Em
Jerusalém, há quase três mil anos, alguém escreveu um trabalho
que, desde então, tem formado a consciência espiritual de boa parte
do nosso mundo [...] .
Não
era um escriba profissional, mas antes uma pessoa altamente
sofisticada, culta e irônica, destacada figura da elite do rei
Salomão [...]; uma mulher, que escreveu para seus contemporâneos
como mulher.
Muita
gente pergunta por que me dedico à terapia de vidas passadas. Minha
resposta varia conforme as circunstâncias. Quando sou entrevistado
na tevê ou no rádio — e sou muito entrevistado —, declaro, de
forma propositadamente reticente, que cheguei a isso por artes do
destino. O resultado é, em geral, muito bom, traduzindo-se em
admiradas exclamações por parte de entrevistadores e do público
eventualmente presente. Destino é uma palavra de que as pessoas
gostam muito; associam-na com o sobrenatural, com astros, coisas que
sempre impressionam. Aproveitando o frisson, vou além. A princípio
com proposital dificuldade — pausas vacilantes, penosos silêncios
—, mas logo com crescente entusiasmo — como se as comportas se
tivessem aberto, entende., as comportas da emoção — revelo que
minha profissão originalmente era outra: professor de História. O
que, de novo, é uma surpresa: em geral, imaginam-me psicólogo ou
médico.
Não
conto — porque ao público não interessa e mesmo que interessasse
eu não contaria — como optei pela História. Quem me incentivou a
fazê-lo foi meu pai, o velho comuna Aurélio Silva. Operário, o que
ganhava como gráfico mal dava para sustentar a família — mulher,
cinco filhos; mas tinha uma fé inabalável no futuro, para ele
sintetizado numa única e mágica palavra: comunismo. Nunca se viu,
nunca se verá, alguém com tamanha crença num ideal. Não era
apenas um militante, era um devoto estudioso da doutrina. Devorava
todos os livros que os companheiros lhe emprestavam. Como tinha pouco
tempo, lia até altas horas da noite, apesar dos protestos de minha
mãe. No dia seguinte mal conseguia trabalhar; de tão cansado,
chegava a cabecear de sono — o que resultou num trágico acidente:
a guilhotina que operava decepou-lhe a mão direita.
Inválido,
foi sumariamente despedido. Os companheiros do Partido arranjaram-lhe
outro emprego — vigia do sindicato —, mas sua vida nunca mais foi
a mesma. Deprimia-se facilmente, chorava por nada. Minha mãe não
sabia o que fazer, meus irmãos não tinham muita paciência. Cabia a
mim, portanto, dar-lhe algum apoio. Conversávamos horas a fio.
Conversávamos,
não; ele falava, eu escutava. E falava sempre sobre o seu passado de
militante. A obra de Marx dizia, olhos úmidos, foi para mim uma
revelação. Na verdade lera apenas um resumo de O capital,
mas tinha sido o suficiente: de repente tudo ficara claro a seus
olhos, a História tinha um sentido; mais, tinha leis.
Foi
por causa desses papos que escolhi História? Acho que sim. Era como
se eu o indenizasse, compreende, pela mão que havia perdido, e pelo
sofrimento... Chorou de alegria quando passei no vestibular: você
será aquilo que eu não pude ser, dizia, um grande intelectual, um
líder do Partido.
Enganava-se,
o pobre homem. Eu era esquerdista, mas não militante: nunca me
submeti a essas regras de partido.
Na
universidade, participei de alguns movimentos de protesto; assinei
manifestos, distribui panfletos, mas quando concluí o curso já não
estava mais interessado em política. Tinha o diploma, precisava
ganhar a vida — àquela altura meu pai tinha falecido, e o sustento
de minha mãe corria exclusivamente por minha conta, porque eu morava
com ela. Gostava de ensinar, de modo que arranjei um emprego como
professor num colégio público. O salário era baixo, a escola pobre
e sem recursos, mas o que mais me chateava era o fato de que os
alunos não davam a mínima para a disciplina. Para que a gente
precisa saber dos egípcios, perguntavam, dos faraós, esses caras já
morreram há tanto tempo. Eram uns chatos, aqueles alunos, e eu já
estava ficando com raiva deles e querendo mandar tudo à merda. Antes
de largar o colégio, porém, decidi fazer uma última tentativa.
Bolei uma brincadeira, uma encenação na qual cada aluno deveria
representar um personagem histórico. Para minha surpresa, a coisa
entusiasmou a garotada. Era o assunto do dia, na escola: reis,
condes, generais, os alunos não falavam de outra coisa. Os outros
professores, admirados, me cumprimentavam pela ideia. E aí
aconteceu.
Um
dos alunos, um rapaz muito quieto, muito humilde, resolveu
representar o papel de um príncipe qualquer, já não lembro qual.
Entregou-se por completo à tarefa. Pesquisando a vida do personagem,
passava horas na biblioteca — a encarregada tinha até de mandá-lo
embora. Seu comportamento mudou; tratava os colegas de forma
estranha, agressiva.
Muitos
se queixavam, mas eu não dava muita bola: afinal, tratava-se de um
adolescente, e adolescentes têm dessas coisas.
Um
dia a secretária da escola veio à sala de aula, chamou-me ao
corredor: uma mulher estava no saguão de entrada querendo falar
comigo. Está furiosa, acrescentou, alarmada, é melhor você ir até
lá. Fui.
Era
a mãe do garoto. O que é que o senhor andou fazendo com meu filho,
berrou, tão logo me viu. Tentei acalmá-la, pedi que me contasse o
que estava acontecendo. Ainda irritada, disse que o filho não lhe
obedecia mais, tornara-se arrogante, mandão. Não arrumava mais a
cama, deixava as roupas espalhadas para que alguém as juntasse.
— Tudo
por sua causa — queixou-se. — Por causa desse tal trabalho que o
senhor inventou.
Queria
fazer queixa à direção, mas eu a dissuadi: pode deixar que resolvo
o problema, garanti.
Chamei
o garoto para uma conversa particular. De fato, ele já não era o
mesmo Luizinho que antes falava comigo encolhido, olhos no chão. Eu
agora tinha diante de mim era alguém com pose de príncipe.
Cautelosamente, perguntei se se dava conta dessa mudança e a que a
atribuía. De início respondeu de forma arrogante — não precisava
me dar satisfações, quem era eu, um professorzinho medíocre —
mas, de súbito, abriu o jogo. Sim, algo tinha acontecido, algo
extraordinário. Ele não estava apenas representando um papel;
estava vivendo uma existência diferente. Tinha voltado ao passado, e
ao fazê-lo descobrira que na realidade fora não um príncipe, como
modestamente supusera, mas um rei, um rei poderoso e cruel, desses
monarcas que não hesitam em mandar matar os inimigos. Já liquidei
mais de três mil, garantiu, orgulhoso. Contou-me com detalhes uma
dessas execuções, realizada no grande pátio do castelo real e
assistida por uma multidão. Descreveu-me como o carrasco posicionara
o pescoço do condenado no cepo, como lhe decepara a cabeça com um
golpe de machado, o sangue esguichando sobre as pessoas que estavam
na frente.
Devo
dizer que fiquei impressionado: era como se o rapaz estivesse mesmo
vivendo a cena. Ao terminar a narrativa, agradeceu-me, magnânimo,
por ter oportunizado o recuo no tempo que lhe permitira encontrar sua
verdadeira personalidade.
— Você
será recompensado — prometeu, e foi-se.
Aturdido,
eu não sabia o que pensar. Mas logo dei-me conta das extraordinárias
possibilidades que o caso do garoto me proporcionava. Um novo caminho
abria-se diante de mim: eu me descobria terapeuta de vidas passadas.
Essa
é a história que conto nas entrevistas. E já a contei tantas vezes
que para mim se tornou verdade. Fato ou ficção, o certo é que as
pessoas gostam muito, e é o que importa. Depois disso, fiz um curso
sobre terapia de vidas passadas, claro, mas o método que uso é meu
mesmo, baseado no conhecimento que acumulei como professor de
História. Os pacientes voltam ao passado; enquanto estão tendo suas
visões, vou explicando: esse lugar onde você está é o palácio
real, esse homem de armadura à sua frente é Frederico, o Grande,
esses outros são os cortesãos... Costumo dizer que faço o papel de
guia, conduzindo as pessoas pelos labirintos.
O
sucesso foi imediato. Comecei atendendo pessoas numa salinha de um
velho edifício no centro da cidade. Em pouco tempo minha fama se
espalhou. A demanda cresceu espantosamente; o ganho idem. Tive de
procurar um lugar maior e mais confortável — mais apropriado para
a diferenciada clientela que eu agora tinha. Um corretor de imóveis
indicou-me um velho casarão, numa rua tranquila de subúrbio. Fui
até lá, e tão logo entrei dei-me conta de que era o lugar ideal: a
escadaria da entrada guarnecida por leões, as peças amplas, os
painéis de madeira de lei, os azulejos portugueses nos corredores,
as antigas luminárias, tudo aquilo remetia ao passado; era,
portanto, o cenário ideal para pessoas querendo regredir no tempo. A
mudança assinalou a culminância de meu sucesso, àquela altura já
consolidado. Eu era procurado por empresários, artistas, atores de
tevê. Mudei-me para um apartamento novo, comprei um carro importado.
A mídia corria atrás de mim. Editoras de autoajuda assediavam-me
para que escrevesse um livro.
Foi
então que ela apareceu.
Uma
tarde, a secretária anunciou que alguém queria me ver, uma moça
que tinha me visto na tevê e concluíra: terapia de vidas passadas
era exatamente aquilo de que necessitava.
— É
filha de fazendeiro — acrescentou a secretária, piscando o olho.
Ou seja, a moça tinha grana, o que não era decisivo mas, claro,
pesava na balança. Recebi-a, admiti-a para o tratamento.
Na
primeira sessão, chorou muito. Contou que não se dava bem com o
pai: ele não me entende, nunca me entendeu, nunca foi capaz de se
aproximar de mim — a ladainha habitual. Exceção de uma irmã, que
lhe servia de confidente, vivera solitária, no seu mundinho —
expressão dela — cheio de fantasias. Consolava-se lendo, lendo
muito, e estudando — no colégio de freiras que frequentava era
considerada uma das melhores alunas e ganhara vários prêmios por
seus conhecimentos acerca da Bíblia: sabia de cor o Cântico dos
cânticos, por exemplo.
Cerca
de um ano antes tinha vivido um doloroso transe, algo que mudara sua
vida. Apaixonara-se por um empregado da fazenda, um rapaz bonito mas
estranho, arredio. Coisa súbita: conviviam desde a infância, mas
sempre de forma distante até que de repente surgiu aquela coisa,
aquele repentino, inexplicável arrebatamento, já não pensava em
outra coisa, só queria vê-lo, estar junto dele. E aí a dúvida:
falar-lhe de seus sentimentos? Diferente de outros, o rapaz parecia
mirá-la com simpatia, com afeto até. Criou coragem, decidiu:
abriria o coração, contaria tudo.
No
dia em que ia fazê-lo, porém, estourou o escândalo na família: o
rapaz tivera um caso com a irmã, desvirginara-a. O fazendeiro,
furioso, mandou dar uma surra no vilão e expulsou-o.
Foi
tal o seu sofrimento — um sofrimento que não podia partilhar com
ninguém — que resolveu deixar a pequena cidade do interior onde
vivia e veio para a capital. Arranjou um emprego numa grande empresa.
O trabalho não era de todo mau e as pessoas no escritório
tratavam-na bem, mas ela não conseguia esquecer o que se passara. Ao
contrário, sentia-se cada vez pior. Deprimida, dormia mal.
Uma
entrevista que dei à tevê foi — palavras dela — verdadeira
revelação. Na terapia de vidas passadas encontraria a solução
para o seu problema. Estava segura, disse, que eu poderia ajudá-la,
guiando-a nos labirintos do passado onde se ocultava a resposta para
suas inquietações. Era grande a sua disposição, mas eu estava com
o pé atrás.
Alguma
coisa me dizia que aquela não seria uma terapia comum, que eu pisava
terreno minado. Mas começamos, de qualquer maneira, e logo ela
estava regredindo no tempo até chegar, em suas visões, ao palácio
que vira em sonhos e que era o palácio do rei Salomão (o que,
aliás, para mim foi um problema — eu conhecia pouco a Bíblia,
tive de estudar o assunto às pressas). Ali estava como uma das
muitas esposas do monarca, que descrevia como um homem bonito,
encantador; estava profundamente apaixonada por ele. Verdade que essa
paixão não era correspondida, mas isso não a impedia de fantasiar
cenas tórridas no leito de Salomão, cenas que descrevia em
titilantes detalhes.
Logo
descobri que atrás disso ocultava-se um propósito: ela estava
apaixonada por mim; a mim dirigiam-se tais descrições. Uma vez
tentou até abraçar-me. Delicada mas firmemente contive-a,
explicando que aquilo na verdade era engano, que ela estava
confundindo presente e passado.
Ter
um caso com uma paciente seria arriscado para mim, era a última
coisa que eu queria.
Mas
o problema não era esse. O problema era que suas histórias me
perturbavam. Surpreendi-me mais de uma vez a espiar os seios que
apareciam pela blusa entreaberta. Seios pequenos, lindos, duas
harmoniosas elevações. Pelo vale entre aqueles seios queria eu
andar; queria subir por eles, lamber aqueles mamilos... O que me
deixou alarmado, confuso. Ela, por incrível que possa parecer, nada
notava.
Conformara-se
com minha recusa; além disso suas energias estavam concentradas
naquela furiosa caça a seu amado Salomão. Eu não tinha coragem de
lhe dizer, vamos parar com esta punheta, você está aqui e eu
também, o que interessa é o presente, se você quer fazer amor
vamos fazer amor agora. Depois de cada sessão ela se despedia de mim
cordialmente e se ia, sem que nada acontecesse. E eu? Eu me trancava
no banheiro e me masturbava. Como um adolescente cabaçudo.
Minha
ansiedade cresceu ainda mais quando a secretária contou que um homem
viera procurá-la na clínica, depois de ter estado na loja. Pela
descrição que fez, não tive dúvida: tratava-se do ex-empregado da
fazenda do pai, certamente disposto a corrigir seu erro e a pegar a
filha certa. O que estava longe de ser uma boa notícia. Entre o rei
Salomão e o empregado agora transformado em conquistador minhas
possibilidades tornavam-se escassas. Eu precisava me apressar. Não
só lutava para recuar no tempo, lutava contra o próprio tempo. A
minha angústia manifestava-se nos sonhos: neles eu era Salomão, mas
quem estava no meu leito não era a minha paciente, era a rainha de
Sabá, que viera de longe para me visitar e a quem eu tinha de
proporcionar assessoria política e sexual. Ou seja: eu trepava com
uma mulher pensando em outra.
Desses
sonhos, acordava banhado em suor. E decidi: tinha de lhe confessar o
meu amor. De imediato. Aquela coisa de vidas passadas estava
terminando comigo. Porém, como fazê-lo? Como voltar atrás, depois
que eu a tinha repelido? Uma manhã telefonou avisando à secretária
que não viria à consulta.
Deixou
um recado, porém: que eu fosse à tarde a seu apartamento. Uma
surpresa lá me aguardaria.
Surpresa?
Deus, que surpresa poderia ser aquela? O que encontraria eu, quando
aquela porta — a porta do destino — se abrisse? Estaria ela ali,
num negligée preto, os lindos seios palpitando por mim? Teria
chegado, enfim, o grande momento? Não passavam, as horas, naquela
tarde. Os pacientes falavam, falavam, uma mulher sendo decapitada em
plena Revolução Francesa, um homem singrando os mares numa
caravela, uma senhora de idade lutando na Guerra Civil americana —
eu nada escutava. Olhava o relógio. Às quatro da tarde não
aguentei mais: anunciei à secretária que as consultas estavam
suspensas e corri para o apartamento dela, a alguns quarteirões
dali. Ao dobrar a esquina da rua, meu coração quase parou.
Ela
vinha saindo do prédio de apartamentos abraçada a um homem, os dois
rindo, felizes. Eu não conhecia o cara, mas nem por um momento tive
dúvidas: era o antigo empregado do pai. Carregava uma mala, dela,
seguramente. Embarcaram num táxi e se foram.
Entrei
no prédio, tomei o elevador, fui até o apartamento que ela
partilhava com uma colega de trabalho. Foi essa moça quem me abriu a
porta. Perguntou se eu era o terapeuta e, diante de minha afirmativa,
anunciou que tinha algo para mim. É da sua ex-paciente, disse, ela
foi embora, não volta mais, mas deixou isto aqui.
Entregou-me
uma carta e uma pasta de cartolina. A carta, escrita apressadamente,
era de despedida — e de agradecimento: a sábia ajuda que eu lhe
tinha dado conduzira-a a um resultado até certo ponto surpreendente.
A raiva que sentia pelo rapaz que a trocara pela irmã desfizera-se
por completo e o antigo amor renascera: ele era o seu rei, o monarca
com quem sonhara.
Quanto
à pasta de cartolina, continha a história que havia escrito baseada
em sua viagem ao passado. Dedicava-a a mim; eu estava autorizado a
fazer com a narrativa o que desejasse. Desde que não mencionasse seu
nome, poderia, inclusive, divulgá-la.
Moacyr Scliar, in A Mulher que escreveu a Bíblia
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