Não
posso deixar a questão das macas sem fazer menção a uma injustiça
entre os marinheiros digna de desagravo.
Num
navio de guerra no mar, os marinheiros permanecem em regime de
quartos alternados; isto é, num intervalo de vinte e quatro horas,
eles entram e saem de serviço a cada quatro. Ora, o toque de tirar
as macas das trincheiras (o espaço aberto para guardá-las, que
corre sobre os balaústres da amurada) soa um pouco depois do pôr do
sol; e o toque de arrumá-las, quando o turno da manhã é chamado,
às oito horas; de modo que, durante o dia, elas permanecem
inacessíveis enquanto leito. Não haveria qualquer problema com
isso, caso os marinheiros tivessem uma noite completa de sono; porém,
noite sim, noite não, seus turnos permitem apenas quatro horas de
sono nas macas. Na verdade, deduzindo o tempo dado ao turno seguinte
para lhe render, e para você suspender a própria maca e nela subir
e dormir de fato, pode-se dizer que, noite sim, noite não, você
tem, quando muito, três horas de sono. Tendo, portanto, estado sobre
o convés por dois turnos de quatro horas, às oito da manhã é
chegado o seu turno de folga na coberta das macas, e você fica livre
de atribuições até o meio-dia. Sob tais circunstâncias, um
marinheiro mercante vai para o beliche e tira proveito de boas horas
de sono. Num navio de guerra, porém, não existe tal possibilidade;
sua maca está guardada na trincheira, e ali permanecerá até o cair
da noite.
Mas
talvez haja um canto para você nalgum lugar ao longo das baterias da
coberta dos canhões, onde possa desfrutar de aprazível cochilo.
Como não é permitido recostar-se a bombordo da coberta de canhões
(área reservada como passagem para os oficiais que seguem para seu
salão de fumantes no resbordo da proa), resta aos marinheiros apenas
a área a estibordo. No entanto, boa parte desse espaço é ocupada
por carpinteiros, veleiros, barbeiros e tanoeiros. Em suma, são tão
poucos os cantos onde se pode dormitar durante o dia numa fragata que
nem mesmo um dentre dez homens de quarto, que permaneceram oito horas
sobre o convés, tiram um cochilo que seja até a noite seguinte.
Repetidas vezes, depois de, por sorte, ter conseguido um lugar, fui
dele despejado por algum funcionário destacado para mantê-lo safo.
Nas
imediações do cabo Horn, o que fora desconfortável tornou-se de
fato uma provação. Totalmente encharcado pela surriada das águas à
noite, por vezes dormi de pé no espardeque — tremendo enquanto
dormia —, à falta de sono em minha maca.
Durante
três dias dos mais tempestuosos, foi-nos dado o privilégio da
coberta (noutras ocasiões terminantemente interditada), onde se
permitiu que estendêssemos as jaquetas e cochilássemos pela manhã
depois de oito horas de exposição noturna. Esse privilégio,
contudo, era risível. Para não falar em nossas jaquetas — usadas
como cobertor — completamente ensopadas, a surriada descia pelas
escotilhas e mantinha as tábuas do assoalho da coberta molhadas;
tivessem nos permitido pendurar as macas, teríamos balançado por
sobre a inundação. De qualquer maneira, tentamos permanecer tão
aquecidos e confortáveis quanto nos fosse possível, sobretudo nos
mantendo próximos e, na ausência do calor de uma fogueira ao lado,
produzindo um pouco de vapor. Talvez vocês já tenham visto como se
encaixotam os corpos dirigidos à ilustração das aulas de um
professor-cirurgião. Assim permanecíamos — pés e cabeças
alinhados, rostos sempre às costas, encaixados uns nos outros na
altura das coxas e dos joelhos. A umidade de nossas jaquetas, assim
densamente reunidas, logo começava a evaporar. Contudo, era como se
despejassem água quente para que não congelássemos. Era como se
estivéssemos “embalados” nos lençóis ensopados das águas
medicinais de uma casa terapêutica.
Essa
posição não podia ser preservada por um considerável período de
tempo sem uma mudança de lado. Três ou quatro vezes durante as
quatro horas que se seguiram fui despertado de meu cochilo molhado
pelo grito áspero de um sujeito que fazia as vezes de cabo na ponta
posterior de minha fileira. “Dorminhocos, atenção! Preparar para
girar!”, e, num duplo movimento, todos virávamos juntos e nos
víamos de frente para o corrimão de popa, em vez do gurupés.
Porém, por mais que você virasse, seu nariz acabava grudado às
costas vaporosas tanto de um quanto do outro, em ambos os flancos. A
mudança de odores advinda do movimento trazia-nos algum alívio.
Mas
por que razão, depois de labutar por oito tempestuosas horas no
convés, à noite, não se permite à tripulação de um navio de
guerra a humilde recompensa de um cochilo seco de quatro horas no dia
seguinte? Por quê? O comodoro e o capitão, bem como o primeiro
lugar-tenente, o capelão, o comissário de bordo e muitos outros,
todos têm a noite inteira recolhidos, como se estivessem
hospedados num hotel em terra firme. E os aspirantes a lugar-tenente
têm seus catres à disposição sempre que queiram, e mais do que
isso — como apenas um deles é exigido à frente do turno, e eles
são muitos, de modo que podem dividir entre si tal dever, tais
oficiais permanecem no convés apenas quatro a cada doze horas de
repouso. Em alguns casos, a proporção é ainda maior. Enquanto, com
o povo, são quatro horas sim, quatro horas não, continuamente.
Por
que razão, então, os marinheiros comuns têm de passar tão maus
bocados nesse quesito? Seria a coisa mais simples do mundo deixá-los
armarem suas redes para um cochilo durante o dia. Mas não; tal
procedimento seria um atentado à integridade dos acontecimentos
diários de um navio de guerra. Parece indispensável ao efeito
pitoresco do espardeque que as macas permaneçam invariavelmente
guardadas do nascer ao pôr do sol. Mas a principal razão — razão
que tem sancionado muitos abusos neste mundo — é que “não há
precedentes”. Marinheiros dormindo em suas macas durante o dia,
depois de oito horas de exposição a uma tempestade madrugada
adentro, é coisa que praticamente escapa aos registros da Marinha.
Façamos, no entanto, justiça à memória imortal de alguns
capitães: registram os autos da Marinha que, nas imediações do
cabo Horn, eles concederam macas à tripulação pela manhã. Que
Deus abençoe tais oficiais de bom coração; e que eles e seus
descendentes — em terra firme ou alto-mar — tenham um sono bom e
agradável enquanto viverem, e uma sesta jamais sonhada quando
morrerem.
É
no tocante a coisas como as que perfazem o assunto deste capítulo
que decretos especiais do Congresso são exigidos. Saúde e conforto
— tanto quanto possam ser obtidos segundo as circunstâncias —
deveriam ser legalmente garantidos à tripulação dos navios de
guerra; e não deixadas ao capricho e juízo de seus comandantes.
Herman Melville, in Jaqueta Branca
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