O
Poeta é aquele ser a quem é dado, mais do que aos outros, o poder
de manifestar a vida dos afetos; é como se ele tivesse uma maior
possibilidade de contato com o próprio inconsciente (pessoal e
filogenético) e a poesia é um espaço em que se permite ao
inconsciente aflorar. Diz Baudelaire que o Poeta dispõe do
privilégio de ser ao mesmo tempo ele próprio e o Outro. E eu
especificaria: ou Outra. Não por acaso, em seu famoso estudo sobre a
Feminilidade, Freud acaba seu ensaio dizendo: “e agora, quem quiser
saber mais sobre a mulher, que consulte os poetas”. É assim que
nas canções de Chico Buarque emerge a fala da mulher, de uma
perspectiva, por vezes, espantosamente feminina. Penso, por exemplo,
numa canção como “Pedaço de mim”, em que surge com grande
intensidade o sentimento feminino de perda, de privação, de falta.
Trata-se de uma canção que flagra um momento de despedida de um
casal, atualizando em nós o estado de incompletude e carência, e a
consequente sensação de mutilação que as separações mobilizam:
Oh,
pedaço de mim
Oh,
metade amputada de mim
Leva
o que há de ti
Que
a saudade dói latejada
É
assim como uma fisgada
No
membro que já perdi
Evidentemente,
há aqui uma convergência de elementos: de uma perspectiva
psicanalítica, o complexo de castração: a percepção feminina de
que lhe falta um pedaço, como queria Freud; da perspectiva do mito,
há uma dupla referência. De um lado, alusão ao Andrógino
do Banquete de Platão: o ser composto, dividido por Zeus em
duas metades, que hão de procurar-se o resto da vida,
inapelavelmente... De outro lado, ainda no nível mítico, mas de
outra vertente cultural, há uma alusão à narrativa da Criação do
homem, tal como ela aparece no Gênesis, no primeiro livro da Bíblia:
a criação de Eva, por Javé, a partir de uma costela de Adão.
É
essa percepção de radical incompletude que experimentamos, a dor da
mutilação nas separações amorosas, a percepção da falha, da
falta, da carência – é a isso tudo que respondem essas duas
narrativas míticas, de culturas diferentes, grega e judaica, à raiz
da civilização ocidental. E é essa percepção que o poeta
verbaliza, é essa dor que ele nomeia. A unidade (precária, fugaz,
ilusória) que se consegue no encontro amoroso, quando rompida, leva
à sensação de uma mutilação. O Andrógino era, efetivamente, o
ser total, completo, pleno; dividido, restam pedaços incompletos,
faltantes. Com efeito, quando essa unidade se rompe, sobram metades
desraigadas, procurando sua outra “cara-metade”; há quase que
uma perda do próprio eu, no momento da separação. Vivemos na
nostalgia de uma unidade perdida.
Mas,
continuando a leitura da mesma canção, vejamos a seguinte estrofe:
Oh,
pedaço de mim
Oh,
metade arrancada de mim
Leva
o vulto teu
Que
a saudade é o revés de um parto
A
saudade é arrumar o quarto
Do
filho que já morreu
Assim,
embora no contexto da canção “Pedaço de mim”, que tematiza uma
separação de amantes, se patenteie um relacionamento erótico,
homem-mulher, a saudade que aqui é flagrada remete a uma outra
situação, primordial, em que está em pauta o relacionamento
mãe-filho: “[...] a saudade é o revés de um parto”, “A
saudade é arrumar o quarto / Do filho que já morreu”.
Pois
bem, é exatamente disso que trata “Angélica”, composta por
Chico Buarque com Miltinho, em 1977 – uma canção de extrema
pungência, em que a protagonista é uma mulher que vive o amor
materno na ordem do trágico.1 Vamos a ela:
Quem
é essa mulher
Que
canta sempre esse estribilho?
Só
queria embalar meu filho
Que
mora na escuridão do mar
[...]
Que
canta sempre esse lamento?
Só
queria lembrar o tormento
Que
fez o meu filho suspirar
[...]
Sim,
quem é essa mulher? A resposta a essa pergunta, tão reiterada no
corpo da canção, encontra-se fora dela, no contexto social, na
história do Brasil dos anos de chumbo, época da ditadura militar.
Essa mulher é a mãe que “Só queria lembrar o tormento / Que fez
o (s)eu filho suspirar”; “Só queria agasalhar (s)eu anjo / E
deixar seu corpo descansar”; “Queria cantar por (s)eu menino /
Que ele já não pode mais cantar”. Desgraçadamente, não há
metáforas aqui: as coisas devem ser tomadas na sua literalidade.
Essa mãe é Zuleika Angel Jones, a Zuzu Angel, que lutou
desesperadamente – até morrer, ela também, num acidente de carro
esquisito e nunca explicado – para deslindar o caso do
desaparecimento e morte de seu filho Stuart Edgard Angel Jones,
estudante de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
militante político, e que em 1971 foi preso, torturado e
desapareceu. Angélica: um papel-limite do feminino. Paradigma da
função da mulher, de denunciadora da injustiça e da repressão
máxima ao instinto de vida, que é a tortura e o assassinato.
Quais
suas ações, que a canção registra? “Embalar”, “agasalhar”,
“deixar descansar” – verbos que indiciam os gestos da
maternidade, de proteção, cuidado e preservação do que é frágil:
seu filho, seu anjo, seu menino. A esses verbos acrescentam-se
“lembrar” e “cantar por” – marcadamente femininos, desta
feita num outro nível, articulando memória e profetismo. Pois cabe
à mulher, a serviço da vida, de um lado, ativar o que não pode ser
esquecido, resgatar continuamente a memória; de outro lado,
denunciar a situação de opressão. Trata-se de profetismo no
sentido etimológico (do grego profemi: femi, “falar”;
pro, “em lugar de”, “diante de”). O profeta é aquele
que fala em lugar de quem não pode falar, do fraco e
indefeso; e que fala diante do poderoso, apontando-lhe os
crimes. É essa a tradição do profetismo bíblico: basicamente,
denúncia de uma situação de injustiça.
Todos
sabemos, com Adorno, que “o conteúdo de um poema não é apenas a
expressão de emoções e experiências individuais”. Pois bem,
mesmo correndo o risco de infringir o “estatuto lírico” dessa
composição, ocupando-me tanto com o seu referente da vida real (e
parecendo reduzir o poema a um documento do seu tempo), vou me
demorar um pouco, inicialmente, nessa personagem real, histórica,
nessa figura extraordinária de Zuzu Angel Jones.
Chico
Buarque compôs “Angélica” após o acidente que vitimou Zuzu
Angel, em 1976, na sequência das reiteradas denúncias que ela
fizera da morte e desaparecimento do filho, militante do “Movimento
Revolucionário 8 de outubro” – MR-8. Ela estava consciente do
risco que corria: advertia conhecidos e amigos de que, se algo lhe
acontecesse – por exemplo, se aparecesse morta por acidente –
isso teria sido obra dos assassinos de seu filho – que, preso por
agentes do CISA (Centro de Informação e Segurança da Aeronáutica),
no Rio de Janeiro, morreu sob bárbaras torturas (o “tormento”
aludido na canção de Chico Buarque), e seu corpo nunca foi
encontrado – supostamente, foi atirado em alto-mar (“mora na
escuridão do mar”, diz a canção).
Há
que se meditar sobre o percurso dessa mulher, estilista, figurinista,
cuja atividade profissional era a moda, campo aberto à
fantasia, à beleza, sensualidade e imaginação humanas: uma
necessidade cultural. De uma atividade arquetipicamente feminina, de
lidar com tecidos, com tecelagens, com costuras, ela se lança numa
cruzada de denúncia e de enfrentamento do poder militar que lhe
custará a vida. Passa da “ordem da festa” para a “ordem do
trágico”: e ela, que nas suas confecções utilizava motivos de
anjos (evocados no seu sobrenome), numa fase posterior passará a
figurar soldados, cruzes, tanques blindados, pássaros engaiolados.
Zuzu Angel passa a utilizar a moda e as suas confecções como forma
de protesto, efetivando o que chamava de “primeira coleção de
moda política da história”. Torna-se um símbolo de resistência
à ditadura brasileira – uma espécie de antepassada das “Mães
da Plaza de Mayo” (mães e avós dos presos políticos da ditadura
argentina, que se reuniam em protesto silencioso pelos
desaparecidos). Angélica/Zuzu Angel: uma daquelas mulheres que, fiel
à sua condição visceral, se dedica a denunciar as forças da
morte. Mais próxima das “fontes da vida” porque, com a gestação,
é no nível do corpo que a maternidade primeiro se manifesta, cabe à
mulher defender a vida, e vida por ela própria gerada. Mas, para
além dos determinismos biológicos e quase instintuais, evidencia-se
em “Angélica” a dimensão política do gesto feminino. E é por
isso que Zuzu Angel também encontrará a morte: terá também a sua
voz emudecida pela repressão.
Com
a canção de Chico Buarque, Zuzu Angel torna-se Angélica:
passou do individual para o social, passou de pessoa a personagem; de
testemunha de seu tempo para obra de arte. Continuemos o pensamento
de Adorno, acima citado: num poema, não é a emoção individual nem
a experiência individual que valem, pois “estas não chegam a ser
nunca artísticas, a menos que consigam uma participação no geral
por meio, precisamente, da especificação que é o seu estético
tomar forma”.4 Aqui se apresenta uma bela oportunidade para se
tratar daquilo que Hegel chama de passagem do particular para o
geral, que a poesia propicia. Não é a incontornável dor dessa mãe
que é uma pessoa em carne e osso, chorando um filho que é também
uma pessoa real, histórica, que faz de “Angélica” uma obra de
arte, de alto nível poético. Nem o testemunho histórico nem a
mensagem política. A “mensagem” teve de vir como poesia, no
código da arte, como canção popular, com eficácia formal, para
nos atingir e perdurar, repito, pela forma. Por sua eficácia
estética, acedeu a um “universal”, em que qualquer um pode se
reconhecer nessa situação de perda e se sentir interpelado.
Passagem do particular ao universal: não estamos nos domínios da
informação, ou da mera comunicação, mas no da arte.
Nessa
passagem que é a da parte para o todo, viabiliza-se que cada um de
nós tenha a possibilidade de nesse todo se reencontrar: não é mais
a experiência do indivíduo que na poesia é focada, mas a do ser
humano; supera-se o circunstancial atingindo o universal. Adorno: “Só
entende o que diz o poema aquele que percebe na solidão do mesmo a
voz da humanidade”.
“Angélica”
é uma canção que testemunha eficientemente a ideia da importância
da forma na produção poética, e de em que medida o conteúdo atua
por causa da forma. Antonio Candido, num belíssimo ensaio, “O
direito à literatura”, ao tratar do poder de organização da
palavra poética, que se faz por meio da forma, diz que “A mensagem
é inseparável do código, mas o código é a condição que
assegura o seu efeito”.6 E na sua admirável clareza, ele
exemplifica com uns versos da lira de Gonzaga, e mostra que é no
enquadramento de um estilo literário, usando rigorosamente versos de
tantas sílabas, explorando a sonoridade, o poder sugestivo da rima,
a cadência do ritmo etc. etc., combinando palavras de tal e tal
jeito, que o poeta “transforma o informal ou o inexpresso em
estrutura organizada, que se põe acima do tempo e serve para cada um
representar mentalmente as situações [...] deste tipo”.
Assim,
também, na esteira de Antonio Candido, poderíamos dizer, voltando a
Chico Buarque, que esse efeito é conseguido pelo compositor usando
os recursos do ritmo, e da melodia e sua plangência, explorando o
efeito encantatório da palavra e o poder sugestivo da rima (que
enlaça termos cujos significados também devem estar em acordo,
também deverão “rimar”, como menino/destino/divino;
morte/sorte; luar/matar etc.); com a
sonoridade que nos atinge sensorialmente; com as figuras de linguagem
aí agenciadas que impressionam a percepção; com a força das
imagens e seu apelo sensível; e também com o recurso ao patrimônio
de memória histórica de que participamos, e assim por diante. Tudo
isso como que (nas palavras de Antonio Candido, de novo) “permite
que os sentimentos passem do estado de mera emoção para o de forma
construída, que assegura a generalidade e a permanência”. E
também assegura a comunicabilidade, poderia ser acrescentado.
Permanência ao longo do tempo, na memória dos ouvintes (e
leitores); os versos da canção se instalam quase que à revelia na
nossa memória e sensibilidade. “A forma permitiu que o conteúdo
ganhasse mais significado, e ambos, juntos, aumentam a nossa
capacidade de ver e de sentir”. E que, além do mais, vai se
abeberar em águas profundas do mito. Reitero: a passagem do
particular para o geral é aqui exemplar. O caso individual de uma
mãe que perde um filho torturado pela ditadura militar é algo de
patético, mas particular, que, assim contado, não consegue uma
“eficácia estética” que eleve, nos termos do mestre Antonio
Candido, “a experiência amorfa ao nível da expressão
organizada”. A canção de Chico transcende o caso individual e,
pela força da palavra poética, atinge o universal. Mas nesse
universal cada um poderá ver, embutida, a questão, que é a questão
de cada ser humano; seres sujeitos ao desgarramento, a perdas,
passíveis de sermos afetivamente despedaçados.
Retomando:
Angélica, como já disse, é a mulher que não se limitou a chorar a
perda; ela lutou desesperadamente, agiu. Não apenas expressou o
lamento, mas, como eu já disse, “cantou por” quem não podia
mais cantar. E por isso morre. Mas depois que ela se cala, e também
sua voz é brutalmente emudecida, quando também ela “já não pode
mais cantar”, seu canto é continuado pelo canto do poeta. A poesia
eterniza seu protesto. E é a arte que exerce o papel não apenas de
resgate da memória, mas de resgate do sentimento – um ingrediente
em geral tão recalcado na história.10
E
assim caímos de volta no universo poético das letras da canção de
Chico, que tão sensivelmente capta o feminino e o exprime.
No
mesmo recorte de “Angélica”, dentro do que convencionei chamar
“a ordem do trágico”, está “O meu guri”, composta por Chico
em 1981, essa patética canção narrativa que tem como eu lírico a
mãe de um marginal, favelada do morro, que desconhece a condição e
a real natureza do “batente” de seu filho – aliás, que na sua
ingenuidade tudo ignora, inclusive, e sobretudo, a morte do seu
menino como menor infrator, que vira notícia de jornal:
Chega
estampado, manchete, retrato
Com
venda nos olhos, legenda e as iniciais
Eu
não entendo essa gente, seu moço
Fazendo
alvoroço demais
O
guri no mato, acho que tá rindo
Acho
que tá lindo de papo pro ar
Desde
o começo, eu não disse, seu moço
Ele
disse que chegava lá
Olha
aí, olha aí
Olha
aí, ai o meu guri, olha aí
Olha
aí, é o meu guri
O
impacto da tragicidade do fim da última estrofe é preparado pelo
andamento narrativo da canção, que, com simplicidade e delicadeza,
mostra a interação mãe-filho e as condições de privação em que
esse menino foi criado:
Já
foi nascendo com cara de fome
E
eu não tinha nem nome pra lhe dar
Como
fui levando, não sei lhe explicar
Fui
assim levando ele a me levar
Implacavelmente,
Chico Buarque desvenda o desamparo feminino e a procura de proteção
que, paradoxalmente, por vezes, a maternidade mascara:
Eu
consolo ele, ele me consola
Boto
ele no colo pra ele me ninar
E
mostra igualmente, com insistência, o engano materno relativamente
às provas inegáveis da atividade do filho trombadinha:
Chega
suado e veloz do batente
E
traz sempre um presente pra me encabular
Tanta
corrente de ouro, seu moço
Que
haja pescoço pra enfiar
Me
trouxe uma bolsa já com tudo dentro
Chave,
caderneta, terço e patuá
Um
lenço e uma penca de documentos
Pra
finalmente eu me identificar, olha aí
[...]
Rezo
até ele chegar cá no alto
Essa
onda de assaltos tá um horror
Essa
mesma dolorosa ingenuidade (tecida de ignorância, de negação da
realidade, penúria intelectual e cega cumplicidade materna) atingiu
seu ponto extremo, como vimos, com a equivocada interpretação da
foto no jornal do menino morto, “com venda nos olhos, legenda e as
iniciais”. A ironia da situação, trágica, repontará, aliás,
como um leitmotiv ao longo de toda a composição. “Ele
disse que chegava lá”; e sobretudo o refrão, em que o orgulho
materno mascara a trágica realidade : “Olha aí, é o meu Guri”.
A
mãe retratada em “Angélica” e a favelada do morro: o confronto
dessas duas mulheres que perderam seus filhos recorta um quadro
doloroso que coloca em questão a maternidade ferida. Duas mães,
dois filhos mortos, o “anjo” e o marginal – ambos assassinados:
um, pelas forças mortíferas da repressão política; outro,
eliminado pela força policialesca, num quadro de marginalidade e
opressão socioeconômica. Uma tem consciência, sabe que perdeu o
filho e, a partir dessa consciência, pode estruturar o seu luto e
emprestar um sentido para a sua vida: cantar por seu menino, que ele
não pode mais cantar. E a outra, analfabeta, nem pode ler a legenda
das fotos do jornal e decodifica invertido os signos da morte:
O
guri no mato, acho que tá rindo
Acho
que tá lindo de papo pro ar
O
que torna quase que mais dolorosa a situação da mãe do guri
marginal é que a alienação atinge fundo, a desumanização vai
longe: ela perde, mas não sabe que perdeu. Ou melhor, ainda
não sabe: enquanto em “Angélica” a dor é flagrada no seu
movimento, em “O meu guri” é mostrada em véspera, no estágio
absolutamente anterior ao seu deflagrar. A ironia: o mais cruel dos
tropos. “O meu guri” devassa o momento – álgido – antes
da dor, e enfoca a questão da impossibilidade de consciência e a
ignorância, fruto da alienação. Zuzu Angel transforma a saudade em
ação, metamorfoseia o luto em luta. A mãe favelada ainda não sabe
– o que a torna mais patética. Mas, em ambos os casos, a saudade
se configurará como “o revés de um parto”; em ambos os casos,
flagra-se uma mutilação: a morte violenta de um ser de quem as duas
mulheres diriam que é um “pedaço de mim”.
Adélia Bezerra de Meneses, in Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos
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