Toda
a gente sabe que a plumagem das corujas é macia e mole e por isso o
seu voo é silencioso. Inexplicavelmente, as penas reais de Sofia são
rijas e o seu voo perfeitamente audível, percebendo-se o rangido, o
atrito das asas fortes, denunciando aproximação da caçadora.
Sofia
é uma coruja no esplendor da força, quatro anos de experiência de
golpes e recursos individuais. Sabe calcular os terrenos onde a caça
passará porque sendo de boa raça preadora não come carne morta.
Precisa de bicho vivo, palpitante de sangue, estrebuchante sob suas
garras que o imobilizam para fácil alvo às bicadas, golpeantes e
certeiras.
Sobrevoou
o quintal vizinho, reconhecido pelo perfil do moinho de vento
quebrado. Depois há o pomar que o esquadrão de Quirá elegeu para o
assalto. Voou manso até o último cajueiro e pousou, leve, no galho
sombrio. Abriu a frincha das pupilas telescópicas, absorvendo a luz
difusa, identificando o local em todas as minudências.
Da
terra úmida pelo orvalho evaporado subia o murmúrio confuso de
todas as vozes surdas dos animais em batalha pela vida, rastejando,
escorregando, pateando no nível do solo. Das árvores derramava-se o
rumor vivo de asas, pios, bufidos, estalidos, apelos, réplicas,
guinchos de aviso, de informação, pedidos de auxílio e de socorro.
Nos ares, as sombras rápidas perpassavam, continuando a mútua
perseguição, lutando pela sobrevivência – o amor e o alimento –,
vitais ambos.
Os
morcegos foram descobertos pelo ruído de guizo ao longe. E também
pela virada curva para descer, pertinho dos frutos escuros, e ali
ficar, parados, sugando a polpa depois de abrir, com impecável
roedura, o sulco reçumador do sumo adocicado.
Somente
nos momentos da chegada, quando Quiró fletisse a asa, quase
dobrando-a para baixar, é que seria possível um golpe fulminante.
O
segundo esquadrão apareceu em seguida e durante um minuto as curvas
ganharam maior amplitude. Evitavam possivelmente as urtigas
trepadeiras que cobriam alguns arbustos vizinhos ao sapotizal. A
urtiga é para as asas membranosas dos morcegos uma bateria de fogo
antiaéreo de eficiência mortal.
Quiró
roçou o galho onde Sofia o espreitava, imóvel. Rápida, a coruja
lançou-se no voo de caça, cortando o círculo descrito pelo
morcego. Contava encontrá-lo no ar num esbarro funesto.
Quiró
empregou a velha técnica escapatória. Semifechando as asas caiu na
vertical, em curva descendente que mais seria espiral. A prontidão
da manobra não permitiu a Sofia acompanhá-lo naquela solução
imprevista. Estendeu ainda mais as asas, pairando, em escuta,
perscrutando o paradeiro de Quiró. O morcego subia em zigue-zagues,
curvas fechadas, rumo ao sapotizal próximo. Sofia arremessou-se como
uma pedrada, batendo forte as asas três e quatro vezes, paralela a
Quiró. Calculando que este passaria justamente na linha inferior à
sua trajetória, fechou-as e deixou-se cair, numa vertical atrevida.
Quiró, não podendo repetir a descida, mergulhou num parafuso, uma
das asas quase cerrada e assim, num voo e queda, furou a sombra dos
sapotizeiros onde Sofia não podia fixá-lo nem persegui-lo. Restou à
coruja sacudir as asas moles e reganhar o cajueiro, resignada e
faminta.
Só
então enxergou, arrastando uma sapota marrom, o velho Gô, guabiru
de um palmo avantajado, lerdo, cínico, ladrão de todas as coisas
comíveis. A luz esmaecida das estrelas projetava na pista de areia a
sombra robusta e negra do grande rato feroz, aferrado ao jantar que
disputara a Quiró, insaciável e chiante, autoconvencido de ser
proprietário do sapotizal. A rixa entre ratos e corujas vem de longe
e as duas partes mantêm a animosidade em estado latente e mesmo
funcional. La Fontaine contou o caso dos souris e do chat-huant.
A luta prossegue com os morcegos porque são chauve-souris e a
coruja continua, mesmo em português, um chat-huant. Assim,
ratos e gatos, morcegos e corujas representam intrigas implacáveis
mesmo quando as asas intervêm para torná-las supremas e cruéis.
Sofia
precipitou-se sem perder a majestade da compostura clássica. Desceu
quase em cima de Gô que apenas lançou um guincho agudo e breve ao
sentir as patas aduncas fincarem-se-lhe no dorso peludo, arrancando-o
do solo e erguendo-o, balançado na rapidez do regresso. Tentou
voltar o focinho longo e usar os dentes de serra, mordendo as unhas
de Sofia. Mas esta bicou-o forte no pescoço e Gô percebeu ter
chegado ao fim das aventuras terrenas. Não desanimou porque sabia
que a coruja não dilacera a presa no ar e precisa pousar para
saciar-se, sabiamente. Gô recorreu ao remédio velho de fazer-se
mais pesado e sacudir-se violentamente, agitando as patas e
guinchando alto. A sombra do cajueiro avançava e Sofia não bicorou
o guabiru como devia, adormecendo-lhe a resistência mas sem matá-lo,
porque notou Suinara, a coruja de igreja, rangindo as clavículas em
sua direção. O brilho verde dos olhos fosforescentes pregoava sua
fome e ânsia da batalha pela posse de Gô. Ia bater-se e depois
reapanhar o guabiru ferido que deixaria cair no capinzal. Preferiu
descer e o fez logo. Suinara, arrastada pelo ímpeto, passou adiante,
com um pio de decepção. Mas descreveu uma curva fechada e voltou
procurando Sofia, tentando feri-la no encontro da asa direita. Sofia
então largou Gô e reagiu abrindo o bico e soltando o piado rouco,
anúncio de ódio total. Acertou Suinara no peito acolchoado e duas
penas voaram, além da terceira que ficou na curva do bico de Sofia.
Suinara, perdido o botim, desinteressou-se pelo duelo sem prêmio.
Largou um bufo estertórico e baixou para caçar a ratazana cobiçada.
Sofia chegou primeiro ao chão e andou, com seu passo oscilante e
pendular de marinheiro, preferindo os arredores, abrindo os grandes
olhos luminosos. Suinara não mais disputou a presa mas partiu
perseguindo Quiró retardatário.
Gô
desaparecera definitivamente e Sofia retomou o voo para a caçada
noturna. Não passou fome porque um Quiró caiu-lhe nas garras e bico
antes que atingisse o cajueiro. Pôde então cear, desfazendo o
morcego das asas tépidas, arrancando-lhe a carne vermelha do tórax
e da barriga, triturando os ossos delicados com vagar e sabor.
Apanhou o segundo quase em seguida porque este aventurou-se, tentando
encurtar caminho para o sapotizal, a atravessar a copa do cajueiro
onde a coruja iniciava a digestão tranquila. Pode juntar à lista um
rato-do-campo, um hesperórnis de rabo comprido e fuça curtinha,
enfeitada de espalhada bigodeira. Respeitou-lhe a cabeça
naturalmente para não prejudicar a identificação ulterior. Do
cajueiro acolhedor voou, pesada e serena, para a parede da
casa-grande arruinada. Perseguiu inutilmente outro rato-do-campo, que
fugiu, dando guinchos como ensinando a pista ao adversário
desnorteado.
Mas
estas coisas levam tempo para realizar-se. O vento manso da noite
esfriara e as estrelas luziam palpitantes, ouvindo os galos que
despediam as almas do outro mundo com a clarinada irresistível.
Precisou limpar-se devagar no peito e nas ombreiras, passando o
cuidadoso bico para expulsar os fragmentos da refeição.
Gô
estava justamente dentro duma moita de capim barba-de-bode, junto ao
muro da casa-grande. Viu perfeitamente o voo de Sofia e a manobra
frustrada para conquistar o rato-do-campo, fujão e feliz. Só o
pescoço o incomodaria porque Gô não faz confidência sobre a
extensão do seu amor-próprio ferido. Certo é que não mais
sangrava o vestígio das garras de Sofia e apenas o pelo mostrava,
arrepiado, falho, com sangue seco, a força da coruja e a ventura do
guabiru alforriado da morte.
Andou
lento-lento, de touça em touça, farejando inquieto, arrastando a
cauda com precaução e temor. Veio vindo, teimoso, escondendo-se,
demorando-se nas sombras mais espessas, achatando-se quando ouvia o
ranger dos remígios das grandes aves de presa; ficando imóvel como
se posasse para um friso, esperando, paciente, que o silêncio
voltasse; inflexível no rumo embora com duzentas voltas,
reviravoltas, rodeios, atalhos, corridinhas nervosas, passos
retardados de acompanhar andor, marchas retas, oblíquas, em diagonal
ou perpendicular ao eixo da estrada, em labirinto, indo como se
deliberasse chegar em primeiro lugar numa disputa olímpica,
desinteressado e lerdo mas sem deixar de mover-se no mesmo quadrante
sul, com uma obstinação heroica de persistir ao encontro dos
possíveis inimigos, incapaz de renunciar o destino da missão
misteriosa e terrível que o impelia para os lugares cruéis do seu
principiado suplício. Vencedor do medo e a defesa pessoal, Gô andou
perto do cajueiro, noite adentro, até encontrar a sapota bem grande
e sumarenta que arrastava quando Sofia o atacou. Segurou-a nos dentes
e foi embora, feliz.
Licosa
é que estava de mau humor por causa do grilo tenor. Aquele canto
persistente fornecia à caranguejeira a coordenada geográfica do
ortóptero saltador. Lançou as oito pernas peludas e macias guiadas
pelos palpos adejantes no rumo do grilo cantador. Era apenas subir
para o estrado dos últimos tijolos, quase na telha final. Licosa
ascendeu, silenciosa, menos guiada pelo som que tão pouco entende do
que pela visão confusa do animal, destacado no topo do castelo
tijoleiro. Mas precisou fazer uma volta prudente, evitando Titius que
andava caçando também e aceitaria uma batalha rápida entre tenazes
e quelíceras inexoráveis, para pôr-se em forma combativa. O pior é
que o grilo pressentiu-a e continuou no desafio como se Licosa não
existisse. Emitiu algumas notas altas e de efeito e depois dobrou as
patas dianteiras, curvando as traseiras no dobro do tamanho e,
bruscamente, atirou-se para cima como se o projetasse uma catapulta.
Foi cair dez metros adiante, no chão, depois do tanque, de onde
repetiu a façanha atlética até a calçada da cozinha abandonada.
Aí sacudiu o canto, acordando quem dormia e exasperando Licosa que
encontrara apenas o canto limpo onde o grilo estivera. Virou-se,
quadrada e mecânica como um carro de guerra, e reiniciou a descida
pelo outro lado. Só então deparou com uma barata grossa, abaulada e
vagarosa, de asas duras que lhe forneceu a contragosto o primeiro
alimento da noite. A filha de Blata sumiu envolvida nas suas patas
felpudas e cruéis. Um gafanhoto verde-lodo, fino mas gostoso,
serviu-lhe de sobremesa. Ergueu, rápida, as patas dianteiras,
agitando as antenas como antecipando o embate. Recuou, dando caminho
e pista à Raca que passou, ondulante, sinistra, para cumprir missão
que só ela sabia onde se encontrava.
Titius
tivera a ventura inesperada de deparar com uma coluna de baratas que
sugavam um resto de mamão podre. Segurou duas com as pinças e pode
repetir o prato porque as baratas, fujonas do primeiro medo,
voltaram, tranquilas, à degustação da fruta tão cara para elas.
O
sapo ouro e negro jantara uma colônia de mosquitos que festejavam o
descobrimento do tanque, novidade para eles. Não apreciou totalmente
o repasto porque deglutiu um besouro escuro e esse ferrou-o na língua
grossa, obrigando-o a restituí-lo, úmido e pegajento, à vida
terrena. O besouro enxugava-se quando Titius apareceu e incluiu-o no
seu cardápio.
O
grilo silenciava, roendo madeira velha, molhada de orvalho e
oferecendo-se à sobremesa das sementes verdes e talos tenros. Não
conseguiu avistar-se com a namorada nem havia tempo útil para
procurá-la além do canto de muro. Com dois saltos magistrais voltou
para perto de casa mas entreteve-se saboreando uma vergôntea de
melão-bravo.
Bidu,
o galo vizinho, anunciava a madrugada pela segunda vez. Titius voltou
para seu apartamento, encolhendo as patas, dobrando as pinças,
tranquilo para o resto das horas lentas.
Cumprindo
instruções milenárias, as servas de Ata carregavam as sobras dos
banquetes, os talos verdes, os brotos úmidos, seguindo em fila a um
de fundo, disciplinadas, mergulhando na bocarra do formigueiro
materno, levando os despojos que haviam custado os combates alheios e
os riscos dos outros animais. Era como uma porcentagem devida ao
trabalho eterno daquelas obreiras inúteis no egoísmo de um esforço
votado ao próprio e único benefício. Nem qualquer outro animal
aproveitaria o resto que as saúvas transportavam para o seu mundo
escuro e sedutor. Durante toda a noite, a tarefa continuou sem pausa
como um abastecimento indispensável de navio para viagem sem fim.
Raca
só voltou mais tarde, saciada de ratos novos. Acabara com um ninho
inteiro, enrodilhado e confuso dentro dum agasalho de jornais
rasgados, junto à parede da cozinha. Devia ser ninhada de parentes
de Musi, hóspedes confiados nos gabos da tranquilidade do refúgio.
Os moradores sabiam da presença de Raca naquele verão e nenhum
tentaria dormir ao alcance de sua fome. Inexperiência da mocidade
ratoína.
O
sapo negro e ouro ficou olhando os pirilampos mas não conseguiu
prestar sua homenagem imediata a nenhum deles. Passaram riscando a
luz azul e breve sem deter-se. Ainda faiscaram na mangueira escura e
depois seguiram, lampejantes, para o rumo longe. Dizem que Tim, o
lagarto verde, calango vagabundo ora visitante, detivera um deles
para sempre, incorporando-o ao seu todo. Tim estava arranchado no
muro, lá em cima, justamente onde os pirilampos demoraram uns
instantes antes de voltar à sua base. Mas os pirilampos souberam
depois da morte de Tim nas garras de Sofia, numa noite de lua cheia,
clareando esconderijos como um farol indiscreto. Nesta mesma noite
Licosa perdeu uma pata e Titius bateu-se em duelo. Mas isto é outra
história...
Nem
todos os insetos e animais vários caçam a noite inteira. Têm sua
tabela de persistência e horário profissional de rendimento. Depois
de certo período, os lances perdem impetuosidade e os cálculos
falham em proporção alarmante. Caem em curva de fadiga. Sofia irá
até madrugada alta mas Suinara depois de tentativas perseguirá o
gostoso inimigo partindo do seu pouso no alto da torre de igreja ou
oco de pau mais próximo das ruas, vendo de longe as luzes porque é
uma coruja social e não tanto meditativa como Sofia, saudosa da
deusa dos olhos verdes.
Titius
e Licosa recolhem-se quando a noite esfria. Os vaga-lumes apagam a
iluminação errante nas primeiras horas do escurão.
O
pessoal de Ata, Gô, o malandro, Quiró, o sutil, as aranhas andejas
que vão procurando caça e não são proprietárias de teias em
cantos certos, morando em gretas perto do chão, debaixo da pirâmide
ou nas vizinhanças do cavalo do cão, labutam até o primeiro
listrão do amanhecer. Brinco, o gato, e Raca, abandonam o terreno
bem antes do crepúsculo matutino. A prole e parentesco de Musi
perseveram o mais possível.
Uma
outra multidão batalha até o sol empurrar as nuvens derradeiras da
treva. Parece mas não é o mesmo bando predador. Besouros,
centopeias, lacraus, baratas escuras e obstinadas, grilos puladores,
os reprovados percevejos – o verde que tem os ombros em ponta de
alfinete e o moreno de dorso abaulado – ambos de irradiante
emanação repugnante, aranhiços de pernas enormes que correm
silenciosos como plumas e enrolam as presas em fios, segurando a
vítima com as patas dianteiras e puxando os cordéis imponderáveis
e resistentes, com as traseiras; as que vêm vagarosas como horas
tristes, fazendo aproximação com o cuidado de quem não pode perder
o golpe e se precipitam de salto, imitando na escala liliputiana o
tigre-real-de-bengala ou a pantera-negra-de-java; os que lutam
lealmente opondo força à força, afrontando os riscos da furiosa
defesa; os milenarmente civilizados que injetam inércia no corpo do
adversário, levando-o, como quem conduz amigo para festa, ao recanto
onde o devorará; as turmas de insetos miúdos que furam os caules
tenros dos vegetais e mergulham a tromba sugando a seiva sem precisar
respirar ou mudar de iguaria; os que saem das folhas secas, debaixo
de pedras chatas da umidade do tanque, escapando à goela de Fu, o
sapo negro e ouro como um mandarim, atravessando tempo, guardando a
existência, defendendo-a, arrancando-a aos outros da mesma ou de
alheia espécie.
Pelas
árvores outras ondas viventes estão fervilhando, subindo e descendo
pelos galhos, imóveis nas folhas de esmeralda, grudados aos troncos,
rodeando os frutos e os brotos, roendo, chupando, triturando,
lambendo, furando, bebendo alimento.
Animais
maiores sabem destes hábitos e vão procurar os hóspedes mantidos
pelas árvores, trepadeiras e arbustos para torná-los em refeições
consumidas no sigilo, na cumplicidade da treva, vezes na
simultaneidade dos ataques em que o agressor passa a agredido,
preando e preado, na mesma fila da vítima que assaltou. Esta cadeia
palpita, pulula, escorrega, fugindo, matando, absorvendo, parando
para lutar e morrer, num ciclo de perseguição implacável, de ódio
espontâneo, de intensidade dramática. Os tipos fortes digerem o
quinhão conquistado até que um colega do mesmo porte apareça
exigindo participação nos lucros.
No
ambiente a que luzes difusas vão dando uma claridade opalescente e
translúcida, perpassam os vultos das aves de combate, seguindo como
relâmpagos os morcegos ágeis, os besouros gordos e as mariposas
lerdas. Sofia voltando para casa jamais deixou de buscar este fim de
cardápio que a regala, ortópteros e coleópteros suculentos, de
polpa fina de manjar branco saboroso, defendida pela casca estalante
e colorida como o chocolate recobre o creme.
No
solo o mesmo combate se estende convulso e sem pausa entre espécies
misteriosas e adversários clássicos. Num instante fulguram os dois
olhos deslumbrantes do velho Niti, o bacurau-mede-léguas,
pesquisador paciente das estradas, catando folhas e pedrinhas
humildes na adivinhação dos insetos preferidos, adiantando-se a
passo no andar de marujo enjoado de encontrar-se em terra firme,
batendo a estrada, trilho ou vereda de areia que o mato vai orlando,
quilômetros dentro da noite mansa. É preciso muita resignação na
espera e muita artimanha na manobra para que Niti complete o seu lote
avultado, porção indispensável de comida viva, a comida que vem
pulando ao seu encontro.
Desde
que a estrada fique visível, Niti sacode as asas largas no voo do
regresso. Não pode desmoralizar a tradição noturna de sua família,
os cuprimulgídeos do gênero Nyctibius, figurando em lendas e
superstições respeitáveis e seculares.
Duas
centopeias batem-se por causa de uma barata sem cabeça, permutando
tesouradas, coleando os corpos de ouro-cendrado numa agitação
convulsiva de patas incontáveis. A barata já morta espera na areia
a vencedora que não será uma combatente, mas um lacrau adventício
que a apanhou e seguiu sem pretender assistir ao final das justas.
Brilha
o papo prateado de uma ave que engoliu um besouro em pleno voo. Quiró
repete a façanha fazendo voos de acrobacia, parafusos de espiralado
eixo que finda pela morte do perseguido.
Ouve-se
o bulício nos frutos que amadurecem. Vão amanhecer com os vestígios
de dentadas serrilhadas, arranhões, riscos de unhas, bicos, garras,
agulhas, puas, pontadas, rasgões. Apenas a mãe-árvore permite o
assédio aos frutos legalmente amadurecidos ou madurez iniciada. Os
verdes estão guardados pelos sumos e leites causticantes,
insuportáveis e acres. Não existisse esta barreira e a frutificação
total seria impossível para o mamoeiro, sapotizeiro e goiabeira,
fáceis e substanciais.
Sofia
desceu na borda da residência mas voltou-se, sacudindo as asas,
olhando o campo de sua batalha. Depois, grave, mergulhou na toca.
Niti ganhou altura quase na vertical mas desapareceu na
horizontalidade do seu impulso, rumo do lar distante. Os saltos,
rumores, estalidos, guinchos, pios, notas de comunicação animal
apenas perceptíveis aos próprios companheiros na infrassonoridade
das vibrações baixas e teimosas, foram diminuindo, cedendo,
acalmando-se, nivelando-se num silêncio que emanava da luz nascente
e sensível da manhã longínqua.
Bidu
cantou a última vez, amiudando a saudação à alvorada, numa
aleluia estridente e jubilosa. Os outros Bidus prolongaram o canto,
atirando-o para as vozes afastadas que o sacodem, longe, para os
finais do campo e da cidade.
A
nódoa luminosa do leste se amplia no círculo que resplandece no céu
de porcelana transparente. A primeira chama rósea rasga a monocromia
dos tons cinzentos e ganha os matizes lilases, derramados na curva do
céu.
As
cores acordaram e se fazem sensíveis. Todas as coisas desaparecidas
na treva retomaram os lugares habituais. Os fantasmas dimensionais
restituíram as proporções verídicas aos valores encantados na
noite profunda. A fada Normalidade reequilibrou o verismo da
costumeira paisagem.
Brinco
passeia no fio do muro verificando se o mundo continua. Ainda não
apareceu Vênia com sua tropa concordante. Os xexéus sacodem nos
instrumentos metálicos a protofonia animadora. As tapiucabas,
vespídeos do cortejo, zumbem recomeçando a vassalagem harmoniosa.
Os
primeiros voos agitam as aragens que adormeceram nas samambaias e as
folhas oscilam, saudando a luz invasora e contínua que se derrama no
tronco do céu do amanhecer.
Quiró
agasalhou a turma buliçosa, farta de sapotis e de besouros. Sofia
deve ter adormecido. Não se fala do grilo nem dos moradores da
pirâmide sossegada. Ondulam os aromas das flores melancólicas
daquele jardim deserto. Não se vê Fu, o sapo do tanque, nem Dica, a
aranha-d’água. Surgirá esta com o sol na inspeção matinal. Fu
apresentar-se-á tarde, com a varação do crepúsculo, refeito e
apto para recomeçar.
A
chilreada caiu dos galhos baixando como uma vaga melodia de orquestra
onde os instrumentos se afinam, mas já possuem o mesmo diapasão. O
bem-te-vi gritou que bem vira alguma coisa digna de menção, voando
em espiral. Seguiu-o a lavadeira. Os xexéus. Dois canários vararam
o quintal como duas setas de ouro.
As
aranhas sedentárias verificam a cordoalha das teias. Moscas,
besouros verdes, negros, listados de rubro, varejeiras de bronze
reluzente, vibram no ar. Retine, longe, ferindo a bigorna, o
martelado da araponga. As paquinhas, grilos-toupeiras, abrem com as
patinhas incansáveis o breve túnel. Vênia deslizou na parede,
visível no lusco-fusco das trepadeiras. Cintilou numa irradiação
de joalheria o primeiro beija-flor madrugueiro.
Água
cantou, trêmula e fiel, na linha do tanque. Uma folha largou a
margem e viaja, rodando, no impulso da corrente suave. Dica passou na
lâmina rebrilhante e viva. A sombra da mangueira recortou-se em
relevo no chão de areia solta e suja. Um raio de sol transfigurou o
canto de muro. Bom dia!…