“Et
sais que je suis un homme maintenant car je suis la plus dangereuse
des betes.”
Erri
De Lucca, Trois chevaux
A
presente comunicação tem como objetivo principal colocar em
paralelo Life of Pi — a novel (2001), do escritor canadense
Yann Martel (1963-), e Max e os felinos (1981), do escritor
gaúcho Moacyr Scliar (1937-2011). Não pretendemos retomar a
polêmica instaurada pelas imprensas canadense e brasileira, no final
de 2002, relativa à acusação de plágio pelo autor brasileiro
contra o canadense. O que nos interessará destacar aqui é a análise
das convergências existentes entre as duas obras e as figuras da
americanidade que elas agenciam. As temáticas da travessia do
oceano, do naufrágio e dos sobreviventes adolescentes que chegam ao
Novo Mundo reeditam os mitos de renovação constitutivos da
americanidade. A travessia mimetiza a viagem inaugural de Cristóvão
Colombo, os escaleres, que permitem aos adolescentes chegar
respectivamente, ao Canadá e ao Brasil, simbolizam a arca de Noé,
mito do recomeço e da restauração cíclica por excelência.
Pretendemos destacar as metamorfoses das personagens durante a viagem
e suas relações com os felinos (um tigre e um jaguar) que
sobrevivem com eles e que simbolizam ao mesmo tempo as forças do
subconsciente e a memória do passado que os imigrantes trazem
consigo para a América.
Antes
da travessia
No
livro de Scliar, Max e os felinos, o jovem Max, sendo filho de
um comerciante de peles, viveu em meio a todas as espécies de peles
de animais: raposas, visons, castores, etc. A loja, “Ao tigre de
Bengala”, era decorada com um tigre empalhado que seu pai havia
caçado na índia e que havia mandado empalhar. Desde a infância,
Max temia este animal a tal ponto que chegava a ter pesadelos, embora
se tratasse de um simples elemento de decoração. Ele ficou
traumatizado pela ordem do pai que mandou-o ir, à noite e sozinho,
buscar um jornal que havia esquecido na loja. O menino teve que
atravessar o território do pai – a loja de peles –, enfrentar o
mais poderoso dos carnívoros, o tigre de Bengala, para obedecer à
sua ordem. Max ficou tão nervoso que chegou a ferir-se na cabeça,
regressando aos soluços à casa, após ter vivido uma traumática
experiência que nunca mais esqueceria.
Alguns
anos mais tarde, estando na universidade quando o regime nazista
emerge na Alemanha, Max, que havia participado de manifestações
antinazistas, tem que partir de Berlim às pressas, no primeiro
navio, para não ser preso. O navio naufragará e o jovem conseguirá
encontrar um lugar no pequeno escaler que já estava ocupado por um
jaguar, o mais terrível dos carnívoros, originário da América
Latina. Se Max irá associar para o resto de sua vida a imagem do
tigre empalhado sobre o armário ao autoritarismo do pai, o jaguar, a
quem ele deverá alimentar durante toda a travessia para não ser
devorado, permanecerá como uma reminiscência do autoritarismo
político, representado pelo regime nazista que o obrigou a deixar
sua família e seu país natal.
Em
Life of Pi – a novel, Piscine Molitor Patel
(conhecido pelo apelido Pi) terá, em Pondichéry, antiga capital de
Cantão, na índia francesa, uma experiência completamente diferente
com animais, tendo vivido uma infância feliz em companhia de sua
família, que era proprietária de um jardim zoológico. Passou sua
infância cercado de animais selvagens (vivos e não empalhados) de
toda espécie, os quais são minuciosamente descritos pelo autor, que
revela profundos conhecimentos de zoologia. O menino herdará do pai
a arte de apaziguar animais, sentindo-se muito à vontade em
alimentá-los e em tratá-los, desde que era bem pequeno. Aprende com
o pai que, em um zoológico, o animal mais perigoso é o homem... Um
detalhe importante a ser destacado é que Piscine desenvolve, para
além de seu interesse pela zoologia, uma grande curiosidade pelo
estudo das religiões, querendo tornar-se ao mesmo tempo cristão,
muçulmano e hindu, o que simbolicamente representa uma espécie de
preparação e ou de presságio do multiculturalismo do Canadá, país
para o qual seu pai decidiu imigrar.
É
preciso também notar a habilidade de Yann Martel nas passagens dos
poderes narrativos: o autor cede seu lugar de narrador a Piscine
Patel, adulto que, vivendo em Toronto, conta a história de Pi, de
sua fantástica travessia do oceano Pacífico, do naufrágio do barco
no qual viajava em companhia de sua família e, finalmente, de sua
permanência durante 227 dias em um barco salva-vidas com um tigre de
Bengala.
“We'll
sail like Columbus!” (Life of Pi, p. 97), ou – Vamos
navegar como Colombo, disse o pai, em direção a um novo país, a
uma vida nova, uma nova utopia. A venda do zoológico foi
indispensável para que a família obtivesse os meios financeiros
para recomeçar a vida na América. O Tsimtsum, contendo parte
dos animais vendidos a zoológicos dos Estados Unidos, além da
família Patel, parte do porto de Madras, na índia, em 1977.
A
travessia
Enquanto
Max atravessa o Atlântico para chegar ao Brasil, Pi faz a travessia
do Pacífico para chegar às costas do México e depois à sua
destinação final, o Canadá. As embarcações nas quais viajam
naufragam, com o desaparecimento de todos os passageiros. Os únicos
sobreviventes são os heróis Max (Scliar) e Pi (Martel), que
conseguem salvar-se graças a precários botes salva-vidas cujo
espaço exíguo será compartilhado com animais selvagens que
viajavam nos porões dos navios e que também conseguiram sobreviver
ao desastre.
Esse
episódio nos remete ao texto bíblico da Arca de Noé (Gênesis,
6,17). Depois do dilúvio, Noé e sua família e um exemplar de cada
espécie animal e vegetal permanecerão quarenta dias e quarenta
noites na arca, à espera da descida das águas para recomeçar uma
nova vida na terra. Será portanto somente após a passagem
iniciática no interior da arca que eles estarão prontos para dar
origem a uma nova forma de vida no planeta.
Os
dois romances em questão, sendo textos emblemáticos da imigração
para as Américas, reescrevem curiosamente essa famosa passagem do
Gênesis, para representar simbolicamente o fato de que os imigrantes
também vivem um ritual de iniciação, representado aqui pelo
imaginário da travessia e do naufrágio, com a perda de seus bens e
de suas referências, para chegar nus – como novas figurações de
Adão – prestes a (re)começar um outro ciclo existencial.
É
interessante notar nos dois textos a importância que os autores
atribuem ao “trans” (prefixo inscrito em travessia), que remete
à passagem ao outro lado e à saída de si mesmo. O oceano é o
espaço intermediário, o entre-dois; os personagens aí permanecerão
à deriva em um espaço-tempo suspenso onde enfrentarão seus
próprios demônios, que são ficcionalizados por animais ferozes
como o tigre, a zebra (de perna quebrada), o orangotango e a hiena,
no caso de Life of Pi, e o jaguar, no caso de Max e os
felinos. Ficando à deriva, os personagens permanecerão
afastados de sua rota, perderão de vista as margens e serão levados
ao sabor dos ventos e das correntes marítimas.
A
passagem de um continente a outro, bem como o tempo em que ficaram à
deriva constituem um espaço intersticial que não é mais o país
natal nem o país de chegada. Tempo de fazer o luto da origem,
segundo a bela expressão de Régine Robin, a experiência do
estranhamento e de reconfigurar as utopias americanas. Durante a
travessia, será preciso dar provas de coragem e de esperteza para
assegurar a sobrevivência nesse entre-lugar instável e perigoso. Na
esteira de Cristóvão Colombo, os personagens fazem a experiência
da passagem do conhecido ao desconhecido, da civilização à
barbárie e, assim como o conquistador de 1492, deverão enfrentar os
monstros e os seres fantásticos que, segundo o imaginário da época
dos descobrimentos, povoavam o "mar tenebroso". O principal
desafio que se apresenta aos personagens é o de ultrapassar as
situações-limite a que são expostos e de se manterem vivos apesar
das ameaças constantes das tempestades, das ondas e dos animais
famintos a bordo. Ambos saem vencedores da experiência da perda, da
solidão, da incerteza e do iminente risco de vida representado pela
proximidade dos animais selvagens.
As
técnicas da narrativa fantástica, tomadas de empréstimo do diário
de bordo de Colombo, matriz textual incontestável desse procedimento
estético, convidam os leitores a compartilhar a experiência
insólita dos migrantes que, deixando para trás sua herança
cultural, devem se confrontar com os fantasmas e os demônios de seu
subconsciente antes de começar uma vida nova no país de adoção.
Realizando ao mesmo tempo a ruptura (com o passado) e a ligação
(com o porvir), os náufragos vivem no limite de sua resistência
física e mental. Viver na fronteira de seus próprios limites produz
efeitos curiosos: as ações dos animais e das feras se confundem; o
real e a ficção são dificilmente distinguíveis. A necessidade de
permanecer vivos mobiliza as forças dos náufragos, cuja única
motivação é a sobrevivência.
A
sobrevivência física é metáfora dos esforços que os migrantes
devem fazer em sua nova vida para não deixar morrer sua memória e
sua herança cultural. E interessante mencionar, aqui, a reflexão de
Margaret Atwood relativa aos elementos que simbolizam e sintetizam
certas nações. Segundo a autora canadense, as fronteiras simbolizam
as Américas, enquanto a ilha seria a palavra-síntese para a
Inglaterra, e sobrevivência, o verdadeiro símbolo centralizador
para o Canadá (Atwood, 1987, p. 32). O tema da sobrevivência,
presente durante toda a travessia do oceano, prefigura o esforço de
sobreviver material e culturalmente em um país estrangeiro. Como
destaca Atwood, “a sobrevivência poderia ser o vestígio de uma
ordem antiga que se arranjaria para durar como faria o réptil de uma
espécie primitiva” (p. 33).
A
chegada ao Novo Mundo
No
livro de Scliar, um lugar importante é reservado à chegada ao
Brasil e à adaptação de Max ao novo contexto de Porto Alegre.
Observa-se as metamorfoses do personagem que, no momento de deixar
seu país, era ainda um adolescente e que, desde a chegada ao Brasil,
revela um comportamento de adulto, pronto a tomar as decisões de
instalação, busca de emprego etc. Apesar de suas esperanças em
relação à nova terra, o herói começa a sentir-se perseguido:
pensa que seus vizinhos o espionam e que uma onça o espreita, no
bosque nas cercanias do sítio em que foi residir. Mesmo sabendo que
as matas sul-rio-grandenses não são o habitat prefencial de
onças-pintadas e que o vizinho alegue não possuir qualquer
vinculação com partidos nazistas, ele não deixará de sentir-se
observado.
Lembremos
aqui as teses de Gérard Bouchard sobre as Américas como lugar e
objeto de novas utopias. Ele constata o fracasso das grandes utopias
americanas tais como o melting pot, a democracia racial
brasileira entre outras, e reconhece um certo declínio (ou fadiga)
“da americanidade como espaço de sonho e de substituição”
(Bouchard, 2000, p. 182). O destino de Max prende-se de alguma forma
a essa visão pessimista das Américas como espaço destinado ao
fracasso e à morte das utopias, pois o personagem não chega a
libertar-se dos fantasmas que o habitavam em Berlim. Somente muitos
anos mais tarde, após ter tentado matar um suposto ex-membro do
partido nazista e de ter purgado alguns anos de prisão, ele se
sentirá verdadeira e finalmente “em paz com seus felinos”
(Scliar, p. 116).
Se,
na obra de Scliar, todo um capítulo é consagrado à chegada ao
Brasil assim como às dificuldades do personagem em encontrar o seu
lugar na sociedade de acolhida, na obra de Martel, o livro acaba no
momento em que o náufrago chega à terra firme, se recupera em uma
enfermaria e passa a narrar de dois diferentes modos suas
inacreditáveis peripécias. Entretanto o leitor conhece desde o
início que a adaptação, em Toronto, de Piscine Molitor Patel, ou
Pi, foi muito bem sucedida, pois é ele próprio o (ou um dos)
narrador(es) dessa insólita história. Sabe-se, por exemplo, que ele
conseguiu concluir seus estudos em dois diferentes campos: em
zoologia e em história das religiões, e que em sua casa
encontram-se uma estátua de Ganesh, o que remete ao hinduísmo,
religião praticada por sua família na Índia, uma Virgem de
Guadalupe, o que remete à religião católica, e uma foto de Kaaba,
figura sagrada do Islamismo. Ele está pois plenamente imerso no
transcultural, e esta abertura às diferentes maneiras de relação
com o mundo faz parte das estratégias de sobrevivência do
personagem. Nesta narrativa cheia de humor e de clin d'oeils a
várias narrativas orais extraídas de diferentes culturas, a
mensagem subjacente remete incessantemente à tese segundo a qual se
pode encontrar a(s) verdade(s) trilhando diferentes caminhos.
Em
Scliar, as passagens transculturais são menos evidentes na medida em
que Max leva um certo tempo para resolver seus conflitos
existenciais; em Martel, as passagens transculturais são claramente
apresentadas: o saber empírico sobre animais, que Pi trouxe de seu
país natal, e que foi reatualizado durante a travessia, se
transforma em saber científico com o recebimento do diploma
universitário. Os diálogos iniciados na Índia sobre as
diferentes propostas trazidas pelos diversos credos religiosos
transformam-se em saber formal assegurado pelos meios acadêmicos
frequentados no Canadá. O que se observa nos fenômenos da
trans-cultura é que os distintos aportes culturais que entram em
contato passam por processos de transmutação, dando origem a algo
novo que permite ao imigrante tornar-se outro sem deixar de ser ele
mesmo.
As
figuras da americanidade
Os
dois romances exploram as figuras e os mitos da americanidade na
medida em que se constroem a partir de viagens, de passagens, de
travessias e de migrações e, se projetam algumas distopias,
prefiguram sobretudo utopias de recomeço e de renovação. Os dois
personagens refazem a experiência de Cristóvão Colombo no que diz
respeito à pulsão da viagem e da ultrapassagem do temor dos
monstros que, segundo relatos orais, povoavam os oceanos e as terras
de além-mar. Os animais selvagens são o outro lado dos personagens,
e os diferentes relatos apresentados mostram também que em
situação-limite – como a da luta pela sobrevivência – os
homens podem comportar-se como as feras.
Esta
interface homem/fera encontra-se encriptada nas duas obras: em Max
e os felinos, lê-se em epígrafe uma citação de Francisco
Macias Ngueme, ditador da Guiné Equatorial: “Medo, eu? O tigre não
tem medo de ninguém... O tigre invisível. A minha alma”. Em Life
of Pi – a novel, o autor apela para a figura da personificação:
o narrador fabrica uma segunda versão de sua narrativa,
substituindo os animais por seres humanos: a hiena passa a ser o
cozinheiro do navio naufragado, a zebra de perna quebrada, um dos
marinheiros, o orangotango, a mãe de Pi, e o tigre é ora o próprio
menino ora um ser humano cujo nome é Richard Park, com quem Pi
dialoga durante a longa deriva pelo Pacífico.
Duas
narrativas, isto é, duas possibilidades de representar os fatos são
fornecidas aos primeiros que vêm socorrer os náufragos. No caso da
obra de Yann Martel, os funcionários da companhia de seguros que vêm
conhecer as circunstâncias do naufrágio do Tsimtsum, bem
como as condições quase miraculosas da sobrevida de Pi,
defrontam-se com dois diferentes relatos. Os entrevistadores que
chegam à enfermaria Benito Juarez, em Tomatlán, no México, têm
dificuldades para crer no relato, que consideram fantástico, segundo
o qual o jovem Pi conseguiu sobreviver durante 227 dias em um
escaler, em companhia de quatro animais selvagens que se
entredevoram, sobrando no final apenas o tigre e o jovem. Diante da
incredulidade dos entrevistadores, Pi apresenta-lhes sua segunda
versão, segundo a qual ele conseguiu salvar-se em um barco
salva-vidas com sua mãe, um marinheiro e o cozinheiro do Tsimtsum,
os quais acabam por se entredevorar, devido ao longo tempo de
permanência à deriva. Os funcionários acham essa segunda versão
ainda mais terrível, pois se recusam a aceitar a prática do
canibalismo, e consignam em seus relatórios a primeira versão.
Em
Max e os felinos, o jovem fala do jaguar que lhe fez companhia
após o naufrágio do Germania aos marinheiros de um navio que
veio para resgatá-lo. Os marinheiros atribuem a história do jaguar
à imaginação de Max, perturbado com a longa exposição ao sol, à
solidão e à sua extrema fatiga.
Esse
jogo de narrativas duplas assinala a impossibilidade, no espaço das
Américas, da univocidade, das verdades e das certezas
indiscutíveis. Os dois autores vislumbram o espaço americano como
espaço de negociação do identitário e nos legam uma lição de
fundamental importância: não existem fatos, só existem
narrativas... Trata-se, de fato, de uma clara alusão à história
das Américas, onde cada acontecimento tem ao menos duas versões: a
dos colonizados e a dos colonizadores, a dos vencidos e a dos
vencedores.
Como
temos tentado mostrar, os dois livros se constroem a partir de um
mesmo tema – um menino e uma fera tentando sobreviver em um barco à
deriva –, a mais velha das idéias no mundo, segundo o dizer de
Sarah Schmidt (National Post, 2002). Segundo a autora, esse núcleo
narrativo emerge nos romances de Tarzan, de Edgar Rice Burroughs, e
em outras tantas narrativas cuja enumeração seria fastidiosa, todas
remontando ao mito bíblico da Arca de Noé. Os dois romances
guardam, contudo, grande originalidade se forem lidos na perspectiva
das transferências culturais, tentando-se interpretá-los como
narrativas emblemáticas da imigração, e a seus personagens, como
personificações do esforço de sobrevivência. A travessia do
oceano se constitui no espaço intermediário que não é nem o novo
horizonte, nem o abandono do que foi. A longa deriva sobre as ondas
constitui o entre-lugar – incontornável para os imigrantes –
onde “presente e passado, interior e exterior, inclusão e exclusão
se entrecruzam para produzir figuras complexas da diversidade e do
identitário”.
É
nesse entre-lugar aquático, instável e imprevisível, que se
encenam as lutas dos heróis com seus próprios demônios, com o
outro de si-mesmos. A travessia, como rito de passagem, revela-se
indispensável antes da chegada a um mundo que se construiu até
então sem a sua colaboração.
Os
dois personagens, depois de terem feito uma viagem abracadabrante,
chegam ao que está por começar: uma nova vida na América. Parece
que os escritores brasileiro e canadense reescrevem o poema –
síntese da americanidade, que abre a antologia Lhomme rapaillé/O
homem restolhado, do poeta quebequense Gaston Miron. Eles também
são de algum modo homens restolhados, pois vão – no contexto do
Novo Mundo – recolher materiais já utilizados para lhes dar novas
utilizações, assegurando assim a sobrevivência de vestígios e de
fragmentos de suas memórias que salvaram-se do naufrágio. Miron
empregou a expressão rapaillé, traduzida para o português
por Flávio Aguiar por restolhado, “como símbolo da reconstrução
do humano sob os escombros da colonização”, em um momento marcado
por uma profunda crise das utopias e na esperança de poder
redespertá-las.
Moacyr
Scliar, no sul, e Yann Martel, no norte, ambos escritores americanos,
sentiram necessidade de relançar o tema das utopias de renovação a
partir do ponto de vista dos imigrantes, imbuídos certamente da
mesma generosidade de despertar o sonho e a fantasia, essenciais aos
humanos e função primordial da literatura. O apelo ao fantástico,
que esconde um certo número de enigmas e de mistérios, foi a
estratégia escolhida por ambos. Eles deixam a seus leitores a tarefa
de penetrar no interior das narrativas para decodificar as opacidades
como, por exemplo, o nome que o personagem de Yann Martel atribui a
si mesmo, Pi, diminutivo de Piscine, mas também décima sexta letra
do alfabeto grego, que remete a péripheria (periferia) e
designa a circunferência do círculo. Número estranho designado por
uma letra, carregado de enigmas que desafiam a inteligência da
humanidade desde a mais remota antiguidade.
Zilá Bernd, in Prefácio de Max e os Felinos
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