Encheram
a terra de fronteiras, carregaram o céu de bandeiras.
Mas
só há duas nações – a dos vivos e a dos mortos.
Juca Sabão
A
morte é como o umbigo: o quanto nela existe é a sua cicatriz, a
lembrança de uma anterior existência. A bordo do barco que me leva
à Ilha de Luar-do-Chão não é senão a morte que me vai ditando
suas ordens. Por motivo de falecimento, abandono a cidade e faço a
viagem: vou ao enterro de meu Avô Dito Mariano.
Cruzo
o rio, é já quase noite. Vejo esse poente como o desbotar do último
sol. A voz antiga do Avô parece dizer-me: depois deste poente não
haverá mais dia. E o gesto gasto de Mariano aponta o horizonte: ali
onde se afunda o astro é o mpela djambo, o umbigo celeste. A
cicatriz tão longe de uma ferida tão dentro: a ausente permanência
de quem morreu. No Avô Mariano confirmo: morto amado nunca mais pára
de morrer.
Meu
Tio Abstinência está encostado na amurada, fato completo, escuro
envergando escuridão. A gravata cinza semelha uma corda ao
despendurão num poço que é o seu peito escavado. Rasando o convés
do barco, as andorinhas parecem entregar-lhe secretos recados.
Abstinência
é o mais velho dos tios. Daí a incumbência: ele é que tem que
anunciar a morte de seu pai, Dito Mariano. Foi isso que fez ao
invadir o meu quarto de estudante na residência universitária. Sua
aparição me alertou: há anos que nada fazia Tio Abstinência sair
de casa. Que fazia ali, após anos de reclusão? Suas palavras foram
mais magras que ele, a estrita e não necessária notícia: o Avô
estava morrendo. Eu que viesse, era o pedido exarado pelo velho
Mariano. Abstinência me instruiu: rápido, fizesse a mala e
embarcássemos no próximo barco para a nossa Ilha. – E meu pai? –
perguntei enquanto escolhia roupas. – Está na Ilha, esperando por
nós. Depois, o Tio nada mais falou, afivelado em si.
Nem
se esboçou para me ajudar a empacotar os miúdos haveres.
Fomos,
pela cidade, ele um pouco à frente, com seu andar empinado mas
tropeçado de salamaleques. Sempre foi assim: ao mínimo pretexto,
Abstinência se dobrava, fazendo vénia no torto e no direito. Não é
respeito, não, explicava ele. É que em todo o lado, mesmo no
invisível, há uma porta. Longe ou perto, não somos donos mas
simples convidados. A vida, por respeito, requer constante licença.
Os
outros familiares eram muito diferentes. Meu pai, por exemplo, tinha
a alma à flor da pele. Já fora guerrilheiro, revolucionário,
oposto à injustiça colonial. Mesmo internado na Ilha, nos meandros
do rio, Madzimi, meu velho Fulano Malta transpirava o coração em
cada gesto. Já meu Tio Ultímio, o mais novo dos três, muito se
dava a exibir, alteado e sonoro, pelas ruas da capital. Não
frequentara mais a sua ilha natal, ocupado entre os poderes e seus
corredores. Nenhum dos irmãos se dava, cada um em individual
conformidade.
O
Tio Abstinêncio, este que cruza o rio comigo, sempre assim se
apresentou: magro e engomado, ocupado a trançar lembranças. Um
certo dia, se exilou dentro de casa. Acreditaram ser arremesso de
humores, coisa passatemporária. Mas era definitivo. Com o tempo
acabaram estranhando a ausência. Visitaram-no. Sacudiram-no, ele
nada.
– Não
quero sair nunca mais.
– Tem
medo de quê?
– O
mundo já não tem mais beleza.
Como
aqueles amantes que, depois de zanga, nunca mais se querem ver. Assim
era o amuo do nosso tio. Que ele tinha tido caso com o mundo. E agora
doía-lhe de mais a decadência desse rosto de quem amara. Os outros
riram. O parente sofria de tardias poesias?
– Você,
Abstinêncio, é uma pessoa muito impessoal. Tem medo da vida ou do
viver?
– Me
deixem, irmãos: esta é a minha natureza.
– Ou,
se calhar, o Mano Abstinêncio não recebeu foi suficiente natureza.
E
deixaram-no, só e único. Afinal, era escolha dele. Abstinêncio
Mariano despendera a vida inteira na sombra da repartição. A
penumbra adentrou-se nele como um bolor e acabou ficando saudoso de
um tempo nunca havido, viúvo mesmo sem ter nunca casado. Houve
noiva, dizia-se. Mas ela falecera em véspera. Nessa anteviuvez,
Abstinêncio passou a envergar uma tarjeta de pano preto, guarnição
de luto sobre a lapela. Todavia, do que se conta, sucedia o seguinte:
a pequena tarja crescia durante as noites. Manhã seguinte, o paninho
estava acrescido de tamanho, a pontos de toalha. E, no subsequente,
um lençol já pendia do sombrio casaco. Parecia que a tristeza
adubava os pesarosos panos. Na família houve quem logo encontrasse a
adequada conveniência: que ali estava uma manufactura têxtil,
motivo não de perda chorosa, mas de ganhos chorudos. Diz-se, sem
mais que o dizer.
Não
sou apenas eu e o Tio Abstinêncio que atravessamos o rio para ir a
Luar-do-Chão: toda a família se estava dirigindo para os funerais.
A Ilha era a nossa origem, o lugar primeiro do nosso clã, os
Malilanes. Ou, no aportuguesamento: os Marianos.
Nenhum
país é tão pequeno como o nosso. Nele só existem dois lugares: a
cidade e a Ilha. A separá-los, apenas um rio. Aquelas águas, porém,
afastam mais que a sua própria distância. Entre um e outro lado
reside um infinito. São duas nações, mais longínquas que
planetas. Somos um povo, sim, mas de duas gentes, duas almas.
– Tio?
– Sim?
– O
Avô está morrendo ou já morreu?
– É
a mesma coisa.
A
vontade é de chorar. Mas não tenho idade nem ombro onde escoar
tristezas. Entro na cabina do barco e sozinho-me num canto. Não
importa o rebuliço nem os ruídos coloridos das vendedeiras de
peixe. Minha alma balouça, mais murcha que a gravata do Tio.
Houvesse agora uma tempestade e o rio se reviravirasse, em ondas tão
altas que o barco não pudesse nunca atracar, e eu seria dispensado
das cerimónias. Nem a morte de meu Avô aconteceria tanto. Quem sabe
mesmo o Avô não chegasse nunca a ser enterrado? Ficaria sobrado em
poeira, nuveado, sem aparência. Sobraria a terra escavada com um
vazio sempre vago, na inútil espera do adiado cadáver. Mas não, a
morte, essa viagem sem viajante, ali estava a dar-nos destino. E eu,
seguindo o rio, eu mais minha intransitiva lágrima.
O
calor me faz retirar da cabina. Vou para o convé_ onde se misturam
gentes, cores e cheiros. Sento-me na ré, numa escada já sem uso. O
rio está sujo, peneirado pelos sedimentos. É o tempo das chuvas,
das águas vermelhas. Como um sangue, um ciclo mênstruo vai
manchando o estuário.
– Está
livre, esse chãozito? Uma velha gorda pede licença para se sentar.
Leva
um tempo a ajeitar-se no chão. Fica em silêncio, alisando as
pernas. As roupas são velhas, de antigo e encardido uso. Contrasta
nela um lenço novo, com as colorações todas do mundo. Até a idade
do rosto lhe parece minguar, tão de cores é o lenço.
– Está-me
a olhar o lenço? Este lenço fui dada na cidade. Agora é meu.
Ajeita
uma vaidade na cabeça, saracoteando os ombros. Depois, fica
estudando o Tio Abstinência. – Esse aí é seu parente? – É meu
tio.
A
velha me contempla, então, com cuidado. Seus olhos se estreitam
chinesamente. Em seguida, volta a olhar Abstinência. Compara-nos,
sem dúvida. Depois ela me estende o braço, abrindo um sorriso.
– Me
chamo Miserinha. É nome que foi dado, mas não da nascença. Como
esse lenço que recebi.
De
novo, a sua atenção pousa no Tio. Seu olhar parece mais um modo de
escutar. Que seria que ela retirava de meu parente? Talvez sua
definhada postura. Sabe-se: a dor pede pudor. Na nossa terra, o
sofrimento é uma nudez – não se mostra aos públicos. Abstinência
se comporta em sua melancolia. A velha coloca a mão sobre a testa
cortinando os olhos, atenta aos tintins dos gestos de Abstinêncio.
– Esse
homem vai carregado de sofrimento.
– Como
sabe?
– Não
vê que só o pé esquerdo é que pisa com vontade? Aquilo é peso do
coração.
Explica-me
que sabe ler a vida de um homem pelo modo como ele pisa o chão. Tudo
está escrito em seus passos, os caminhos por onde ele andou.
– A
terra tem suas páginas: os caminhos. Está me entendendo?
– Mais
ou menos.
– Você
lê o livro, eu leio o chão. Agora, mais junto, me diga: o fato dele
é preto?
– Sim.
Não vê?
– Eu
não vejo cores. Não vejo nenhuma cor.
Doença
que lhe pegou com a idade. Começou por deixar de ver o azul.
Espreitava o céu, olhava o rio. Tudo pálido. Depois foi o verde, o
mato, os capins – tudo outonecido, desverdeado. Aos poucos lhe
foram escapando as demais cores.
– Já
não vejo brancos nem pretos, tudo para mim são mulatos.
Se
conformara. Afinal, não é o cego quem mais espreita à janela? Lhe
fazia falta, sim, o azul. Porque tinha sido a sua primeira cor. Na
aldeiazinha onde crescera, o rio tinha sido o céu da sua infância.
No fundo, porém, o azul nunca é uma cor exacta. Apenas uma
lembrança, em nós, da água que já fomos.
– Agora,
sabe o que faço? Venho perto do rio e escuto as ondas: e, de novo,
nascem os azuis. Como, agora, estou escutar o azul.
Miserinha
se levanta. O balanço do barco lhe faz tontear o corado. E lá se
afasta. oasso atordoado.
A
gorda mete os pés pelos vãos. Entre a multidão vai perdendo
destaque.
Já
se vislumbra o contorno escuro da Ilha. O barco vai abrandando os
motores. Me deixo, brisa no rosto, a espreguiçar o olhar na
ondeação. É quando vejo o lenço flutuar nas ondas. É, sem
dúvida, o pano de Miserinha. Um alvoroço no peito: a velha
escorregara, se afundara nas águas? Era urgente o alerta, parar o
barco, salvar a senhora.
– Tio,
a mulher caiu no rio!
Abstinêncio
fica perturbado. Ele que nunca se alterava ergue os braços,
alvoroçado. Espreita as ondas, mãos crispadas na borda da
embarcação. Urge que seja dado o alarme. Vou empurrando para me
chegar à sala de comando. Mas, logo, alguém me sossega: – Não
caiu ninguém, foi o vento que levantou um lenço.
Sinto,
então, um puxão no ombro. É Miserinha. A própria, cabeça
descoberta, cabelo branqueado às mostras. Se junta a mim, rosto no
rosto, num segredo: – Não se aflija, o lenço não tombou. Eu é
que lancei nas águas.
– Atirou
o lenço fora? E porquê?
– Por
sua causa, meu filho. Para lhe dar sortes.
– Por
minha causa? Mas esse lenço era tão lindo/ E, agora, assim
desperdiçado no rio...
– E
depois? Há lugar melhor para deitar belezas? O rio estava tristonho
que ela nunca vira. Lhe atirara aquela alegria. Para que as águas
recordassem e fluíssem divinas graças.
– E
você, meu filho, vai precisar muito de boa proteccão.
Uma
gaivota se confunde com o pano, as patas roçando o falso peixe. E
logo se juntam outras, invejosas, em barulhação. Quando reparo, já
Miserinha se retira, dissolta no meio das gentes.
A
Ilha de Luar-do-Chão deve estar a um toque do olhar, tamanha é a
agitação. O Tio Abstinência se aproxima, endireitando-se solene
contra o vento.
– Estava
falando com essa velha?
– Sim,
Tio. Falava.
– Pois
não fale. Não deixe que ela chegue perto.
– Mas,
Tio...
– Não
há mas. Essa mulher que não se chegue.
Nunca!
As canoas e jangadas se aproximam para carregar os passageiros para a
praia. Alguns homens sobem para o convés para ajudar no transbordo.
Fico com Tio Abstinêncio a ver a gente descer. Ele se guarda sempre
para último. Há-de morrer depois de todos, dizia o Avô.
A
noite está mais espessa, a lancha que nos vem buscar parece flutuar
no escuro. Antes de entrarmos na embarcação Abstinêncio me faz
parar, mão posta sobre o meu peito: – Agora que estamos a chegar,
você prometa ter cuidado.
– Cuidado?
Porquê, Tio?
– Não
esqueça: você recebeu o nome do velho Mariano. Não esqueça.
O
Tio se minguou no esclarecimento. Já não era ele que falava. Uma
voz infinita se esfumava em meus ouvidos: não apenas eu continuava a
vida do falecido. Eu era a vida dele.
Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra
O primeiro capítulo anuncia o que virá, de certo, outros deleitosos capítulos de boa literatura.
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