terça-feira, 5 de abril de 2022

Capítulo treze | Chorar para mentir


Então, Boa de Espanto insistiu e sua obstinada forma de medo criou fealdade. Ela explicou:
o choro pode ser para mentir. A comoção também acontece por máscara. A complexidade educa para isso.
Honra enfureceu. Era um opaco recente, talvez faltasse aprender muita coisa, ou a graça da mata não lhe oferecesse a intuição como seria suposto. O que a feminina defendia era a fealdade absoluta, a coisa corrompida do rosto, a destruição dessa sagrada manifestação com que se irmanavam todos os abaeté, todos os que soam. O guerreiro sempre ferido não poderia aceitar que a comoção de Meio da Noite fosse máscara de maldade, uma camuflagem para sua condição matreira. Julgava que a maldade do negro haveria de ser por tristeza, jamais por vontade própria, tarefa torpe de ser atacante contra a gentileza e as ideias puras.
Era cedo e haviam sido chefiados de caminhar à aldeia subida para diálogo com os sábios tardios que haveriam de averiguar como ia a boca do guerreiro branco tanto exposta agora à língua inimiga. E queriam escutar o animal negro a entoar. Os tardios tinham de avaliar o juízo dos dois. Afirmavam que o risco de emoção era grande.
Honra pediu:
sagrada mãe, não se assuste. Saberei encontrar a mentira. Eu saberei. E serei sempre pela pureza de nosso povo. Regressarei de todas as caminhadas como a promessa de um herói que me compete, ou como um herói enfim consumado porque estou tão perto de consumar. Eu sinto. Eu sinto. Mato o animal negro se ele mentir. Mato o animal negro se ele trair. Mato o animal negro se ele manifestar a maldade e perigar nossa alegria. Sagrada mãe, estou preparado para matar. Nossos inimigos serão incapazes de máscaras. Serão impotentes diante de minha obstinada atenção e eu vou matar um por um até que nossas ilhas e nossos mares sejam apenas bênção, como foi prometido e nos compete.
A feminina fechou os braços em torno do filho e padeceu de sua dúvida. O filho ergueu daquele abraço despontando de um esconderijo inteiro. O medo das mães podia ser uma forma de retenção, uma covardia egoísta que preferia recusar a valentia pelo exercício do amor. Para o feio branco, o amor era inexplicável. Não existia. Tinha jeito de fraqueza, uma fraqueza inaceitável para o povo abaeté mais ameaçado do que nunca. Ele entoou:
o negro é manso. Ele vai afeiçoar à gentileza.
A mãe lhe respondeu:
que tens na pele. Vais esfolar se não paras de coçar.
O guerreiro sempre ferido passava as mãos pelos braços. Não era por dor alguma. Apenas a sensação constante de ser tocado. Um pouco por toda a parte, por todo o corpo, sempre, acordado e durante o sono, alguma coisa parecia tocar-lhe. E ele se desviava. Era do ar, de algum vento, de criar a ansiedade necessária para cumprir sua tarefa tão opaca de educar o animal negro. Honra entoou:
saio com o negro para a aldeia subida, sagrada mãe. Saímos agora.
E a mãe respondeu:
espia. Seguires sozinho pela mata obriga a toda a atenção.
O guerreiro branco confundiu. A mãe descontava o feio negro da caminhada, como se tivesse descontado o negro da conversa. Como se o negro não existisse. Honra mais esfregou o braço e olhou em redor. Havia ninguém. Saiu ao terreiro e buscou Meio da Noite que, por hábito, aguardava no mesmo pouco de frescura que havia sob a andiroba. Assim o chamou. O negro abriu os olhos como se os acendesse. Levantou e imediatamente deitou passos para saírem cerca fora da aldeia litoral.
Chegaram à cobra amistosa e subiram contra a água. Sempre contra a água. Parecia em fuga, àquele sol intenso, o calor aumentando, ia mais rápida do que costumava. E Honra assim o notou:
a cobra corre aflita. Sagrado Meio da Noite, alguma coisa aflige o igarapé. O igarapé foge.
Era sem conteúdo para o negro que se acreditasse poder afligir uma coisa daquelas. Cursos de água eram sem pensamento, desciam pelo seu próprio peso, vinham de gargantas líquidas que não paravam de humedecer, corriam para mares talvez sem sequer saberem para onde corriam e o que os levaria a mover. Era muito sem conteúdo acreditar que uma natureza de água tivesse alturas de consciência, tristeza, medo ou euforia. O negro ficou calado. Subiu contínuo e molhou os pés por vezes, a sentir a frescura grata, a maravilha possível dentro de tão grande calor.
Mas Honra voltou a entoar, baixando a voz, alerta como um opaco competente e sem hesitação:
espera. Nesta lonjura se aninham muitas feras. De alguma nos avisa a cobra amiga. Talvez nos diga a razão de estar a fugir.
Educado pelo igarapé, o feio branco sabia estar educado para cada bulício da mata. Era fundamental auscultar a estranheza. Ignorar a estranheza seria o primeiro convite para a morte.
Detiveram-se e escutaram nada. Os ruídos costumeiros da mata crepitavam. Suas aves e seus roedores, o marulhar das árvores, a voz da água. Era tudo normal. O negro impacientava e queria caminhar. Mantinha os pés mergulhados naquele límpido reflexo e pensava que talvez pudessem nadar, demorar o bastante para entrarem o corpo inteiro. O guerreiro branco, contudo, mantinha a mão no ar em sinal de alerta, porque no crepitar da mata algo de verdade sinalizava o perigo. Ele entoava:
escuta, sagrado Meio da Noite. Escuta.
Exactamente naquele instante, definido como se fosse muito junto deles, soou a cuspida do grito de ferro. Cuspiu e a mata inteira estarreceu. Os dois guerreiros feios espantaram um para o outro, diminuíram os corpos até ao chão e silenciaram. O inimigo branco entrara na mata abaeté e cuspia sobre alguma presa. Honra abeirou o negro e tremeu. Tremiam ambos. Depois, pensando dentro da bênção, ele pausadamente entoou:
sagrado Meio da Noite, o grito de ferro cuspiu ali, naquela direcção. Eu vou seguir em torno para conseguir chegar nas costas dele. Tu ficas aqui. Quando contares até cento e um berrarás vinte onças e o inimigo vai enervar, perdendo a segurança. O medo do inimigo vai favorecer que vulnerabilize, e eu atirarei minha lança. A minha lança vê certeira. Jamais terá como falhar. Sagrado Meio da Noite, nós vamos matar o branco agora, e mais tarde cantaremos, dançaremos de alegria e seremos celebrados por toda a comunidade. Ao meu primeiro passo, conta até cento e um, depois berra vinte onças por nossa guerra.
O negro ainda procurou recusar. Eram demasiado novos, demasiado pequenos,
demasiado aleijados no orgulho, demasiado ignorantes, ele estava com demasiado medo, tinha demasiada dúvida acerca de matar alguém, não queria matar já, ser matador agora, naquele instante tão súbito, sem mais pensar, sem mentalizar-se para o gesto que mudaria seu espírito para sempre. Eles não iam conseguir sequer a coragem de matar alguém. E não havia como saber quantos seriam. Quantos brancos estariam no disparo daquele ferro. Quantos ferros os olhariam atentos, preparados para cuspir também. De quantas cuspidas se poderiam desviar. Quantas cuspidas cada ferro conteria. Seria mais esperto fugir, avisar os outros, talvez até fugir com os outros, atravessar pelos mares, azarar pelos mares em direcção a novas terras, outras terras mais escondidas. As ilhas dos abaeté estavam finalmente encontradas, eram no caminho da cobiça branca, haveriam de ser sempre incomodadas. A alegria da mata acabara. Fugir seria a educação mais absoluta. Melhor que buscassem os mocambos de que os povos negros falavam. Suplicar abrigo nos mocambos, ser escondido pela multidão que fugira havia muito e se robustecera contra qualquer um que quisesse voltar a encarcerar alguém. Melhor que não matassem. Meio da Noite pensava sobretudo isto. Era melhor que não matassem. Mas Honra já montava a tocaia. Antes de afastar, instruiu:
não podemos demorar. Algum abaeté pode estar furado pela cuspida. Escolhe uma sombra e aninha. Afeiçoa à sombra para ficar invisível. Tua cor nocturna vai sumir teu corpo e ajudar a nossa tocaia. Sê feroz, animal negro, agora sê feroz mais do que nunca.
Meio da Noite contou até cento e um e parou de contar. Julgava que talvez não fosse o suficiente para o guerreiro sempre ferido chegar ao outro lado do inimigo, posicionado em condições de vencer. Talvez devesse contar até duzentos e dois, o tempo de Honra ir e voltar, depois de conhecer quantos seriam, o quanto seria impossível atacar sem morrer. O negro hesitou, certamente o feio branco estaria já furioso à espera dele, talvez bastasse seu berro para ajoelhar o branco no inesperado da mata. Quando Meio da Noite levantou a cabeça um pouco acima da folhagem onde se escondera, saindo ínfimo de sua sombra, ele mesmo pôde escutar algo diferente. Um movimento atarefado, muito perto, a pisar pelo chão longo, arrastado. Súbito, a voz de Honra soou em surdina:
não berres. Fica calado.
E Meio da Noite então viu como Honra recuperava sua lança do corpo tombado do branco. Caminhando descido, o guerreiro sempre ferido tomou o grito de ferro e juntou-se ao feio negro. Era a horrenda arma do inimigo. A pior arma. E estava em suas mãos inteira, enfim à mercê de sua guerra.
Por um instante, os dois apenas olharam a arma como a ver para muito além. Sentiam-na para acreditarem que detinham o poder de uma cuspida assim. Haveriam de abater mil inimigos com um poder daqueles. Olhavam a arma e parecia que a arma estava a muita mata de distância. Até que Meio da Noite, o negro assustado, quase entoou demasiado alto:
mataste alguém. Está morto, Honra. Mataste alguém.
O guerreiro branco, sempre instável, respondeu:
estava sozinho. Eu tenho quase a certeza de que estava sozinho. Vamos aninhar e esperar. Repara como a cobra amiga desce mais devagar. Repara. Parou de fugir. Avisa que está tudo bem.
O negro olhou o igarapé e, por estranho que pudesse ser, o curso de água abrandara. Certamente seria da altura do sol, do tempo do dia passando, o típico de haver marés. Era apenas uma maré mais baixa, mais lenta. Mas era verdade que a água aquietara. Descia paciente ou mais feliz. O negro não soube o que pensar. Tinha nenhuma preparação para a espiritualidade da mata. Incrédulo, fixava o morto e sentia que o morto voltaria para os bater até estarem mortos também. O negro concebia a culpa mesmo para quando lhe acontecesse o direito de se defender. Para ele, a defesa era a fuga. Pensou que a morte do branco pelas mãos de Honra pudesse ser um assunto novo que se haveria de justificar. Era justo. Era seguramente justo. Manteve o medo mas começou a aceitar. O guerreiro sempre ferido entoou:
agora, vamos contar até cento e um, depois, se não vier inimigo, apoderamos o corpo morto. Entretanto, tu afeiçoa à sombra outra vez, enquanto isso, eu vou espiar se a cuspida que escutámos capturou alguém de nosso verdadeiríssimo povo. Silencia sempre, sagrado Meio da Noite, e alegra. A mata é boa.
O negro aninhou novamente entre a folhagem e, à sua guarda, ficou o grito de ferro. O corpo morto era a dez passos dali, alguns bichos abeiravam ao cheiro do sangue. Incrédulo, o negro escolheu apenas esperar. Havia algo de muito absurdo em tudo aquilo. Não parava de pensar que o branco fora abatido, impotente contra a
tocaia de Honra, não parava de pensar o quanto isso era feio e o quanto isso trazia justiça aos seus povos negros. Então, Meio da Noite capacitou-se para sentir um nervosismo feliz. Até mesmo que os bichos pudessem abeirar o cadáver para o devorar, Meio da Noite pensou nisso e sentiu uma incontida alegria. Pensou que gostava de Honra. Pensou que era importante que Honra fosse e voltasse em segurança, magnífico, destemido em sua coragem e em seu ódio. Ele entendeu que o guerreiro branco fazia a coisa certa. Era santo. Era inteiramente santo naquilo que acabara de fazer.
Quando Honra voltou, afirmando que não encontrara nenhuma presa ferida ou morta, o negro perguntou:
o que faria um branco sozinho na mata.
Honra respondeu:
a morte. O branco faz todas as mortes possíveis.
Os feios carregariam o inimigo para a aldeia e o mostrariam em sua última indignidade. Pai Todo haveria de dar início aos rituais de abrigo, cantariam, fumariam, dançariam pelo anoitecer e teriam orgulho. Acima de tudo, por ser tão importante, ergueriam o grito de ferro nas mãos e afirmariam:
eis o que trouxemos para a nossa guerra.
A guerra dos abaeté contaria agora com a terrível arma por aliada. Olhariam seu engenho para aprender sua cuspida. Cuspiriam na direcção do inimigo que estivesse a chegar. Fariam muita garantia de paz e alegria à custa da captura de uma ciência daquelas. Os dois guerreiros feios suaram carregando o branco de volta à aldeia litoral, presumindo que os sábios tardios entenderiam a ausência para medir o estrago em suas bocas, o estrago em seus espíritos. Agora, era mais importante noticiar a festa, a magnífica captura, a vingança legítima do povo abaeté.
O animal branco, pesado e rastreando o sangue pelo caminho, era puxado pelos pés. Cada pé, um guerreiro feio. Honra entoava:
o pé dele fede à tua boca.
O negro, profundo e obediente, assombrava-se. O medo acontecia mesmo por cima das coisas justas. Estarem certos não sanava a tristeza de ser necessário guerrear. Assim respondeu:
descansemos um pouco. Sinto falta de ar. Sinto medo ou tristeza. Não sei.
Sentados um diante do outro, Honra julgou ver claramente como o jacaré no peito do amigo se moveu na moleza da barriga. Era um braço de dentro que mudava de uma direcção à outra. Talvez tomando algo na mão. Talvez empunhando a arma. Buscando a mira para atacar. O negro, emudecido, era estranho. Honra sabia bem disso e jamais esqueceria o alerta de sua mãe. Pensava que, se o animal negro fosse uma ameaça, o terminaria com a mesma glória com que terminara seu primeiro inimigo tombado. Honra entoou:
vamos. Não posso adiar a alegria.
O feio branco pensou:
a alegria parece um bocado de guerra.

Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil

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