quinta-feira, 28 de abril de 2022

A morte de Artemio Cruz


Desperto... Desperta-me o contato desse objeto frio com o membro. Não sabia que, às vezes, pode-se urinar involuntariamente. Permaneço com os olhos fechados. Não escuto as vozes mais próximas. Se abrir os olhos, poderei escutá-las?... Mas as pálpebras pesam-me: dois chumbos; cobre na língua, martelos no ouvido, algo... algo como prata oxidada na respiração. Tudo isto metálico. Outra vez mineral. Urino sem saber. Talvez — estive inconsciente, lembro com um sobressalto —, durante essas horas, tenha comido sem saber. Pois mal clareava quando estiquei a mão e joguei — também sem querer — o telefone ao chão e permaneci de costas sobre o leito, com meus braços pendendo no ar; um formigar pelas veias do pulso. Agora desperto, mas não quero abrir os olhos. Embora não queira, algo brilha com insistência perto de meu rosto. Algo que se reproduz por trás de minhas pálpebras cerradas numa fuga de luzes negras e círculos azuis. Contraio os músculos do rosto, abro o olho direito e vejo-o refletido nas incrustações de vidro de uma bolsa de mulher. Sou isto. Sou isto. Sou este velho com as feições partidas pelos pedaços desiguais de vidro. Sou este olho. Sou este olho. Sou este olho sulcado pelas raízes de uma cólera acumulada, velha, esquecida, sempre atual. Sou este olho volumoso e verde entre as pálpebras. Pálpebras. Pálpebras. Pálpebras gordurosas. Sou este nariz. Este nariz. Quebrado. De amplas narinas. Sou estas faces. Faces. Onde nasce a barba grisalha. Nasce. Cara. Cara. Cara. Sou esta cara que nada tem a ver com a velhice ou a dor. Cara. Com os dentes enegrecidos pelo fumo. Fumo. Fumo. A exalação de minha respiração embacia os vidros e uma mão retira a bolsa do criado-mudo.
Olhe, doutor, está fingindo...
Sr. Cruz...
Até na hora da morte tinha que nos enganar! Não quero falar. Tenho a boca cheia de centavos velhos. Desse sabor. Mas abro um pouco os olhos e por entre os cílios distingo as duas mulheres, o médico que tem cheiro de coisas assépticas; de suas mãos suadas, que agora, sob o pijama, apalpam o meu peito, sobe um espasmo de álcool retificado. Trato de retirar essa mão.
Vamos, Sr. Cruz, vamos...
Não, não, não vou separar os lábios: ou essa linha enrugada, sem lábios, no reflexo do vidro. Conservarei os braços estendidos sobre os lençóis. As cobertas chegam até o ventre. O estômago... ah... E as pernas permanecem abertas, com esse artefato frio entre as coxas. E o peito continua adormecido, com o mesmo formigar surdo que sinto... que... que sentia quando passava muito tempo sentado num cinema. Má circulação, na certa. Nada mais. Nada mais. Nada grave. Nada mais grave. Deve-se pensar no corpo. Cansa pensar no corpo. No próprio corpo. No corpo inteiro. Cansa. Não se pensa. Pronto. Penso, testemunho. Sou, corpo. Fica. Vai-se... vai-se... dissolve-se nesta fuga de nervos e escamas, de células e glóbulos dispersos. Meu corpo, em que este médico mete seus dedos. Medo. Sinto medo de pensar em meu próprio corpo. E o rosto? Teresa retirou a bolsa que o refletia. Tento recordá-lo no reflexo; era um rosto estilhaçado em vidros sem simetria, com o olho muito perto da orelha e muito longe de seu par, com a cara distribuída por três espelhos circulantes. Corre-me suor pela testa. Fecho os olhos outra vez e peço, peço que me sejam devolvidos meu rosto e meu corpo. Peço, mas sinto essa mão que me acaricia e gostaria de livrar-me de seu tato, mas faltam-me forças.
Estás melhor?
Não a vejo. Não vejo Catalina. Vejo mais longe. Teresa está sentada na poltrona. Segura um jornal aberto. Meu jornal. É Teresa, mas seu rosto está escondido atrás das folhas abertas.
Abram a janela.
Não, não. Podes resfriar-te e complicar tudo.
Deixa, mamãe. Não vês que está fingindo?
Ah. Aspiro esse incenso. Ah. Os murmúrios na porta. Chega com esse cheiro de incenso e vestes negras, com o hissope à frente, para despedir-me com todo o rigor de uma advertência. Ah! caíram na armadilha.
Padilla não chegou?
Sim. Está lá fora.
Manda-o entrar.
Mas...
Manda Padilla entrar antes.
Ah, Padilla, aproxima-te. Trouxeste o gravador? Se sabes o que te convém, trouxeste-o aqui como o levavas todas as noites à minha casa em Coyoacán. Hoje, mais que nunca, quererás dar-me a impressão de que tudo segue normalmente. Não perturbes os ritos, Padilla. Ah sim, aproxima-te. Elas não querem.
Aproxima-te, filha, para que te reconheça. Dize teu nome.
Sou... sou Gloria.
Se ao menos pudesse distinguir melhor teu rosto. Se ao menos distinguisse melhor tua expressão. Deves perceber este cheiro de escamas mortas; deves olhar este peito arruinado, esta barba grisalha e em desordem, este fluido incontido do nariz, estes... Afastam-na de mim. O médico toma-me o pulso.
Devo conferenciar com meus colegas.
Catalina roça-me a mão com a sua. Que carícia inútil. Não a vejo bem, mas tento fixar meu olhar no seu. Retenho-a. Pego sua mão gelada.
Essa manhã esperava-o com alegria. Cruzamos o rio a cavalo.
O quê? Não fales. Não te canses. Não entendo.
Gostaria de voltar ali, Catalina. Que inútil.
Sim: o padre estava junto a mim. Murmura suas palavras. Padilla liga o gravador. Escuto minha voz, minhas palavras. Ai, com um grito. Ai, grito. Ai, sobrevivi. São dois médicos que aparecem na porta. Sobrevivi. Regina, está doendo, está doendo. Regina, sinto que está doendo. Regina. Soldado. Abracem-me; está doendo. Cravaram-me um punhal comprido e frio no estômago; há alguém, há outro que me cravou um aço nas entranhas: aspiro este incenso e estou cansado. Deixo que o façam. Que me levantem pesadamente, enquanto gemo. Não lhes devo a vida. Não posso, não posso, não escolhi, a dor dobra-me a cintura, toco os meus pés gelados, não quero essas unhas azuis, minhas novas unhas azuis, aaaa aaaai, sobrevivi: que fiz ontem?; se penso no que fiz ontem não pensarei mais no que está acontecendo. Esse é um pensamento claro. Muito claro. Pensa ontem. Não estás tão louco; não sofres tanto; pudeste pensar isso. Ontem ontem ontem. Ontem Artemio Cruz voou de Hermosillo à Cidade do México. Sim. Ontem Artemio Cruz... Antes de ficar doente, ontem Artemio Cruz... Não, não ficou doente. Ontem Artemio Cruz estava em seu escritório e se sentiu muito doente. Ontem não. Esta manhã. Artemio Cruz. Não, doente, não. Não, Artemio Cruz, não. Outro. Num espelho colocado em frente à cama do doente. O outro. Artemio Cruz. Seu gêmeo. Artemio Cruz está doente: não vive; não, vive. Artemio Cruz viveu. Viveu durante alguns anos ... Não tem saudade de anos: anos não não. Viveu durante alguns dias. Seu gêmeo. Artemio Cruz. Seu duplo. Ontem Artemio Cruz, o que só viveu alguns dias antes de morrer, ontem Artemio Cruz... que sou eu... e é outro ... ontem...
Tu, ontem, fizeste o mesmo de todos os dias. Não sabes se vale a pena recordá-lo. Só quererias recordar, recostado ali, na penumbra de teu interior, o que vai suceder: não queres prever o que já sucedeu. Em tua penumbra, os olhos olham para a frente; não sabem adivinhar o passado. Sim; ontem voarás de Hermosillo, ontem, 9 de abril de 1959, no voo regular da Companhia Mexicana de Aviação que sairá da capital de Sonora, onde fará um calor infernal, às nove e cinquenta e cinco da manhã e chegará a México, DF, às dezesseis e trinta em ponto. Da poltrona do quadrimotor verás uma cidade plana e cinzenta, um cinturão de adobe e telhados de folhas de metal. A aeromoça oferecer-te-á uma goma de mascar embrulhada em celofane — lembrarás isso em particular, pois será (deve ser, não penses tudo no futuro, desde agora) uma moça muito bonita e sempre terás bom olho para isso, embora tua idade te condene mais a imaginar as coisas que a fazê-las (usas mal as palavras: claro, nunca te sentirás condenado a isso, embora só possas imaginá-lo): o anúncio luminoso — No smoking, fasten seat belts — se acenderá no momento em que o avião, ao entrar no vale do México, descer abruptamente, como se perdesse o poder de se manter no ar fino e, em seguida, inclinar-se-á para a direita, e cairão malas, bolsas e maletas, levantar-se-á um grito comum, entrecortado por um soluço baixo e as chamas começarão a crepitar até que pare o quarto motor, na asa direita, e todos continuem gritando e só tu te mantenhas sereno, imóvel, mascando tua goma e observando as pernas da aeromoça que correrá pelo corredor tranquilizando os passageiros. Funcionará o sistema interno com que o motor combate o fogo e o avião aterrissará sem dificuldade, mas ninguém terá percebido que só tu, um velho de setenta e um anos, mantiveste a compostura. Sentir-te-ás orgulhoso de ti mesmo, sem demonstrá-lo. Pensarás que fizeste tantas coisas covardes, que a coragem é fácil para ti. Sorrirás e dir-te-ás que não, não, não é um paradoxo: é a verdade e, talvez, até uma verdade geral. Terás feito de automóvel a viagem a Sonora — um Volvo 1959, placas DF 712 — porque algumas personagens do governo teriam pensado em se fazer de duros e deverias percorrer todo esse caminho a fim de assegurar a lealdade dessa cadeia de funcionários que compraste — compraste, sim, não te enganarás com tuas palavras sobre aniversários: eu os convencerei, persuadirei: não, comprarás — para que cobrem tributos — outra palavra feia — dos transportadores de pescado entre Sonora, Sinaloa e o Distrito Federal: darás dez por cento aos inspetores e o pescado chegará à cidade encarecido por essa cadeia de intermediários, e receberás um lucro vinte vezes superior ao valor original do produto. Empenhar-te-ás em recordá-lo e cumprirás teu desejo, embora tudo isso te pareça matéria de uma nota em teu jornal e penses que, na realidade, perdes tempo ao recordá-lo. Mas insistirás, seguirás em frente. Insistirás. Gostarias de recordar outras coisas, mas, sobretudo, gostarias de esquecer o estado em que te encontras. Desculpar-te-ás. Não te encontras. Encontrar-te-ás. Serás trazido desmaiado para tua casa; cairás em teu escritório; virá o doutor e dirá que será necessário esperar algumas horas para dar o diagnóstico. Virão outros médicos. Não saberão nada, não entenderão nada. Pronunciarão palavras difíceis. E quererás imaginar-te. Como um odre vazio e enrugado. Teu queixo tremerá, tua boca cheirará mal, tuas axilas cheirarão mal, federas todo entre as pernas. Ficarás estirado ali, sem tomar banho, sem fazer a barba: serás um depósito de suores, nervos irritados e funções fisiológicas inconscientes. Mas insistirás em recordar o que acontecerá ontem. Transportar-te-ás do aeroporto para teu escritório e percorrerás uma cidade impregnada de gases lacrimogêneos, pois a polícia acabará de dissolver essa manifestação na Plaza dei Caballito. Estudarás com teu redator-chefe as manchetes da primeira página, os editoriais e as caricaturas, e sentir-te-ás satisfeito. Receberás a visita de teu sócio americano, far-lhe-ás ver os perigos desses impropriamente chamados movimentos de depuração sindical. Depois, entrará em teu escritório o teu administrador, Padilla, e dir-te-á que os índios andam agitando, e tu, através de Padilla, mandarás dizer ao comissário local que os corrija, pois é pago para isso. Trabalharás muito ontem de manhã. Estará vendo-te o representante desse dirigente latino-americano e obterás aumento de subsídio para teu periódico. Chamarás a cronista social e ordenarás que ponha em sua coluna uma calúnia sobre esse Couto que te está guerreando nos negócios de Sonora. Farás tantas coisas! E depois te sentarás com Padilla, a contar teus bens. Isso te divertirá muito. Toda uma parede de teu escritório estará coberta com esse quadro que indica a extensão de e as relações entre os negócios manejados: o jornal, as inversões em bens de raiz — México, Puebla, Guadalajara, Monterrey, Culiacán, Hermosillo, Guaymas, Acapulco —, os depósitos de enxofre em Jáltipan, as minas em Hidalgo, as concessões madeireiras em Tarahumara, a participação na cadeia de hotéis, a fábrica de tubos, o comércio de pescado, as companhias de investimentos, a rede de operações na Bolsa, as representações legais de companhias norte-americanas, a administração do empréstimo ferroviário, os postos de conselheiro em instituições creditícias, as ações de empresas estrangeiras — corantes, aço, detergentes —- e um dado que não aparece no quadro: quinze milhões de dólares depositados em bancos de Zurique, Londres e Nova York. Acenderás um cigarro, apesar das advertências do médico, e contarás novamente a Padilla as etapas que integram essa riqueza. Empréstimos a curto prazo e altos juros aos camponeses do Estado de Puebla, ao acabar a Revolução; aquisição de terrenos próximos à cidade de Puebla, prevendo seu crescimento; graças a uma amistosa intervenção do então presidente, terrenos para loteamentos na Cidade do México; compra do diário metropolitano; aquisição de ações mineiras e criação de empresas mistas mexicano-americanas, em que figuraste como testa de ferro para cumprir a lei; homem de confiança dos investidores americanos; intermediário entre Chicago, Nova York e o governo do México; manejo da Bolsa de Valores para elevá-los, depreciá-los, vender, comprar, conforme gosto e lucro; prosperidade e consolidação definitivas com o Presidente Alemán: aquisição de terrenos rurais arrebatados aos camponeses para projetar novos loteamentos em cidades do interior, concessões de exploração madeireira. Sim — suspirarás e pedirás um fósforo a Padilla —, vinte anos de confiança, de paz social, de colaboração de classes; vinte anos de progresso, desde a demagogia de Lázaro Cárdenas, vinte anos de proteção aos interesses de empresa, de líderes submissos, de greves dominadas. E então porás as mãos no ventre e tua cabeça de cabelos crespos, de tez azeitonada, baterá secamente sobre o vidro da mesa, e outra vez, agora tão perto, verás essa imagem de teu gêmeo doente, enquanto todos os ruídos fogem, rindo, para fora da tua cabeça e o suor de toda essa gente rodear-te-á, a carne de toda essa gente sufocar-te-á, far-te-á perder o conhecimento. O gêmeo refletido incorporar-se-á ao outro, que és tu, ao velho de setenta e um anos que jazerá, inconsciente, entre a cadeira giratória e a grande escrivaninha de aço: e estarás aqui e não saberás quais dados passarão para tua biografia e quais serão calados, escondidos. Não saberás. São dados vulgares e não serás o primeiro nem o único com semelhante folha de serviços. Conseguiste prazer. Já terás recordado isso. Mas recordarás outras coisas, outros dias, terás que os recordar. São dias que, distantes, próximos, lançados no esquecimento, rotulados pela lembrança — encontro e desencontro, amor fugaz, liberdade, rancor, fracasso, vontade —, foram e serão algo mais que os nomes que lhes possas dar: dias em que teu destino te perseguirá com faro de cão lebréu, te encontrará, te cobrará, te encarnará com palavras e atos, matéria complexa, opaca, adiposa, entrelaçada para sempre com a outra, a impalpável, a de teu ânimo absorvido pela matéria: gosto de marmelo fresco, ambição de unhas que crescem, tédio da calvície progressiva, melancolia do sol e do deserto, abulia dos pratos sujos, distração dos rios tropicais, medo dos sabres e da pólvora, perda das planícies frescas, juventude dos cavalos negros, velhice da praia abandonada, encontro do envelope com o selo estrangeiro, repugnância ao incenso, enfermidade da nicotina, dor da terra vermelha, ternura do pátio à tarde, espírito de todos os objetos, matéria de todas as almas: corte de tua memória, que separa as duas metades; soldadura da vida, que volta a uni-las, dissolvê-las, persegui-las, encontrá-las: a fruta tem duas metades; hoje voltarão a se unir; recordarás a metade que deixaste para trás: o destino te encontrará; bocejarás: não se deve recordar; bocejarás: as coisas e seus sentimentos foram se desfazendo, caíram rompidos pelo caminho; ali, lá atrás, havia um jardim: se pudesses voltar a ele, se pudesses encontrá-lo outra vez, no fim; bocejarás: não mudaste de lugar; bocejarás: estás sobre a terra do jardim, mas os ramos pálidos negam as frutas, o leito seco nega as águas; bocejarás: os dias serão diferentes, idênticos, próximos, atuais; logo esquecerão a necessidade, a urgência, o assombro; bocejarás: abrirás os olhos e as verás ali, a teu lado, com essa falsa solicitude; murmurarás seus nomes: Catalina, Teresa: não deixarão de dissimular esse sentimento de falsidade e violação, de desaprovação irritada, que por necessidade deverá transformar-se, agora, em aparência de preocupação, afeto, dor: a máscara da solicitude será o primeiro sinal dessa mudança que tua enfermidade, teu aspecto, a decência, o olhar alheio, o costume herdado, impor-lhes-á; bocejarás: fecharás os olhos; bocejarás; tu, Artemio Cruz, ele: acreditarás em teus dias, com os olhos fechados!

Carlos Fuentes, in A Morte de Artemio Cruz

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