sábado, 26 de março de 2022

Os abismos e os astros

A harmonia oculta vale mais que a harmonia visível.
Heráclito

No Itamaraty, em dependência do Serviço de Informações, opera autônoma e praticamente sem cessar o telex, espécie de bem-mandada máquina, que tiquetaqueia recebendo notícias diretas radiotelegráficas. Naquela tarde de 22 de novembro de 1963, passando por ali meu amigo o Ministro Portella, perguntou-lhe um subalterno de olhos espantados: que queria dizer “shot” em inglês? A tremenda coisa, no instante, anunciava-se já completa, ainda quente, frases e palavras golpeadas na longa tira de papel que ia adiante desenrolando-se. “Presidente Kennedy...” Susto e consternação confundiam depressa a cidade, os países, todo-o-mundo lívido. Antes que tudo, o assombro. Era uma das vezes em que, enorme, o que devia não ser possível sucede, o desproporcionado. Lembro-me que me volveram à mente outras sortes e mortes.
E — por que então — a de Gandhi. Tende-se a supor que esses seres extraordinários, em fino evoluídos, almas altas, estariam além do alcanço de grosseiros desfechos. Quando, ao que parece, são, virtualmente, os que de preferência os chamam; talvez por fato de polarização, o positivo provocando sempre o negativo. De exformes zonas inferiores, onde se atrasa o Mal, medonhantes braços estariam armando a atingir o luminoso. Apenas os detêm permanentes defesas de ordem sutil; mas que, se só um momento cessam de prevalecer, permitem o inominável. Para nós a Providência é incompreendida computadora.
Podem-se prever suas voltas? Os adivinhos, metapsíquicos, astrólogos, por vezes tem-se de aceitar que algum viso de verdade resida em seus dons e arte.
Digredindo, recordarei Demétrio de Toledo, Cônsul-Geral e horoscopista amador, que ainda me foi dado conhecer. Publicava ele num jornal do Rio, em 1937 ou 1936, seus vaticínios siderais, com avance de mais de semana, e foi assim que, para determinado dia, profetizou “a morte de um ditador”. Interessou-me afirmação tão estricta e a ponto; se bem que a ela quase ninguém dando atenção. Chegou a data e Hitler, Mussolini, quejandos, continuaram viventes... mas, nos Estados Unidos, tombou, a tiros, Huey Long, denominado “o ditador da Louisiana”!
No caso de Kennedy, sabe-se que uma vidente norte-americana predisse-lhe a funesta ameaça e fez por impedir sua viagem ao Texas. Mas, também, leram o jornal Última Hora de 21 de novembro, véspera do magnicídio? Lá saiu, na “reportagem Horoscópica” do Prof. Prahdi, como presciência ou “agenda” para o dia seguinte:

No mundo. De Gaulle nas manchetes. Fracassado golpe de Es-tado na América Central. Graves dificuldades para Kennedy. Ameaça de atentado contra Fidel Castro.

Não creio que honestamente se possa deixar de achá-la notável, coincidência que seja ou “aproximação” de acerto.
Motivos muitos fazem incicatrizável o assunto do assassinato de John Fitzgerald Kennedy. Suspeitas e incertezas levam a novas propalas, investigações, inquéritos. Publicam-se livros, como esse de William Manchester, obra-prima de moderna insensibilidade e mesquinhez, se não de malina coscuvilhice. Com razão, a gente reluta em atribuir apenas às oscilações da Nêmesis — potência-princípio que atua no Universo restabelecendo o equilíbrio da condição humana, mediante aplicação automática da lei-das-compensações, e uma das mais sérias fórmulas achadas pelo pensamento religioso grego — o fim trágico do jovem, afortunado, grande e triunfador Presidente.
Mas fato admirável tem sido esquecido, e é o que nos faz perguntar se, das fundas camadas da mente, Kennedy não haveria captado, de certo modo, aviso de sua situação gravíssima. Foi que, baleado e morto, trazia ele no bolso o discurso que ia dizer, aquele dia mesmo, naquela cidade de Dallas. E que termina com a monitória e dramática afirmação do Salmo:

Se o Senhor não guarda a cidadela,
em vão vigia a sentinela.

Guimarães Rosa, in Ave, Palavra

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