Picos - PI | Foto: Flávia Rocha
Como
qualquer criança ou adolescente, eu era um menino influenciável.
Queria ter videogame porque meus amigos tinham, queria usar camiseta
de marca porque “dois ou três usavam”, e se um amigo meu
estivesse usando um perfume fedorento, acho que eu ia querer também.
Talvez nem fosse inveja. O que eu queria era me sentir enturmado,
fazer parte de um grupo. Mas, além disso, não queria me sentir
inferior a ninguém. E desde criança as desigualdades não me
passavam despercebidas. Você logo vai percebendo que a sua realidade
é uma, a do seu amigo é outra.
O
problema é que quase sempre a gente enxerga o lado melhor e acaba se
sentindo pior. Menino é bicho besta, às vezes ficava triste e
reclamando porque via um amigo jogando bola de chuteira nova enquanto
a minha estava bem velhinha e remendada por vovô, mas esquecia de
olhar pro lado e reparar nos que estavam jogando de pés descalços.
Durante
a minha infância, aqui em Alto Santo, a TV só pegava dois canais:
Globo e SBT. Os outros, só com antena parabólica, que na época era
artigo de luxo, mais ainda que uma TV por assinatura hoje. E lá em
casa não tinha parabólica. Vovô só assistia jornal e novela na
Globo, então não sentia falta. Mas na Manchete passavam uns
desenhos que eu dava maior valor, como Cavaleiros do Zodíaco, e eu
tinha que ir na casa de amigos se quisesse assistir.
Eu
já tinha pedido tanto a vovô para comprar uma antena parabólica…
Mas ele sempre dizia a mesma coisa: “Não tem precisão, já não
tem aí uma televisão? Não é boa? Já é colorida, pra que antena
parabólica?” Realmente, o fato de ser uma TV em cores já era um
avanço – ainda me lembro do aparelho preto e branco que tinha
antes. Lembro também que o “controle remoto” era eu:
– Mude
ali o canal!
– Bote
ali no 10!
– Alteie
ali o volume!
E
por aí vai...
Então,
certa vez, eu era um moleque de uns 11 ou 12 anos, fui com mais uns
três meninos para a casa de um amigo assistir aos tais desenhos.
Esse amigo tinha boa condição, o pai dele era bem de vida. Quando
chegamos lá, ele falou:
– Bora
assistir lá no quarto de mamãe.
– Não,
macho! A sua mãe vai brigar com a gente!
– Não,
não vai não.
Então
a gente foi. Antes, tínhamos jogado bila no quintal, estava todo
mundo suado, com os pés sujos, e a molecada em cima da cama da
mulher, vendo TV… Quando ela entrou no quarto, ficou doida e botou
todo mundo pra correr:
– Que
arrumação é essa? Vão já pra casa! Não quero vocês aqui nunca
mais, seu bando de menino safado! Não quero mais ninguém aqui
assistindo televisão, não!
Quando
cheguei em casa, mamãe e vovô estavam na sala, e mamãe achou
estranho eu ter voltado tão cedo.
– Já
voltei porque a mãe dele botou nós pra fora.
Quando
eu disse isso, vovô já se interessou, e perguntou:
– Mas
botou pra fora por causa de quê?
– Porque
a gente estava lá assistindo televisão…
– Muito
bem empregado. Se você tem televisão em casa, ainda mais colorida,
não tem precisão de estar em casa dos outros.
Então
eu aproveitei para fazer logo um drama:
– Estava
assistindo lá porque aqui não tem parabólica… e tem uns desenhos
que eu gosto... aqui não pega... então eu estava assistindo lá, e
ela disse que a gente era tudo um bando de miseráveis, que não
tínhamos casa, que não queria mais nós na casa dela…
Ou
seja, eu dei uma exagerada na história.
Nessa
hora, vovô virou-se para minha mãe e disse:
– Vá
lá na Leléu e compre uma antena parabólica agora.
(A
Leléu Móveis, do Seu Leléu, era a única loja de móveis da cidade
naquela época. Ficava ali na rua da prefeitura, encostada no bar de
Françuilo, mesmo de frente à loja de Lafaiete.)
Mamãe
nem acreditou.
– Sério?
– Sério.
Vá lá, veja quanto é e mande entregar aqui, que eu pago pro rapaz
que trouxer.
Mamãe
não perdeu tempo, calçou a sandália e saiu antes que vovô se
arrependesse. Eu fiquei numa felicidade! Quando ela já tinha andado
uns trinta passos na rua, passando pouca coisa da casa de Damião, e
eu estava todo feliz, vovô se levantou, encostou na porta de casa
(que era daquelas portas que têm uma parte em cima que abre separado
da parte de baixo, bem comum nas casas do interior), botou as mãos
assim e chamou:
– Ô
Ana Lídia!
Na
mesma hora, eu pensei: pronto, desistiu…
– Diga,
pai?
– Compre
a maior que tiver!
Essa
antena parabólica está lá na casa de vovô e vovó ainda hoje. Ele
podia até colocar no quintal dos fundos, mas não: mandou botar na
frente da casa, para todo mundo ver que ali tinha uma antena
parabólica. E era das grandes!
Era
nessa TV colorida, e com essa parabólica, que meu avô assistia aos
jogos de futebol. Eu, torcedor do Fortaleza, ele torcedor do
Flamengo, mas não assumia isso nunca, porque dizia que “torcedor
era bicho besta”. Se começasse a chover durante o jogo e mostrasse
a torcida, ele apontava para a televisão e dizia, com ar de
desprezo: “Ô povo besta, tudo pegando chuva!” No entanto, era
doido por futebol, não perdia um jogo, e se fosse do Flamengo ele se
empolgava ainda mais. Eu brincava: “Vô, o senhor torce para o
Flamengo, né?”, e ele já respondia no “pei bufo”: “Eu gosto
de jogo, mas não torço pra ninguém!”
O
futebol nos aproximou muito. Tenho uma lembrança muito forte da Copa
do Mundo de 2002, que foi na Coreia do Sul e no Japão, e os jogos
eram de madrugada. Eu tinha uma turma de amigos que se juntava para
assistir aos jogos do Brasil na casa de um, depois na casa de outro.
No primeiro jogo do Brasil, que foi de madrugada, eu me ajeitei todo,
coloquei minha camisa para ir pra casa de Wellington, a mundiça toda
lá reunida, e quando estava saindo, vi meu vô se levantando da rede
para assistir ao jogo. Um jogo do Brasil, numa Copa do Mundo, e ele
ia assistir sozinho. Nós víamos todos os outros jogos de time
juntos, eu era sua companhia, já que os filhos não moravam mais lá,
e logo na Copa eu ia deixá-lo sozinho? De jeito maneira!
Resolvi
ficar, e pensei que poderia ver os próximos jogos com meus amigos.
Aí sentei e assisti ao jogo ao lado dele. No fim das contas,
assistimos a todos os jogos do Brasil juntos, eu e meu vô. Aquela
Copa foi muito marcante para mim, não só porque o Brasil foi
campeão, mas porque assisti a todos os jogos com ele, e até hoje
esta é uma lembrança muito boa de nós dois.
Vovô
era muito respeitado em Alto Santo. Era sapateiro, mas também foi
chefe da Guarda
Municipal por mais de dez anos. Uma verdadeira reserva moral na
cidade. Todo mundo respeitava Seu Dedé. Tinha autoridade para
resolver qualquer disputa. Se, por exemplo, um bêbado estivesse
quebrando as coisas dentro de casa, a mulher corria pra chamar vovô,
porque sabia que, se ele chegasse e dissesse “Se aquiete!”, o
cabra se aquietava.
Teve
um dia que chegou uma mulher chorando, muito nervosa:
– Seu
Dedé, pelo amor de Deus, só o senhor pra me acudir! É Chico, que
está em casa bêbado, quebrando tudo, já deu em mim, estou aqui com
meu braço que não aguento… Vá lá, que só o senhor pra dar um
jeito nele!
Vovô
já foi se levantando:
– Vou
agora. Maria, me dê uma camisa.
Como
é muito quente em Alto Santo, vovô andava sempre sem camisa quando
estava em casa. Ele ficava sentado numa cadeira de balanço,
assistindo televisão, e sempre sem camisa.
Na
mesma hora, vovó trouxe uma camisa de botão. Ele começou a abotoar
o primeiro botão, depois o segundo, e foi quando a mulher disse:
– Mas,
Seu Dedé, tenha nervos, não bata nele, não…
Na
mesma hora ele desabotoou a camisa, entregou a vovó, se sentou na
cadeira e respondeu:
– Se
for pra fazer carinho, pode ir chamar outro!
Bráulio Bessa, in Um carinho na alma
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