A
história é mestra do futuro, mas também do presente, sussurra
Martius para o combalido Spix, a quem abraça, emparelhando-o ombro a
ombro. Muito embora exaustos, sentem-se de novo integrados,
pertencentes a um mundo que os compreende e acolhe a delicadeza. São
homens diferentes estes que regressam, sabem bem, mas ainda cabem
naquele lugar que os nutriu e viu crescer. O ajuntamento de pessoas
em seu redor configura-se quase como um círculo iluminado, é no que
Martius acredita. A história é mestra do futuro, mas também do
presente, repete a si mesmo mentalmente, enquanto o passado retorna
em cores muito vivas. Não lhe ocorre, porém, que o presente e o
futuro possam iluminar o passado. A visão de Iñe-e e do menino Juri
entre os nobres é como um detonador de um sentimento que não
consegue distinguir. Tem a sensação de que algo possa estar fora de
lugar, mas credita isso aos anos de Brasil, percorrendo o sertão e
os igarapés, desacostumado da corte.
Relembra
a terça-feira de 14 de julho de 1817, quando aportou no Rio de
Janeiro de carona com a comitiva da princesa Leopoldina. A cidade,
aquele enclave ilógico, simultânea e rapidamente se configurara
como um recorte de civilização e cultura bem-comportada e avançada
ao modo europeu, só que em fricção contínua e incômoda com a
barbárie. Se num primeiro momento a cidade parecera a conjunção
perfeita entre natureza e civilização, oh, Deus, quanta beleza pode
invadir nossos olhos!, o turbilhão de negras e negros impertinentes
com sua existência ruidosa nas ruas da capital brasileira, vendendo
suas cocadas e frutas, dando conta de existir aos gritos e
gargalhadas, invadindo os limites dos corpos com seus suores, seus
pregões, seus torsos nus, ofereciam aos seus olhos um espetáculo
extravagante e, por que não dizer, selvagem.
Os
diferentes idiomas da multidão dessa gente, de todas as cores e
vestuários, se cruzam; o vozerio sempre interrompido e sempre
repetido com que os negros levam de um lado para o outro as cargas
sobre varas; o chiado de um tosco carro de bois de duas rodas em que
as mercadorias são conduzidas pela cidade; os frequentes tiros de
canhão dos castelos e dos navios de todos os países do mundo, que
entram, e o estrondo dos foguetes com que os habitantes quase
diariamente e já de manhã cedo festejam os dias santos confundem-se
num estardalhaço ensurdecedor.
Por
um instante, Martius como que volta àquele passado, ao alarido, ao
olhar que se inaugurava naquela terra. Somente quando saiu do Rio
para a região de São Paulo é que se deu conta da grandiosidade
daquilo em que se metera. Em noventa quilômetros de viagem, uma
amostra do céu e do inferno. Três guias, uma tropa de mulas, ele,
Ender e Spix em seus cavalos rumo a São Paulo, atravessando a serra
do Mar. Lembrava palavra por palavra o que fora colocado no relatório
ao seu rei:
“Diante
de tanta riqueza de formas, não temos mãos e olhos suficientes para
realizar nosso trabalho.”
A
luz amarela do desenho de Ender, pintor que acompanhou a comitiva em
seus primeiros passos, retratando o início da viagem, agora lhe
parecia pálida demais, uma idealização solar das durezas e
provações heroicas, sim, por que não?, pelas quais ainda passariam
ele e Spix. Do quanto ambos estavam despreparados para as gentes e a
natureza do Brasil. De quanto fantasiara um país sem existência
cabível no real e de como, ainda agora, o Brasil lhe parece fugidio,
inapreensível.
Se
a história é uma mestra, qual é a sua face? Ela é a configuração
do passado apenas? Martius volta ao salão da festa, o braço de Spix
apoiado em seu ombro, e tenta afastar a excitação, perguntas e
lembranças que o invadem. No entanto, relembra a água salobra das
cacimbas quase secas do sertão baiano que lambia desesperado como o
bicho que não era e que terminantemente se recusava a ser. Aperta os
olhos como modo de sufocar o incômodo que o invade. Então toma ar e
respira fundo, porque agora tudo deve ser celebração pelo regresso,
prestação de contas e, é claro, um pouco de glória.
Mas
neste momento, por um átimo, seu olhar cruza com o de Iñe-e. E uma
sombra anuvia seu pensamento.
Micheliny Verunschk, in O som do rugido da onça
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