Minha
mãe estava preocupada de novo. Comecei a me sentir culpado por não
me sentir mal com sua preocupação.
Ela
disse que eu a estava abandonando, mas fiz o que pude para que ela
entendesse que não era isso. O celular estava um pouco afastado do
meu ouvido, no entanto, notei sua voz se enchendo de um medo
desnecessário, mas muito familiar. Minha mãe se consumia demais com
tudo, fazia tempestades em copo d’água. Denise, minha tia, sempre
dizia para ela que pensar demais era a principal causa dos seus
relacionamentos fracassados.
— Por
isso as coisas não deram certo entre você e Kent, Hannah. Você
afastou o cara — repreendeu ela. — É por isso que nunca sai com
ninguém. Você é uma montanha-russa de emoções e tem medo de se
envolver.
Denise
estava casada havia dois anos, então acho que isso a tornava uma
espécie de guru para relacionamentos.
— Só
não quero que você se magoe de novo, Levi — disse minha mãe,
suspirando do outro lado da linha.
Ela
se culpava por eu estar no Wisconsin, mas tinha sido escolha minha
passar o ano com meu pai. Eu não o via desde os meus 11 anos e
achava que se não tentasse criar uma espécie de relacionamento com
ele naquele momento, jamais o conheceria de verdade. Além disso,
minha mãe precisava do espaço dela. E eu precisava do meu espaço.
Por
não frequentar a escola e ter estudado em casa a vida inteira,
tínhamos chegado a ponto de ela me tratar como se eu fosse sua
cara-metade. Minha mãe mal falava com outras pessoas que não fossem
eu ou Denise.
— Você
não faz bem para minha irmã mais velha, Levi Myers. Sei que você é
filho dela, mas não faz bem a ela — disse Denise para mim.
— Vou
ficar bem, mãe — garanti ao telefone.
Ela
não disse mais nada, mas a imaginei tamborilando as unhas
nervosamente na superfície mais próxima, enquanto tomava seu café
bem fraco.
— Eu
juro, mãe.
— Ok.
Mas se as coisas ficarem difíceis por aí, vá ficar com Lance, tá
bom? Ou pode voltar para casa, tá? — Ela fez uma pausa. — Pode
vir se ficar muito ruim, ok?
Nós
dois sabíamos que isso não era uma opção. Eu não fazia bem para
ela nem para sua saúde mental. Esperava ter um efeito melhor no meu
pai. Fiz que sim como se ela pudesse me ver, e ela continuou falando.
— E
onde você está agora?
— Esperando
o ônibus para ir até a cidade.
— Ônibus?
— Acho
que o carro do meu pai está quebrado.
Ela
soltou alguns palavrões e sorriu ao perceber o desgosto óbvio que
ela sentia por ele. Era difícil imaginar que em algum momento
estiveram apaixonados. Eu não sabia muito sobre meu pai, e o que
sabia tinha aprendido com minha mãe. Eu costumava passar uma semana
com ele durante o verão até completar 11 anos. Ele costumava mandar
cartões de aniversário e Natal com dinheiro e um post-it com alguma
mensagem curta. Nada de mais, só um bilhetinho desejando feliz
aniversário ou feliz Natal. Ainda tenho todos guardados numa caixa
de sapatos.
Então,
certo ano, ele parou. Disse para minha mãe que era melhor que eu
parasse de visitá-lo e não deu mais explicações. Meu objetivo em
passar este ano com meu pai era descobrir por que ele havia
interrompido nossa relação e as cartas de forma tão repentina. Eu
faria tudo que pudesse para descobrir o que aconteceu entre a gente.
— Vou
ligar para o Lance e pedir para ele ir buscar você.
— Não,
mãe. Ele está trabalhando. Está tudo bem.
Lance
era meu tio, irmão do meu pai, e foi só por causa dele que minha
mãe deixou que eu viesse passar o ano letivo com meu pai. Lance me
ajudara a convencê-la de que a visita seria ótima para todos e
prometera ficar de olho em mim.
Só
que eu não precisava que ele ficasse de olho em mim. Eu não era
mais criança, e, vivendo com a minha mãe, já tinha presenciado
caos suficiente para conseguir sobreviver a um ano com meu pai.
Precisei amadurecer muito rápido e assumir o papel de homem da casa
quando minha mãe e eu não tínhamos mais ninguém com quem contar.
Eu
me apoiei em algo, no ponto de ônibus, e soltei minha bolsa de
viagem antes de colocar o estojo do violino no chão.
— Está
tudo bem. E o ônibus já está chegando mesmo — menti.
Minha
mãe teria mantido a ligação por muito mais tempo do que eu queria.
— Mais
tarde eu ligo, tá? — acrescentei.
— Ok.
Faça isso. Ou eu ligo para você. Eu ligo, tá? E, Levi?
— Sim?
— Amo
você até o fim.
Repeti
as palavras que ela me dizia desde sempre. Por algum motivo, minha
mãe tinha essa estranha paixão pela música “Love You Till The
End”, do The Pogues, que foi tocada pelo menos uma vez por dia na
nossa sala de estar durante toda a minha vida.
Passei
o trajeto inteiro de ônibus até a casa do meu pai me perguntando
que tipo de música tocaria na casa dele.
Com
certeza não seria The Pogues.
O
ônibus me deixou a vinte minutos a pé da cidade em que meu pai
morava. Mas, por mim, não havia problema algum além das nuvens
carregadas no céu. Na metade do caminho os pingos começaram a cair,
então acelerei o ritmo e passei a andar rápido/correr devagar.
Quando
finalmente cheguei ao endereço do meu pai, vi o carro dele no
gramado da frente da casa. O capô estava amassado, um dos faróis
estava quebrado, e ele não tinha se dado ao trabalho de fechar a
porta do motorista. A varanda tinha uma lâmpada tremeluzente que mal
atraía moscas ou mariposas. Havia uma cadeira de jardim no pátio
que parecia estar lá desde 1974, e também vi uma embalagem de
comida congelada pela metade jogada sobre a grama amarronzada.
A
melhor coisa que poderia ter acontecido com o gramado dele era aquela
chuva caindo.
Pisei
na varanda de madeira e as tábuas rangeram a cada movimento. Talvez
em breve desmoronasse só com o peso do meu corpo.
A
porta preta estava escancarada, então nem precisei bater.
— Pai?
Nenhuma
resposta.
Ao
entrar na casa, eu o vi no sofá da sala de estar. Pelo menos a
casa está mais limpa do que o gramado. Ele estava com as pernas
por cima do braço do sofá, dormindo profundamente.
— Pai.
Ele
se virou contra as almofadas, mas não acordou. Vê-lo pela primeira
vez depois de tantos anos provocou emoções muito diversas. Fiquei
feliz, triste, amargurado e com raiva — tudo ao mesmo tempo. Queria
gritar com ele por ter me abandonado, e abraçá-lo por deixar que eu
voltasse depois de todos esses anos.
Queria
que ele dissesse que tinha sentido saudades, que pedisse desculpas, e
que explicasse por que esteve tão distante nos últimos anos.
Mas
o que eu mais queria era que ele acordasse do cochilo.
Tentando
ao máximo afastar aquela confusão da minha cabeça, pigarreei.
— Pai
— disse, dessa vez mais alto.
Empurrei
a perna dele com a sola do meu All Star azul, e sua reação foi
grunhir e se virar para o encosto do sofá.
— Tá
brincando comigo? — murmurei baixinho antes de pegar minha mala e
batê-la na lateral do corpo dele. — Pai!
Ele
finalmente se sentou, franzindo a testa.
— Hã?
Esfregou
os olhos cansados com as palmas das mãos, cerrou os punhos e
inclinou a cabeça para me encarar.
— Conseguiu
chegar?
— Consegui.
Achei que você ia querer saber que estou aqui.
Ele
coçou a barba grisalha antes de se virar de novo para o encosto do
sofá.
— Seu
quarto fica no fim do corredor, à direita.
E
rapidamente voltou a roncar.
— Também
adorei rever você.
Dei
uma olhada no quarto antes de entrar e vi uma cama arrumada e uma
cômoda com toalhas e itens de banheiro em cima dela.
Pelo
menos ele pensou em mim.
Algumas
caixas que minha mãe tinha enviado estavam no chão. Nada mais.
Meu
celular começou a tocar, e o nome de Lance apareceu na tela.
— Alô?
— Oi,
Levi! Chegou bem? Sei que Kent ia buscar você no aeroporto, mas eu
só queria ver como você estava.
— Oi,
cheguei. O carro dele não está funcionando, vim de ônibus. Acabei
de chegar.
— Cara!
Devia ter me ligado, eu poderia ter ido buscar você.
— Não
foi nada de mais, eu sabia que você estava trabalhando. O trajeto
foi tranquilo.
— Bem,
da próxima vez que precisar de alguma coisa, nem pense duas vezes,
ok? Família é mais importante que trabalho. Você está arrumando
suas coisas? Kent tratou você bem?
— Na
verdade, ele está cochilando.
Lance
ficou em silêncio por um instante.
— Pois
é, ele tem feito muito isso ultimamente. Tem certeza de que não
precisa de nada? Comida? Companhia? Comida e companhia? Posso ir até
aí e falar até você cansar — disse, rindo.
— Não,
estou bem, juro. Acho que vou só arrumar minhas coisas mesmo.
— Tá
bom. Mas ligue se precisar de qualquer coisa. A hora que for.
— Obrigado,
Lance.
— Imagina,
cara. Até mais.
Depois
de desligar, sentei na cama e fiquei encarando as paredes brancas.
Aquilo ali estava longe de ser um lugar que eu chamaria de lar.
Parecia estranho. Minha mãe e eu morávamos no Alabama, em uma casa
no meio do bosque. A única coisa boa sobre a casa do meu pai era que
o quintal era cercado de árvores. Se não fosse por elas e pelas
lembranças que eu tinha dele, provavelmente a sensação seria a de
estar em Plutão ou algo do tipo.
Abrindo
as caixas, tirei minha coleção de CDs, a coisa mais eclética que
eu tinha entre minhas posses. Eu poderia facilmente tirar dali um
álbum de jazz, depois algo do Jay-Z e terminar com The Black Crowes.
Minha mãe era musicista e achava que valia a pena explorar todos os
gêneros. Por isso escutávamos de tudo e nossa casa não ficava em
silêncio nem por um segundo.
A
casa do meu pai era muda.
Outra
caixa tinha várias coleções de dicionários de capa dura: o
Merriam-Webster Dictionary, o Merriam-Webster Collegiate Dictionary,
e os dois volumes do Oxford English Dictionary. Todos os dias,
durante o ensino domiciliar, minha mãe pedia que eu folheasse esses
dicionários e encontrasse palavras que eu não conhecia. Depois,
usávamos essas palavras para compor músicas.
O
restante das minhas caixas armazenava minha coleção de Harry
Potter, Jogos Vorazes, As Crônicas de Nárnia, todos os romances de
Stephen King e dezenas de outros livros.
Peguei
o Merriam-Webster e comecei a folhear.
querer
| verbo | que.rer | [ker'er]
1.
desejar (alguma coisa)
2.
precisar (de alguma coisa)
Queria
que meu pai me quisesse um pouco. Queria que minha mãe não me
quisesse tanto. Eu queria que me quisessem, mas não muito.
O
congelador tinha grande variedade de refeições prontas. A geladeira
estava totalmente cheia com frios, frutas, restos de pizza, as
cervejas do meu pai e refrigerante root beer.
Ele
lembrou qual o meu refrigerante preferido.
Jantei
purê de batatas com carne moída. Estava péssimo e tomei dois
refrigerantes para ajudar a descer. Meu pai comeu o mesmo, mas em
outro cômodo. Eu o deixei em paz pelo restante da noite e fiquei no
meio do bosque durante a tempestade. Bem no alto dos galhos
retorcidos, vi a casa de árvore que nós dois construímos quando eu
tinha 9 anos. Na minha memória ela era muito maior, mas acho que
lembranças são assim mesmo — nem sempre reproduzem fielmente a
verdade.
No
tronco da árvore, vi nossas iniciais riscadas em cima das palavras
“homens da caverna”.
Meus
dedos passaram por cima de cada uma delas.
Não
tinha lembrança do momento em que escrevemos aquilo.
Eu
me perguntei o que mais eu tinha esquecido sobre aquele lugar.
Subi
os degraus molhados na árvore, que ainda estavam bem firmes, e
fiquei sentado dentro da casa, agora minúscula para mim, que estava
coberta de teias de aranha, besouros mortos e latas de cerveja
antigas. No canto mais distante, vi um aparelho de som velho que meu
pai e eu usávamos para tocar nossos CDs preferidos enquanto nos
divertíamos e ficávamos de bobeira.
Sem
pensar duas vezes, apertei o botão de ligar, mas o som estava tão
morto quanto os besouros.
Fiquei
ali de braços cruzados na frente da janela, vendo a chuva cair.
A
chuva sempre me lembrava da minha mãe.
Talvez
eu estivesse começando a ficar com um pouco de saudades dela.
Brittainy C. Cherry, in Arte & Alma
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