Depois
de algum tempo Iñe-e não pôde mais escutar o rio e suas histórias.
As paredes do castelo, o frio, os ruídos daquele mundo se tornam por
demais imperativos e impedem que a voz da água encontre tradução
nos seus ouvidos. De um modo que não compreende bem, a menina sente
falta do rumorejar de Isar. Sente terrível falta da maloca, do
cotidiano que havia sido partido como um galho na tempestade e,
principalmente, da pele morna da mãe. Um buraco claro como um
relâmpago se abre dentro dela e cresce. Não sente fome, sono,
vontade de nada. No castelo do rei tudo é assustadoramente longe
dela mesma. Aquele sentimento, ela sabe, é outro nome para doença.
Logo
nos primeiros dias após sua chegada, as filhas mais novas do rei
elegem Iñe-e e o menino Juri como seus novos brinquedos. Iñe-e
sente-se cansada e tudo aquilo a molesta. Além do mais, as filhas do
rei possuem bonecas, filhas que não se mexem, meninas em tudo iguais
a elas, de peles muito pálidas, de cabelos e olhos claros, mas muito
pequenas. Meninas cujas peles parecem de barro branco cru, cujos
olhos não piscam nunca e de cujas bocas não saem palavras. Iñe-e
imagina que podem estar vivas e presas naquela paralisia, e um tremor
a atravessa quando as vê nos braços das duas meninas pela primeira
vez. As filhas do rei tratam essas bonecas com muito carinho e suas
vozes se tornam mais finas quando falam com elas. Uma coisa
assombrosa. Iñe-e sente medo das bonecas e das vozes melífluas das
meninas. As bonecas, ela sabe, têm outro tipo de vida, então é
preciso respeitá-las, não aborrecê-las, cuidar para que não se
zanguem.
As
filhas do rei tratam Iñe-e como tratam suas bonecas, puxam-na pelos
braços, insistem em pentear seu cabelo e repetem palavras
incansavelmente com aquelas vozes adocicadas, talvez na esperança de
que Iñe-e lhes responda de algum modo. Como as bonecas, entretanto,
a menina não reage. Quando se aborrecem com Iñe-e, a abandonam por
alguns momentos, trocando-a pelo menino Juri, que às vezes se mostra
mais receptivo e até responde a elas com risadas e olhos muito
espertos. Mas nem sempre.
Ao
fim da primeira semana, as duas crianças serão batizadas em uma
cerimônia oficiada por um padre sonolento. Causará espanto aos
fiéis que o menino não tenha retirado o chapéu em sinal de
respeito a Deus ao entrar na igreja. São sempre impressionantes as
coisas que as pessoas escolhem para se escandalizar. Mas o incidente
será rapidamente resolvido, e se desculpará a natureza ingênua e
selvagem do pequeno bárbaro.
Isabella
e Johann são os nomes escolhidos para a nova vida que os brancos
pensam dar a Iñe-e e ao menino Juri sob os desígnios do rei, que, a
propósito, se chama Maximiliano I da Baviera. É curioso que a um
rei se possa destronar, guilhotinar ou até executar ante a salva dos
fuzis, mas que seu nome ninguém retire. Mesmo que deixe de ser rei,
seu nome composto de vários outros nomes, em uma teia labiríntica
de ascendentes, será sempre uma marca do privilégio que recebeu
ainda em berço. Isso, claro, se for um rei branco. O menino Juri,
por exemplo, que sucederia a seu pai em algum momento de sua vida na
floresta, tem seu nome negado. O certo é que para seus captores só
interessa saber que ele é Johann, do povo juri, e ela, Isabella, do
povo miranha. Ou tão somente Miranha e Juri, dois rostos sem corpo,
dois nomes sem história.
Micheliny Verunschk, in O som do rugido da onça
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