segunda-feira, 7 de março de 2022

O som do rugido da onça | XVII

A história é mestra do futuro, mas também do presente, sussurra Martius para o combalido Spix, a quem abraça, emparelhando-o ombro a ombro. Muito embora exaustos, sentem-se de novo integrados, pertencentes a um mundo que os compreende e acolhe a delicadeza. São homens diferentes estes que regressam, sabem bem, mas ainda cabem naquele lugar que os nutriu e viu crescer. O ajuntamento de pessoas em seu redor configura-se quase como um círculo iluminado, é no que Martius acredita. A história é mestra do futuro, mas também do presente, repete a si mesmo mentalmente, enquanto o passado retorna em cores muito vivas. Não lhe ocorre, porém, que o presente e o futuro possam iluminar o passado. A visão de Iñe-e e do menino Juri entre os nobres é como um detonador de um sentimento que não consegue distinguir. Tem a sensação de que algo possa estar fora de lugar, mas credita isso aos anos de Brasil, percorrendo o sertão e os igarapés, desacostumado da corte.
Relembra a terça-feira de 14 de julho de 1817, quando aportou no Rio de Janeiro de carona com a comitiva da princesa Leopoldina. A cidade, aquele enclave ilógico, simultânea e rapidamente se configurara como um recorte de civilização e cultura bem-comportada e avançada ao modo europeu, só que em fricção contínua e incômoda com a barbárie. Se num primeiro momento a cidade parecera a conjunção perfeita entre natureza e civilização, oh, Deus, quanta beleza pode invadir nossos olhos!, o turbilhão de negras e negros impertinentes com sua existência ruidosa nas ruas da capital brasileira, vendendo suas cocadas e frutas, dando conta de existir aos gritos e gargalhadas, invadindo os limites dos corpos com seus suores, seus pregões, seus torsos nus, ofereciam aos seus olhos um espetáculo extravagante e, por que não dizer, selvagem.
Os diferentes idiomas da multidão dessa gente, de todas as cores e vestuários, se cruzam; o vozerio sempre interrompido e sempre repetido com que os negros levam de um lado para o outro as cargas sobre varas; o chiado de um tosco carro de bois de duas rodas em que as mercadorias são conduzidas pela cidade; os frequentes tiros de canhão dos castelos e dos navios de todos os países do mundo, que entram, e o estrondo dos foguetes com que os habitantes quase diariamente e já de manhã cedo festejam os dias santos confundem-se num estardalhaço ensurdecedor.
Por um instante, Martius como que volta àquele passado, ao alarido, ao olhar que se inaugurava naquela terra. Somente quando saiu do Rio para a região de São Paulo é que se deu conta da grandiosidade daquilo em que se metera. Em noventa quilômetros de viagem, uma amostra do céu e do inferno. Três guias, uma tropa de mulas, ele, Ender e Spix em seus cavalos rumo a São Paulo, atravessando a serra do Mar. Lembrava palavra por palavra o que fora colocado no relatório ao seu rei:
Diante de tanta riqueza de formas, não temos mãos e olhos suficientes para realizar nosso trabalho.”
A luz amarela do desenho de Ender, pintor que acompanhou a comitiva em seus primeiros passos, retratando o início da viagem, agora lhe parecia pálida demais, uma idealização solar das durezas e provações heroicas, sim, por que não?, pelas quais ainda passariam ele e Spix. Do quanto ambos estavam despreparados para as gentes e a natureza do Brasil. De quanto fantasiara um país sem existência cabível no real e de como, ainda agora, o Brasil lhe parece fugidio, inapreensível.
Se a história é uma mestra, qual é a sua face? Ela é a configuração do passado apenas? Martius volta ao salão da festa, o braço de Spix apoiado em seu ombro, e tenta afastar a excitação, perguntas e lembranças que o invadem. No entanto, relembra a água salobra das cacimbas quase secas do sertão baiano que lambia desesperado como o bicho que não era e que terminantemente se recusava a ser. Aperta os olhos como modo de sufocar o incômodo que o invade. Então toma ar e respira fundo, porque agora tudo deve ser celebração pelo regresso, prestação de contas e, é claro, um pouco de glória.
Mas neste momento, por um átimo, seu olhar cruza com o de Iñe-e. E uma sombra anuvia seu pensamento.

Micheliny Verunschk, in O som do rugido da onça

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