domingo, 6 de março de 2022

Pra que antena parabólica?

Picos - PI | Foto: Flávia Rocha

Como qualquer criança ou adolescente, eu era um menino influenciável. Queria ter videogame porque meus amigos tinham, queria usar camiseta de marca porque “dois ou três usavam”, e se um amigo meu estivesse usando um perfume fedorento, acho que eu ia querer também. Talvez nem fosse inveja. O que eu queria era me sentir enturmado, fazer parte de um grupo. Mas, além disso, não queria me sentir inferior a ninguém. E desde criança as desigualdades não me passavam despercebidas. Você logo vai percebendo que a sua realidade é uma, a do seu amigo é outra.
O problema é que quase sempre a gente enxerga o lado melhor e acaba se sentindo pior. Menino é bicho besta, às vezes ficava triste e reclamando porque via um amigo jogando bola de chuteira nova enquanto a minha estava bem velhinha e remendada por vovô, mas esquecia de olhar pro lado e reparar nos que estavam jogando de pés descalços.
Durante a minha infância, aqui em Alto Santo, a TV só pegava dois canais: Globo e SBT. Os outros, só com antena parabólica, que na época era artigo de luxo, mais ainda que uma TV por assinatura hoje. E lá em casa não tinha parabólica. Vovô só assistia jornal e novela na Globo, então não sentia falta. Mas na Manchete passavam uns desenhos que eu dava maior valor, como Cavaleiros do Zodíaco, e eu tinha que ir na casa de amigos se quisesse assistir.
Eu já tinha pedido tanto a vovô para comprar uma antena parabólica… Mas ele sempre dizia a mesma coisa: “Não tem precisão, já não tem aí uma televisão? Não é boa? Já é colorida, pra que antena parabólica?” Realmente, o fato de ser uma TV em cores já era um avanço – ainda me lembro do aparelho preto e branco que tinha antes. Lembro também que o “controle remoto” era eu:
Mude ali o canal!
Bote ali no 10!
Alteie ali o volume!
E por aí vai...
Então, certa vez, eu era um moleque de uns 11 ou 12 anos, fui com mais uns três meninos para a casa de um amigo assistir aos tais desenhos. Esse amigo tinha boa condição, o pai dele era bem de vida. Quando chegamos lá, ele falou:
Bora assistir lá no quarto de mamãe.
Não, macho! A sua mãe vai brigar com a gente!
Não, não vai não.
Então a gente foi. Antes, tínhamos jogado bila no quintal, estava todo mundo suado, com os pés sujos, e a molecada em cima da cama da mulher, vendo TV… Quando ela entrou no quarto, ficou doida e botou todo mundo pra correr:
Que arrumação é essa? Vão já pra casa! Não quero vocês aqui nunca mais, seu bando de menino safado! Não quero mais ninguém aqui assistindo televisão, não!
Quando cheguei em casa, mamãe e vovô estavam na sala, e mamãe achou estranho eu ter voltado tão cedo.
Já voltei porque a mãe dele botou nós pra fora.
Quando eu disse isso, vovô já se interessou, e perguntou:
Mas botou pra fora por causa de quê?
Porque a gente estava lá assistindo televisão…
Muito bem empregado. Se você tem televisão em casa, ainda mais colorida, não tem precisão de estar em casa dos outros.
Então eu aproveitei para fazer logo um drama:
Estava assistindo lá porque aqui não tem parabólica… e tem uns desenhos que eu gosto... aqui não pega... então eu estava assistindo lá, e ela disse que a gente era tudo um bando de miseráveis, que não tínhamos casa, que não queria mais nós na casa dela…
Ou seja, eu dei uma exagerada na história.
Nessa hora, vovô virou-se para minha mãe e disse:
Vá lá na Leléu e compre uma antena parabólica agora.
(A Leléu Móveis, do Seu Leléu, era a única loja de móveis da cidade naquela época. Ficava ali na rua da prefeitura, encostada no bar de Françuilo, mesmo de frente à loja de Lafaiete.)
Mamãe nem acreditou.
Sério?
Sério. Vá lá, veja quanto é e mande entregar aqui, que eu pago pro rapaz que trouxer.
Mamãe não perdeu tempo, calçou a sandália e saiu antes que vovô se arrependesse. Eu fiquei numa felicidade! Quando ela já tinha andado uns trinta passos na rua, passando pouca coisa da casa de Damião, e eu estava todo feliz, vovô se levantou, encostou na porta de casa (que era daquelas portas que têm uma parte em cima que abre separado da parte de baixo, bem comum nas casas do interior), botou as mãos assim e chamou:
Ô Ana Lídia!
Na mesma hora, eu pensei: pronto, desistiu…
Diga, pai?
Compre a maior que tiver!
Essa antena parabólica está lá na casa de vovô e vovó ainda hoje. Ele podia até colocar no quintal dos fundos, mas não: mandou botar na frente da casa, para todo mundo ver que ali tinha uma antena parabólica. E era das grandes!
Era nessa TV colorida, e com essa parabólica, que meu avô assistia aos jogos de futebol. Eu, torcedor do Fortaleza, ele torcedor do Flamengo, mas não assumia isso nunca, porque dizia que “torcedor era bicho besta”. Se começasse a chover durante o jogo e mostrasse a torcida, ele apontava para a televisão e dizia, com ar de desprezo: “Ô povo besta, tudo pegando chuva!” No entanto, era doido por futebol, não perdia um jogo, e se fosse do Flamengo ele se empolgava ainda mais. Eu brincava: “Vô, o senhor torce para o Flamengo, né?”, e ele já respondia no “pei bufo”: “Eu gosto de jogo, mas não torço pra ninguém!”
O futebol nos aproximou muito. Tenho uma lembrança muito forte da Copa do Mundo de 2002, que foi na Coreia do Sul e no Japão, e os jogos eram de madrugada. Eu tinha uma turma de amigos que se juntava para assistir aos jogos do Brasil na casa de um, depois na casa de outro. No primeiro jogo do Brasil, que foi de madrugada, eu me ajeitei todo, coloquei minha camisa para ir pra casa de Wellington, a mundiça toda lá reunida, e quando estava saindo, vi meu vô se levantando da rede para assistir ao jogo. Um jogo do Brasil, numa Copa do Mundo, e ele ia assistir sozinho. Nós víamos todos os outros jogos de time juntos, eu era sua companhia, já que os filhos não moravam mais lá, e logo na Copa eu ia deixá-lo sozinho? De jeito maneira!
Resolvi ficar, e pensei que poderia ver os próximos jogos com meus amigos. Aí sentei e assisti ao jogo ao lado dele. No fim das contas, assistimos a todos os jogos do Brasil juntos, eu e meu vô. Aquela Copa foi muito marcante para mim, não só porque o Brasil foi campeão, mas porque assisti a todos os jogos com ele, e até hoje esta é uma lembrança muito boa de nós dois.
Vovô era muito respeitado em Alto Santo. Era sapateiro, mas também foi chefe da Guarda Municipal por mais de dez anos. Uma verdadeira reserva moral na cidade. Todo mundo respeitava Seu Dedé. Tinha autoridade para resolver qualquer disputa. Se, por exemplo, um bêbado estivesse quebrando as coisas dentro de casa, a mulher corria pra chamar vovô, porque sabia que, se ele chegasse e dissesse “Se aquiete!”, o cabra se aquietava.
Teve um dia que chegou uma mulher chorando, muito nervosa:
Seu Dedé, pelo amor de Deus, só o senhor pra me acudir! É Chico, que está em casa bêbado, quebrando tudo, já deu em mim, estou aqui com meu braço que não aguento… Vá lá, que só o senhor pra dar um jeito nele!
Vovô já foi se levantando:
Vou agora. Maria, me dê uma camisa.
Como é muito quente em Alto Santo, vovô andava sempre sem camisa quando estava em casa. Ele ficava sentado numa cadeira de balanço, assistindo televisão, e sempre sem camisa.
Na mesma hora, vovó trouxe uma camisa de botão. Ele começou a abotoar o primeiro botão, depois o segundo, e foi quando a mulher disse:
Mas, Seu Dedé, tenha nervos, não bata nele, não…
Na mesma hora ele desabotoou a camisa, entregou a vovó, se sentou na cadeira e respondeu:
Se for pra fazer carinho, pode ir chamar outro!

Bráulio Bessa, in Um carinho na alma

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