quarta-feira, 6 de abril de 2022

Capítulo 1 | Levi, 17 anos

Minha mãe estava preocupada de novo. Comecei a me sentir culpado por não me sentir mal com sua preocupação.
Ela disse que eu a estava abandonando, mas fiz o que pude para que ela entendesse que não era isso. O celular estava um pouco afastado do meu ouvido, no entanto, notei sua voz se enchendo de um medo desnecessário, mas muito familiar. Minha mãe se consumia demais com tudo, fazia tempestades em copo d’água. Denise, minha tia, sempre dizia para ela que pensar demais era a principal causa dos seus relacionamentos fracassados.
Por isso as coisas não deram certo entre você e Kent, Hannah. Você afastou o cara — repreendeu ela. — É por isso que nunca sai com ninguém. Você é uma montanha-russa de emoções e tem medo de se envolver.
Denise estava casada havia dois anos, então acho que isso a tornava uma espécie de guru para relacionamentos.
Só não quero que você se magoe de novo, Levi — disse minha mãe, suspirando do outro lado da linha.
Ela se culpava por eu estar no Wisconsin, mas tinha sido escolha minha passar o ano com meu pai. Eu não o via desde os meus 11 anos e achava que se não tentasse criar uma espécie de relacionamento com ele naquele momento, jamais o conheceria de verdade. Além disso, minha mãe precisava do espaço dela. E eu precisava do meu espaço.
Por não frequentar a escola e ter estudado em casa a vida inteira, tínhamos chegado a ponto de ela me tratar como se eu fosse sua cara-metade. Minha mãe mal falava com outras pessoas que não fossem eu ou Denise.
Você não faz bem para minha irmã mais velha, Levi Myers. Sei que você é filho dela, mas não faz bem a ela — disse Denise para mim.
Vou ficar bem, mãe — garanti ao telefone.
Ela não disse mais nada, mas a imaginei tamborilando as unhas nervosamente na superfície mais próxima, enquanto tomava seu café bem fraco.
Eu juro, mãe.
Ok. Mas se as coisas ficarem difíceis por aí, vá ficar com Lance, tá bom? Ou pode voltar para casa, tá? — Ela fez uma pausa. — Pode vir se ficar muito ruim, ok?
Nós dois sabíamos que isso não era uma opção. Eu não fazia bem para ela nem para sua saúde mental. Esperava ter um efeito melhor no meu pai. Fiz que sim como se ela pudesse me ver, e ela continuou falando.
E onde você está agora?
Esperando o ônibus para ir até a cidade.
Ônibus?
Acho que o carro do meu pai está quebrado.
Ela soltou alguns palavrões e sorriu ao perceber o desgosto óbvio que ela sentia por ele. Era difícil imaginar que em algum momento estiveram apaixonados. Eu não sabia muito sobre meu pai, e o que sabia tinha aprendido com minha mãe. Eu costumava passar uma semana com ele durante o verão até completar 11 anos. Ele costumava mandar cartões de aniversário e Natal com dinheiro e um post-it com alguma mensagem curta. Nada de mais, só um bilhetinho desejando feliz aniversário ou feliz Natal. Ainda tenho todos guardados numa caixa de sapatos.
Então, certo ano, ele parou. Disse para minha mãe que era melhor que eu parasse de visitá-lo e não deu mais explicações. Meu objetivo em passar este ano com meu pai era descobrir por que ele havia interrompido nossa relação e as cartas de forma tão repentina. Eu faria tudo que pudesse para descobrir o que aconteceu entre a gente.
Vou ligar para o Lance e pedir para ele ir buscar você.
Não, mãe. Ele está trabalhando. Está tudo bem.
Lance era meu tio, irmão do meu pai, e foi só por causa dele que minha mãe deixou que eu viesse passar o ano letivo com meu pai. Lance me ajudara a convencê-la de que a visita seria ótima para todos e prometera ficar de olho em mim.
Só que eu não precisava que ele ficasse de olho em mim. Eu não era mais criança, e, vivendo com a minha mãe, já tinha presenciado caos suficiente para conseguir sobreviver a um ano com meu pai. Precisei amadurecer muito rápido e assumir o papel de homem da casa quando minha mãe e eu não tínhamos mais ninguém com quem contar.
Eu me apoiei em algo, no ponto de ônibus, e soltei minha bolsa de viagem antes de colocar o estojo do violino no chão.
Está tudo bem. E o ônibus já está chegando mesmo — menti.
Minha mãe teria mantido a ligação por muito mais tempo do que eu queria.
Mais tarde eu ligo, tá? — acrescentei.
Ok. Faça isso. Ou eu ligo para você. Eu ligo, tá? E, Levi?
Sim?
Amo você até o fim.
Repeti as palavras que ela me dizia desde sempre. Por algum motivo, minha mãe tinha essa estranha paixão pela música “Love You Till The End”, do The Pogues, que foi tocada pelo menos uma vez por dia na nossa sala de estar durante toda a minha vida.
Passei o trajeto inteiro de ônibus até a casa do meu pai me perguntando que tipo de música tocaria na casa dele.
Com certeza não seria The Pogues.

O ônibus me deixou a vinte minutos a pé da cidade em que meu pai morava. Mas, por mim, não havia problema algum além das nuvens carregadas no céu. Na metade do caminho os pingos começaram a cair, então acelerei o ritmo e passei a andar rápido/correr devagar.
Quando finalmente cheguei ao endereço do meu pai, vi o carro dele no gramado da frente da casa. O capô estava amassado, um dos faróis estava quebrado, e ele não tinha se dado ao trabalho de fechar a porta do motorista. A varanda tinha uma lâmpada tremeluzente que mal atraía moscas ou mariposas. Havia uma cadeira de jardim no pátio que parecia estar lá desde 1974, e também vi uma embalagem de comida congelada pela metade jogada sobre a grama amarronzada.
A melhor coisa que poderia ter acontecido com o gramado dele era aquela chuva caindo.
Pisei na varanda de madeira e as tábuas rangeram a cada movimento. Talvez em breve desmoronasse só com o peso do meu corpo.
A porta preta estava escancarada, então nem precisei bater.
Pai?
Nenhuma resposta.
Ao entrar na casa, eu o vi no sofá da sala de estar. Pelo menos a casa está mais limpa do que o gramado. Ele estava com as pernas por cima do braço do sofá, dormindo profundamente.
Pai.
Ele se virou contra as almofadas, mas não acordou. Vê-lo pela primeira vez depois de tantos anos provocou emoções muito diversas. Fiquei feliz, triste, amargurado e com raiva — tudo ao mesmo tempo. Queria gritar com ele por ter me abandonado, e abraçá-lo por deixar que eu voltasse depois de todos esses anos.
Queria que ele dissesse que tinha sentido saudades, que pedisse desculpas, e que explicasse por que esteve tão distante nos últimos anos.
Mas o que eu mais queria era que ele acordasse do cochilo.
Tentando ao máximo afastar aquela confusão da minha cabeça, pigarreei.
Pai — disse, dessa vez mais alto.
Empurrei a perna dele com a sola do meu All Star azul, e sua reação foi grunhir e se virar para o encosto do sofá.
Tá brincando comigo? — murmurei baixinho antes de pegar minha mala e batê-la na lateral do corpo dele. — Pai!
Ele finalmente se sentou, franzindo a testa.
Hã?
Esfregou os olhos cansados com as palmas das mãos, cerrou os punhos e inclinou a cabeça para me encarar.
Conseguiu chegar?
Consegui. Achei que você ia querer saber que estou aqui.
Ele coçou a barba grisalha antes de se virar de novo para o encosto do sofá.
Seu quarto fica no fim do corredor, à direita.
E rapidamente voltou a roncar.
Também adorei rever você.
Dei uma olhada no quarto antes de entrar e vi uma cama arrumada e uma cômoda com toalhas e itens de banheiro em cima dela.
Pelo menos ele pensou em mim.
Algumas caixas que minha mãe tinha enviado estavam no chão. Nada mais.
Meu celular começou a tocar, e o nome de Lance apareceu na tela.
Alô?
Oi, Levi! Chegou bem? Sei que Kent ia buscar você no aeroporto, mas eu só queria ver como você estava.
Oi, cheguei. O carro dele não está funcionando, vim de ônibus. Acabei de chegar.
Cara! Devia ter me ligado, eu poderia ter ido buscar você.
Não foi nada de mais, eu sabia que você estava trabalhando. O trajeto foi tranquilo.
Bem, da próxima vez que precisar de alguma coisa, nem pense duas vezes, ok? Família é mais importante que trabalho. Você está arrumando suas coisas? Kent tratou você bem?
Na verdade, ele está cochilando.
Lance ficou em silêncio por um instante.
Pois é, ele tem feito muito isso ultimamente. Tem certeza de que não precisa de nada? Comida? Companhia? Comida e companhia? Posso ir até aí e falar até você cansar — disse, rindo.
Não, estou bem, juro. Acho que vou só arrumar minhas coisas mesmo.
Tá bom. Mas ligue se precisar de qualquer coisa. A hora que for.
Obrigado, Lance.
Imagina, cara. Até mais.
Depois de desligar, sentei na cama e fiquei encarando as paredes brancas. Aquilo ali estava longe de ser um lugar que eu chamaria de lar. Parecia estranho. Minha mãe e eu morávamos no Alabama, em uma casa no meio do bosque. A única coisa boa sobre a casa do meu pai era que o quintal era cercado de árvores. Se não fosse por elas e pelas lembranças que eu tinha dele, provavelmente a sensação seria a de estar em Plutão ou algo do tipo.
Abrindo as caixas, tirei minha coleção de CDs, a coisa mais eclética que eu tinha entre minhas posses. Eu poderia facilmente tirar dali um álbum de jazz, depois algo do Jay-Z e terminar com The Black Crowes. Minha mãe era musicista e achava que valia a pena explorar todos os gêneros. Por isso escutávamos de tudo e nossa casa não ficava em silêncio nem por um segundo.
A casa do meu pai era muda.
Outra caixa tinha várias coleções de dicionários de capa dura: o Merriam-Webster Dictionary, o Merriam-Webster Collegiate Dictionary, e os dois volumes do Oxford English Dictionary. Todos os dias, durante o ensino domiciliar, minha mãe pedia que eu folheasse esses dicionários e encontrasse palavras que eu não conhecia. Depois, usávamos essas palavras para compor músicas.

O restante das minhas caixas armazenava minha coleção de Harry Potter, Jogos Vorazes, As Crônicas de Nárnia, todos os romances de Stephen King e dezenas de outros livros.
Peguei o Merriam-Webster e comecei a folhear.
querer | verbo | que.rer | [ker'er]
1. desejar (alguma coisa)
2. precisar (de alguma coisa)
Queria que meu pai me quisesse um pouco. Queria que minha mãe não me quisesse tanto. Eu queria que me quisessem, mas não muito.

O congelador tinha grande variedade de refeições prontas. A geladeira estava totalmente cheia com frios, frutas, restos de pizza, as cervejas do meu pai e refrigerante root beer.
Ele lembrou qual o meu refrigerante preferido.
Jantei purê de batatas com carne moída. Estava péssimo e tomei dois refrigerantes para ajudar a descer. Meu pai comeu o mesmo, mas em outro cômodo. Eu o deixei em paz pelo restante da noite e fiquei no meio do bosque durante a tempestade. Bem no alto dos galhos retorcidos, vi a casa de árvore que nós dois construímos quando eu tinha 9 anos. Na minha memória ela era muito maior, mas acho que lembranças são assim mesmo — nem sempre reproduzem fielmente a verdade.
No tronco da árvore, vi nossas iniciais riscadas em cima das palavras “homens da caverna”.
Meus dedos passaram por cima de cada uma delas.
Não tinha lembrança do momento em que escrevemos aquilo.
Eu me perguntei o que mais eu tinha esquecido sobre aquele lugar.
Subi os degraus molhados na árvore, que ainda estavam bem firmes, e fiquei sentado dentro da casa, agora minúscula para mim, que estava coberta de teias de aranha, besouros mortos e latas de cerveja antigas. No canto mais distante, vi um aparelho de som velho que meu pai e eu usávamos para tocar nossos CDs preferidos enquanto nos divertíamos e ficávamos de bobeira.
Sem pensar duas vezes, apertei o botão de ligar, mas o som estava tão morto quanto os besouros.
Fiquei ali de braços cruzados na frente da janela, vendo a chuva cair.
A chuva sempre me lembrava da minha mãe.
Talvez eu estivesse começando a ficar com um pouco de saudades dela.

Brittainy C. Cherry, in Arte & Alma 

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