, atinge o universal. Mas nesse universal cada um poderá ver, embutida, a questão, que é a questão de cada ser humano; seres sujeitos ao desgarramento, a perdas, passíveis de sermos afetivamente despedaçados.
Retomando: Angélica, como já disse, é a mulher que não se limitou a chorar a perda; ela lutou desesperadamente, agiu. Não apenas expressou o lamento, mas, como eu já disse, “cantou por” quem não podia mais cantar. E por isso morre. Mas depois que ela se cala, e também sua voz é brutalmente emudecida, quando também ela “já não pode mais cantar”, seu canto é continuado pelo canto do poeta. A poesia eterniza seu protesto. E é a arte que exerce o papel não apenas de resgate da memória, mas de resgate do sentimento – um ingrediente em geral tão recalcado na história.10
E assim caímos de volta no universo poético das letras da canção de Chico, que tão sensivelmente capta o feminino e o exprime.
No mesmo recorte de “Angélica”, dentro do que convencionei chamar “a ordem do trágico”, está “O meu guri”, composta por Chico em 1981, essa patética canção narrativa que tem como eu lírico a mãe de um marginal, favelada do morro, que desconhece a condição e a real natureza do “batente” de seu filho – aliás, que na sua ingenuidade tudo ignora, inclusive, e sobretudo, a morte do seu menino como menor infrator, que vira notícia de jornal:

Chega estampado, manchete, retrato
Com venda nos olhos, legenda e as iniciais
Eu não entendo essa gente, seu moço
Fazendo alvoroço demais
O guri no mato, acho que tá rindo
Acho que tá lindo de papo pro ar
Desde o começo, eu não disse, seu moço
Ele disse que chegava lá
Olha aí, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri

O impacto da tragicidade do fim da última estrofe é preparado pelo andamento narrativo da canção, que, com simplicidade e delicadeza, mostra a interação mãe-filho e as condições de privação em que esse menino foi criado:

Já foi nascendo com cara de fome
E eu não tinha nem nome pra lhe dar
Como fui levando, não sei lhe explicar
Fui assim levando ele a me levar

Implacavelmente, Chico Buarque desvenda o desamparo feminino e a procura de proteção que, paradoxalmente, por vezes, a maternidade mascara:

Eu consolo ele, ele me consola
Boto ele no colo pra ele me ninar

E mostra igualmente, com insistência, o engano materno relativamente às provas inegáveis da atividade do filho trombadinha:

Chega suado e veloz do batente
E traz sempre um presente pra me encabular
Tanta corrente de ouro, seu moço
Que haja pescoço pra enfiar
Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro
Chave, caderneta, terço e patuá
Um lenço e uma penca de documentos
Pra finalmente eu me identificar, olha aí
[...]
Rezo até ele chegar cá no alto
Essa onda de assaltos tá um horror

Essa mesma dolorosa ingenuidade (tecida de ignorância, de negação da realidade, penúria intelectual e cega cumplicidade materna) atingiu seu ponto extremo, como vimos, com a equivocada interpretação da foto no jornal do menino morto, “com venda nos olhos, legenda e as iniciais”. A ironia da situação, trágica, repontará, aliás, como um leitmotiv ao longo de toda a composição. “Ele disse que chegava lá”; e sobretudo o refrão, em que o orgulho materno mascara a trágica realidade : “Olha aí, é o meu Guri”.
A mãe retratada em “Angélica” e a favelada do morro: o confronto dessas duas mulheres que perderam seus filhos recorta um quadro doloroso que coloca em questão a maternidade ferida. Duas mães, dois filhos mortos, o “anjo” e o marginal – ambos assassinados: um, pelas forças mortíferas da repressão política; outro, eliminado pela força policialesca, num quadro de marginalidade e opressão socioeconômica. Uma tem consciência, sabe que perdeu o filho e, a partir dessa consciência, pode estruturar o seu luto e emprestar um sentido para a sua vida: cantar por seu menino, que ele não pode mais cantar. E a outra, analfabeta, nem pode ler a legenda das fotos do jornal e decodifica invertido os signos da morte:

O guri no mato, acho que tá rindo
Acho que tá lindo de papo pro ar

O que torna quase que mais dolorosa a situação da mãe do guri marginal é que a alienação atinge fundo, a desumanização vai longe: ela perde, mas não sabe que perdeu. Ou melhor, ainda não sabe: enquanto em “Angélica” a dor é flagrada no seu movimento, em “O meu guri” é mostrada em véspera, no estágio absolutamente anterior ao seu deflagrar. A ironia: o mais cruel dos tropos. “O meu guri” devassa o momento – álgido – antes da dor, e enfoca a questão da impossibilidade de consciência e a ignorância, fruto da alienação. Zuzu Angel transforma a saudade em ação, metamorfoseia o luto em luta. A mãe favelada ainda não sabe – o que a torna mais patética. Mas, em ambos os casos, a saudade se configurará como “o revés de um parto”; em ambos os casos, flagra-se uma mutilação: a morte violenta de um ser de quem as duas mulheres diriam que é um “pedaço de mim”.

Adélia Bezerra de Meneses, in Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos

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