sexta-feira, 25 de março de 2022

Viúva loura

— “Viúva, vinte e um anos…”
Tadinha. A vida é isso.
— “Loura…”
Melhorou.
— “Fazendeira, rica…”
Epa, muda completamente de figura.
— “Pertencente a tradicional família mineira…”
Corta essa!
— “Recém-chegada do interior…”
Então, não custa sondar a barra.
— “Procura companhia masculina…”
Ainda bem que é masculina. Tou às ordens.
— “Que seja jovem…”
Você acha que trinta e oito anos está na pauta?
— “Bem-intencionado…”
Nunca fui outra coisa na vida.
— “De fino trato…”
Não é por me gabar, mas…
— “Conhecedor dos pontos pitorescos do Rio…”
Que é que ela entende por pontos pitorescos? Eu prefiro pontos estratégicos.
— “Para passeios e…”
Etc., lógico.
— “Futuro compromisso matrimonial…”
Corta! Corta!
É mesmo.
Aliás, eu não tenho mais trinta e oito. Tinha, semana passada.
E rica… Rica de quê? Talvez de predicados, apenas.
Poxa, até parece que você está querendo a viúva pro seu bico. Pera aí, mau-caráter.
Eu? Vê lá se eu vou nessa onda de anúncio. Tou prevenindo pra você não se grilar. Viúva mineira, loura… Se é mineira, não deve ser loura. Se é loura, é artificial. Se é artificial…
Deixa a viuvinha ser loura e mineira, deixa.
Olhe, eu conheci uma loura que, além de outros negativos, era careca.
Ora, peruca resolve.
Sei não, mas tudo isso junto — mineira, viúva, loura, vinte e um anos, rica…
Que é que tem?
É exagero. Não precisava ter tantas qualidades.
Foi uma graça de Deus.
Você não merece tanto.
Será outra graça de Deus.
Deus não deve ser assim tão desperdiçado com suas graças.
Lá vem você querendo dar instruções ao Altíssimo. Perde essa mania.
Bom, mas você não sabe que mineiro esconde milho até do monjolo?
Continua.
— “Cartas com sigilo absoluto…”
Evidente.
— “Indicações pessoais…”
Minha ficha é mais limpa do que caixa-d’água de edifício quando o síndico vai ao terraço.
— “E fotos…”
Arrgh! Só tenho 3x4, muito fajuta. Mas tiro de calção, frente, perfil e fundos.
— “Para a portaria deste jornal, sob no 019 834.”
Pera aí. Tou anotando. 019?
834.
Legal. 834 é o número do meu edifício, dezenove é pavão, que tem a perna dourada. Lê mais.
Já li tudo, ué.
Lê outra vez. Repete.
Vai decorar?
Vou gravar melhor na cuca, vou raciocinar em bloco, vou…
Se habilitar, né?
Correto.
Calma, rapaz. Sabe lá que espécie de viúva é essa?
Vou ver pra conferir.
Pode nem ser viúva.
E daí?
Diz que tem vinte e um anos, mas quem garante que não é modéstia? Às vezes tem três vezes vinte e um.
Então você admite que ela é mineira.
E que cria galinha sem ração, na base da parapsicologia?
Também sou mineiro, uai.
E nunca me confessou! Eu jurava que você fosse capixaba.
Fui. Questão de limites, minha terra passou pra banda de cá. Não espalha, sim?
Me tapeou esse tempo todo!
Esquece.
Vai ser dura a parada: mineira loura versus mineiro mascarado.
Fica em família, né?
A tradicional?
As duas. Eu na minha, ela na dela.
Agora sou eu que digo: tadinha.
Por quê? Se ela botou anúncio, quer transar. Eu transo. No figurino.
É verdade que tem muito carioca por aí, muito paulista, muito nortista, espiando maré. Talvez você chegue tarde.
Duvido. Você sabe que nessas coisas sou meio Fittipaldi. Comigo é Fórmula 1.
Mineiro contando prosa? Nunca vi isso.
Bem, mineiro é capaz de contar prosa só pra esconder que é mineiro…
Chega, amizade, você já ganhou a viuvinha com fazenda e tudo, podes crer!

Carlos Drummond de Andrade, in De Notícias e Não Notícias Faz-se A Crônica

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