Para
ter certeza de que compreendemos as diferenças entre os três ramos
do humanismo, comparemos algumas experiências humanas.
Experiência
1: Um professor de música está na Ópera de Viena, ouvindo os sons
que abrem a Quinta Sinfonia de Beethoven. Pam pam pam PAM! Quando os
sons chegam aos seus tímpanos, os sinais são enviados pelo nervo
auditivo até o cérebro, e as glândulas suprarrenais inundam de
adrenalina sua corrente sanguínea. Sua frequência cardíaca se
acelera, sua respiração fica mais intensa, os cabelos de sua nuca
se eriçam, e um arrepio lhe percorre a espinha. “Pam pam pam PAM!”
Experiência
2: O ano é 1965. Um Mustang conversível percorre a toda velocidade
a estrada do Pacífico de San Francisco a Los Angeles. O jovem
motorista macho põe Chuck Berry no volume máximo: “Go! GO,
Johnny, go, go!”. Quando os sons chegam aos seus tímpanos, os
sinais são enviados pelo nervo auditivo até o cérebro, e as
glândulas suprarrenais inundam de adrenalina sua corrente sanguínea.
Sua frequência cardíaca se acelera, sua respiração fica mais
intensa, os cabelos de sua nuca se eriçam, e um arrepio lhe percorre
a espinha. “Go! GO, Johnny, go, go!”
Experiência
3: Bem no interior da floresta tropical congolesa, um caçador pigmeu
está paralisado. Da aldeia próxima, ele ouve um coro de garotas
cantando sua canção de iniciação: “Ye oh, oh. Yeh oh, eh”.
Quando os sons chegam aos seus tímpanos, os sinais são enviados
pelo nervo auditivo até o cérebro, e as glândulas suprarrenais
inundam de adrenalina sua corrente sanguínea. Sua frequência
cardíaca se acelera, sua respiração fica mais intensa, os cabelos
de sua nuca se eriçam, e um arrepio lhe percorre a espinha. “Ye
oh, oh. Yeh oh, eh.”
Experiência
4: É noite de lua cheia em algum lugar das montanhas Rochosas
canadenses. Um lobo sobre uma colina ouve os uivos de uma fêmea no
cio: “Ahuuuu! Ahuuuu!”. Quando os sons chegam aos seus tímpanos,
os sinais são enviados pelo nervo auditivo até o cérebro, e as
glândulas suprarrenais inundam de adrenalina sua corrente sanguínea.
Sua frequência cardíaca se acelera, sua respiração fica mais
intensa, os cabelos de sua nuca se eriçam, e um arrepio lhe percorre
a espinha. “Ahuuuu! Ahuuuu!”
Qual
dessas experiências é a mais valiosa?
Se
você é um liberal, tenderá a dizer que as experiências do
professor de música, do jovem motorista e do caçador congolês são
igualmente valiosas, e todas devem ser igualmente apreciadas. Toda
experiência humana contribui com algo que lhe é único e enriquece
o mundo com um novo significado. Algumas pessoas gostam de música
clássica, outras gostam de rock‘n’roll, e outras ainda preferem
os cantos tradicionais africanos. Estudantes de música deveriam
ouvir o espectro mais amplo possível de gêneros e, ao final do dia,
cada um iria à loja do iTunes, introduziria seu cartão de crédito
e compraria aquilo de que gosta. A beleza está nos ouvidos do
ouvinte, e o cliente sempre tem razão. O lobo, contudo, não é
humano, daí serem suas experiências menos valiosas. Por isso, a
vida de um lobo vale menos que a vida de um humano, por isso é
perfeitamente aceitável matar um lobo para salvar um humano. Afinal,
lobos não votam em concursos de beleza nem têm cartões de crédito.
Essa
abordagem liberal se manifesta, por exemplo, no disco de ouro que a
Voyager leva consigo. Em 1977, os americanos lançaram a sonda
espacial Voyager I numa jornada para o espaço. A essa altura
ela terá deixado o sistema solar, o que faz dela o primeiro objeto
construído pelo homem a atravessar o espaço interestelar. Além de
seu primoroso equipamento científico, a Nasa pôs a bordo um disco
de ouro, destinado a apresentar o planeta Terra a todo alienígena
inquisitivo que porventura encontrar a sonda.
O
disco contém uma variedade de informações científicas e culturais
sobre a Terra e seus habitantes, algumas imagens e vozes e dezenas de
trechos de música de todo o mundo, que supostamente representam um
exemplo razoável das realizações artísticas terrenas. A
amostragem musical mistura em uma ordem não óbvia peças clássicas,
inclusive o movimento inicial da Quinta Sinfonia de Beethoven,
música popular contemporânea, inclusive “Johnny B. Goode” de
Chuck Berry, e música tradicional de meninas pigmeias congolesas.
Embora o disco contenha também alguns latidos caninos, eles não são
parte da amostra de música; estão relegados a uma seção
diferente, que inclui os sons do vento, da chuva e das ondas. A
mensagem para ouvintes potenciais em Alfa Centauro é que Beethoven,
Chuck Berry e a canção de iniciação dos pigmeus têm mérito
igual, enquanto os uivos do lobo pertencem a uma categoria totalmente
diferente.
Se
você é socialista, provavelmente concordará com os liberais que a
experiência do lobo tem pouco valor. Mas sua atitude em relação às
três experiências humanas será bem diferente. Um verdadeiro crente
no socialismo explicará que o valor real da música depende não das
experiências do ouvinte individual, mas do impacto que ela tem nas
experiências de outras pessoas e da sociedade como um todo. Como
disse Mao: “Não existe arte em benefício da arte, uma arte que
esteja acima das classes, uma arte que esteja separada ou que seja
independente da política”.
Assim,
quando for avaliar as experiências musicais, um socialista vai
enfatizar, por exemplo, o fato de que Beethoven escreveu a Quinta
Sinfonia para uma audiência de brancos europeus de classe
elevada, exatamente quando a Europa estava prestes a embarcar em sua
conquista da África. Essa sinfonia refletia os ideais do Iluminismo,
que glorificavam os homens brancos das classes mais altas, e
classificava a conquista da África como “o fardo do homem branco”.
O
rock‘n’roll— dirão os socialistas — teve como pioneiros
músicos afro-americanos oprimidos que buscaram inspiração em
gêneros como blues, jazz e gospel. No entanto, nas décadas de 1950
e 1960 o rock‘n’roll foi sequestrado pela dominante América
branca e posto a serviço do consumismo, do imperialismo americano e
da colonização da Coca-Cola. O rock‘n’roll foi comercializado e
apropriado por adolescentes privilegiados brancos em suas fantasias
pequeno-burguesas de rebeldia. O próprio Chuck Berry curvou-se aos
ditames do rolo compressor capitalista. Tendo originalmente cantado
sobre um garoto de cor [“coloured boy”] chamado
Johnny B. Goode, sob pressão das estações de rádio de propriedade
de brancos, Berry mudou a letra para “um garoto caipira
[“country boy”] chamado Johnny B. Goode”.
Quanto
ao coro de meninas pigmeias congolesas, suas canções de iniciação
são parte de uma estrutura de poder patriarcal que faz lavagem
cerebral de homens e mulheres para conformá-los a uma ordem de
gênero opressora. E, se uma gravação dessa canção de iniciação
tem sucesso no mercado global, isso reforça as fantasias coloniais
do Ocidente sobre a África em geral e sobre as mulheres africanas em
particular.
Então,
qual música é a melhor: a Quinta de Beethoven, “Johnny B.
Goode” ou a canção de iniciação pigmeia? O governo deve
financiar a construção de casas de ópera, locais de evento com
destaque para o rock‘n’rollou exposições de heranças culturais
africanas? E o que devemos ensinar a estudantes de música em escolas
e faculdades? Bem, não perguntem para mim. Perguntem ao comissário
de cultura do partido.
Enquanto
liberais andam na ponta dos pés pelo campo minado das comparações
culturais, temerosos de darem um passo politicamente incorreto, e
enquanto socialistas deixam a cargo do partido encontrar o caminho
correto em meio ao campo minado, os humanistas evolutivos mergulham
nele alegremente, retirando todas as minas e saboreando a desordem.
Podem começar ressaltando que tanto liberais como socialistas
estabeleceram os limites em relação a outros animais e não têm
problema em admitir que humanos são superiores a lobos — e que, em
consequência, a música humana é muito mais valiosa que os uivos do
lobo. Mas o próprio gênero humano não é imune às forças da
evolução. Assim como os humanos são superiores aos lobos, algumas
culturas humanas são superiores a outras. Existe inequivocamente uma
hierarquia de experiências humanas, e não precisamos nos desculpar
por isso. O Taj Mahal é mais bonito do que uma palhoça, Davi
de Michelangelo é superior aos bonequinhos de massa de minha
sobrinha de cinco anos, e a música composta por Beethoven é muito
melhor do que a de Chuck Berry ou a dos pigmeus congoleses. Aí está,
falei!
Segundo
os humanistas evolutivos, quem argumentar que todas as experiências
humanas têm igual valor ou é um imbecil ou é um covarde. Tal
vulgaridade e timidez só nos levarão à degeneração e à extinção
do gênero humano, o progresso humano sendo impedido em nome do
relativismo cultural ou da igualdade social. Se liberais e
socialistas tivessem vivido na Idade da Pedra, provavelmente veriam
pouco mérito nos murais de Lascaux e Altamira e teriam insistido em
que não eram superiores em nada aos rabiscos do neandertal.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã
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