terça-feira, 5 de abril de 2022

Beethoven é melhor do que Chuck Berry?

Para ter certeza de que compreendemos as diferenças entre os três ramos do humanismo, comparemos algumas experiências humanas.
Experiência 1: Um professor de música está na Ópera de Viena, ouvindo os sons que abrem a Quinta Sinfonia de Beethoven. Pam pam pam PAM! Quando os sons chegam aos seus tímpanos, os sinais são enviados pelo nervo auditivo até o cérebro, e as glândulas suprarrenais inundam de adrenalina sua corrente sanguínea. Sua frequência cardíaca se acelera, sua respiração fica mais intensa, os cabelos de sua nuca se eriçam, e um arrepio lhe percorre a espinha. “Pam pam pam PAM!”
Experiência 2: O ano é 1965. Um Mustang conversível percorre a toda velocidade a estrada do Pacífico de San Francisco a Los Angeles. O jovem motorista macho põe Chuck Berry no volume máximo: “Go! GO, Johnny, go, go!”. Quando os sons chegam aos seus tímpanos, os sinais são enviados pelo nervo auditivo até o cérebro, e as glândulas suprarrenais inundam de adrenalina sua corrente sanguínea. Sua frequência cardíaca se acelera, sua respiração fica mais intensa, os cabelos de sua nuca se eriçam, e um arrepio lhe percorre a espinha. “Go! GO, Johnny, go, go!”
Experiência 3: Bem no interior da floresta tropical congolesa, um caçador pigmeu está paralisado. Da aldeia próxima, ele ouve um coro de garotas cantando sua canção de iniciação: “Ye oh, oh. Yeh oh, eh”. Quando os sons chegam aos seus tímpanos, os sinais são enviados pelo nervo auditivo até o cérebro, e as glândulas suprarrenais inundam de adrenalina sua corrente sanguínea. Sua frequência cardíaca se acelera, sua respiração fica mais intensa, os cabelos de sua nuca se eriçam, e um arrepio lhe percorre a espinha. “Ye oh, oh. Yeh oh, eh.”
Experiência 4: É noite de lua cheia em algum lugar das montanhas Rochosas canadenses. Um lobo sobre uma colina ouve os uivos de uma fêmea no cio: “Ahuuuu! Ahuuuu!”. Quando os sons chegam aos seus tímpanos, os sinais são enviados pelo nervo auditivo até o cérebro, e as glândulas suprarrenais inundam de adrenalina sua corrente sanguínea. Sua frequência cardíaca se acelera, sua respiração fica mais intensa, os cabelos de sua nuca se eriçam, e um arrepio lhe percorre a espinha. “Ahuuuu! Ahuuuu!”
Qual dessas experiências é a mais valiosa?
Se você é um liberal, tenderá a dizer que as experiências do professor de música, do jovem motorista e do caçador congolês são igualmente valiosas, e todas devem ser igualmente apreciadas. Toda experiência humana contribui com algo que lhe é único e enriquece o mundo com um novo significado. Algumas pessoas gostam de música clássica, outras gostam de rock‘n’roll, e outras ainda preferem os cantos tradicionais africanos. Estudantes de música deveriam ouvir o espectro mais amplo possível de gêneros e, ao final do dia, cada um iria à loja do iTunes, introduziria seu cartão de crédito e compraria aquilo de que gosta. A beleza está nos ouvidos do ouvinte, e o cliente sempre tem razão. O lobo, contudo, não é humano, daí serem suas experiências menos valiosas. Por isso, a vida de um lobo vale menos que a vida de um humano, por isso é perfeitamente aceitável matar um lobo para salvar um humano. Afinal, lobos não votam em concursos de beleza nem têm cartões de crédito.
Essa abordagem liberal se manifesta, por exemplo, no disco de ouro que a Voyager leva consigo. Em 1977, os americanos lançaram a sonda espacial Voyager I numa jornada para o espaço. A essa altura ela terá deixado o sistema solar, o que faz dela o primeiro objeto construído pelo homem a atravessar o espaço interestelar. Além de seu primoroso equipamento científico, a Nasa pôs a bordo um disco de ouro, destinado a apresentar o planeta Terra a todo alienígena inquisitivo que porventura encontrar a sonda.
O disco contém uma variedade de informações científicas e culturais sobre a Terra e seus habitantes, algumas imagens e vozes e dezenas de trechos de música de todo o mundo, que supostamente representam um exemplo razoável das realizações artísticas terrenas. A amostragem musical mistura em uma ordem não óbvia peças clássicas, inclusive o movimento inicial da Quinta Sinfonia de Beethoven, música popular contemporânea, inclusive “Johnny B. Goode” de Chuck Berry, e música tradicional de meninas pigmeias congolesas. Embora o disco contenha também alguns latidos caninos, eles não são parte da amostra de música; estão relegados a uma seção diferente, que inclui os sons do vento, da chuva e das ondas. A mensagem para ouvintes potenciais em Alfa Centauro é que Beethoven, Chuck Berry e a canção de iniciação dos pigmeus têm mérito igual, enquanto os uivos do lobo pertencem a uma categoria totalmente diferente.
Se você é socialista, provavelmente concordará com os liberais que a experiência do lobo tem pouco valor. Mas sua atitude em relação às três experiências humanas será bem diferente. Um verdadeiro crente no socialismo explicará que o valor real da música depende não das experiências do ouvinte individual, mas do impacto que ela tem nas experiências de outras pessoas e da sociedade como um todo. Como disse Mao: “Não existe arte em benefício da arte, uma arte que esteja acima das classes, uma arte que esteja separada ou que seja independente da política”.
Assim, quando for avaliar as experiências musicais, um socialista vai enfatizar, por exemplo, o fato de que Beethoven escreveu a Quinta Sinfonia para uma audiência de brancos europeus de classe elevada, exatamente quando a Europa estava prestes a embarcar em sua conquista da África. Essa sinfonia refletia os ideais do Iluminismo, que glorificavam os homens brancos das classes mais altas, e classificava a conquista da África como “o fardo do homem branco”.
O rock‘n’roll— dirão os socialistas — teve como pioneiros músicos afro-americanos oprimidos que buscaram inspiração em gêneros como blues, jazz e gospel. No entanto, nas décadas de 1950 e 1960 o rock‘n’roll foi sequestrado pela dominante América branca e posto a serviço do consumismo, do imperialismo americano e da colonização da Coca-Cola. O rock‘n’roll foi comercializado e apropriado por adolescentes privilegiados brancos em suas fantasias pequeno-burguesas de rebeldia. O próprio Chuck Berry curvou-se aos ditames do rolo compressor capitalista. Tendo originalmente cantado sobre um garoto de cor [“coloured boy”] chamado Johnny B. Goode, sob pressão das estações de rádio de propriedade de brancos, Berry mudou a letra para “um garoto caipira [“country boy”] chamado Johnny B. Goode”.
Quanto ao coro de meninas pigmeias congolesas, suas canções de iniciação são parte de uma estrutura de poder patriarcal que faz lavagem cerebral de homens e mulheres para conformá-los a uma ordem de gênero opressora. E, se uma gravação dessa canção de iniciação tem sucesso no mercado global, isso reforça as fantasias coloniais do Ocidente sobre a África em geral e sobre as mulheres africanas em particular.
Então, qual música é a melhor: a Quinta de Beethoven, “Johnny B. Goode” ou a canção de iniciação pigmeia? O governo deve financiar a construção de casas de ópera, locais de evento com destaque para o rock‘n’rollou exposições de heranças culturais africanas? E o que devemos ensinar a estudantes de música em escolas e faculdades? Bem, não perguntem para mim. Perguntem ao comissário de cultura do partido.
Enquanto liberais andam na ponta dos pés pelo campo minado das comparações culturais, temerosos de darem um passo politicamente incorreto, e enquanto socialistas deixam a cargo do partido encontrar o caminho correto em meio ao campo minado, os humanistas evolutivos mergulham nele alegremente, retirando todas as minas e saboreando a desordem. Podem começar ressaltando que tanto liberais como socialistas estabeleceram os limites em relação a outros animais e não têm problema em admitir que humanos são superiores a lobos — e que, em consequência, a música humana é muito mais valiosa que os uivos do lobo. Mas o próprio gênero humano não é imune às forças da evolução. Assim como os humanos são superiores aos lobos, algumas culturas humanas são superiores a outras. Existe inequivocamente uma hierarquia de experiências humanas, e não precisamos nos desculpar por isso. O Taj Mahal é mais bonito do que uma palhoça, Davi de Michelangelo é superior aos bonequinhos de massa de minha sobrinha de cinco anos, e a música composta por Beethoven é muito melhor do que a de Chuck Berry ou a dos pigmeus congoleses. Aí está, falei!
Segundo os humanistas evolutivos, quem argumentar que todas as experiências humanas têm igual valor ou é um imbecil ou é um covarde. Tal vulgaridade e timidez só nos levarão à degeneração e à extinção do gênero humano, o progresso humano sendo impedido em nome do relativismo cultural ou da igualdade social. Se liberais e socialistas tivessem vivido na Idade da Pedra, provavelmente veriam pouco mérito nos murais de Lascaux e Altamira e teriam insistido em que não eram superiores em nada aos rabiscos do neandertal.

Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

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