quinta-feira, 17 de março de 2022

— Não se inquiete, minha Bubulina


A primeira pessoa que encontramos de volta à praia, ao cair da noite, foi a nossa Bubulina, de sentinela diante do barracão. Quando acendemos o lampião e vi seu rosto, fiquei assustando.
Que tem você, Madame Hortência? Está doente?
Desde o instante em que luzia em seu espírito a grande esperança, o casamento, nossa velha sereia perdera, toda a sua indefinível e suspeita sedução. Esforçava-se por apagar todo o passado e deixava de lado as vistosas plumas com que se tinha enfeitado, depenando paxás, beis, almirantes. Queria apenas tornar se uma gralha séria e correta. Uma mulher honesta. Não se pintava mais, não se fardava mais, deixava-se levar.
Zorba não abria a boca. Torcia nervosamente o bigode recém-pintado. Inclinou-se, acendeu o fogareiro e pôs água para ferver, para o café.
Cruel — disse de súbito a voz rouca da velha cantora.
Zorba levantou a cabeça e fitou-a. Seus olhos se abrandaram.
Era-lhe impossível que uma mulher se dirigisse a ele em tom aflito sem deixá-lo completamente perturbado. Poderia afogar-se numa lágrima de mulher.
Nada disse, pôs o café e o açúcar e mexeu.
Por que me faz penar tanto tempo antes de se casar comigo? — arrulhou a velha sereia. — não ouso mais me mostrar na aldeia. Estou desonrada! Vou me matar!
Deitara-me fatigado na cama, e apoiado o travesseiro, saboreava esta cena cômica e dolorosa.
Por que não trouxe as coroas de casamento?
Zorba sentiu a mão gorducha da Bubulina tremer no seu joelho.
Este joelho era o último lugar da terra firme ao qual se agarrava esta criatura mil e uma vezes naufragada.
Dir-se-ia que Zorba o compreendera e que seu coração se adoçara. Mas, ainda desta vez, nada disse. Serviu o café nas três xícaras.
Por que não trouxe as coroas, meu querido? — repetiu, numa voz fremente.
Não há coroas bonitas em Cândia — respondeu Zorba num tom seco.
Ofereceu a cada um sua xícara e se agachou a um canto.
Escrevi para Atenas, mandando vir umas lindas — prosseguiu. — encomendei também círios brancos e confeitos de chocolate e de amêndoas torradas.
À medida que falava, sua imaginação ia pegando fogo. Os olhos brilhavam e tal como o poeta na hora ardente da criação, Zorba movia-se em alturas onde se misturavam a ficção e a verdade e se reconhecem como irmãs. Assim acocorado, descansava e bebia ruidosamente o café; acendeu um segundo cigarro — o dia fora bom, tinha a floresta no bolso, pagara as dividas e estava contente.
Prosseguiu:
É preciso que nosso casamento faça barulho, minha Bubulinazinha; vai ver que vestido de noiva encomendei para você! Foi por isso que fiquei tanto tempo em Cândia, meu amor. Fiz vir de Atenas duas grandes costureiras e disse a elas: a mulher com quem vou me casar não tem igual nem no Oriente nem no Ocidente! Foi rainha de quatro potências, mas hoje está viúva; as Potências morreram e ela consente em me aceitar como marido. Quero, portanto, que seu vestido de noiva não tenha igual, ele também: todo de seda, pérolas e estrelas de ouro. As duas costureiras soltaram exclamações: — mas vai ser lindo demais! Todos os convidados vão ficar cegos! — pior para eles, disse eu, que importa? Contanto que minha bem-amada esteja contente!
Apoiada à parede, Madame Hortência escutava. Um sorriso espesso, carnudo, fixara-se no rostinho flácido e gasto, e a fita rosa do pescoço estava a ponto de rasgar-se.
Quero dizer-lhe uma coisa no ouvido — sussurrou ela, lançando a Zorba um olhar mortiço.
Zorba piscou-me o olho e inclinou-se.
Trouxe-lhe uma coisa, esta noite — sussurrou a futura esposa, metendo a lingüinha na grande orelha peluda.
Tirou do corpete um lenço amarrado em trouxa e entregou a Zorba.
Ele pegou o lencinho com dois dedos e o colocou no joelho direito; depois, virando-se para a porta, olhou para o mar.
Não vai tirar o nó, Zorba? — disse ela. — estou vendo que não está com nenhuma pressa!
Deixe eu tomar primeiro o café e fumar um cigarro — disse ele.
já desamarrei, sei o que está dentro.
Desate o nó, desate o nó! — suplicou a sereia.
Já disse que vou fumar primeiro!
E lançou-me um olhar pesado de reprimenda, como para me dizer: “Tudo isso por sua culpa!”
Ele fumava lentamente, soltando a fumaça pelo nariz e olhando o mar.
Amanhã teremos o siroco, disse. — o tempo mudou. As árvores vão inchar, os seios das moças também, não caberão nos corpetes. A marota da primavera, invenção do Diabo!
Calou-se. Depois, ao cabo de um momento:
Tudo o que há de bom nesse mundo é uma invenção do Diabo: as mulheres bonitas, a primavera, o leitão assado, o vinho, tudo isso, foi o Diabo que fez. E o bom Deus fez os monges, os jejuns, a infusão de camomila e as mulheres feias, puah!
Dizendo isso, lançou um olhar feroz sobre a pobre Madame Hortência que o ouvia, encolhida num canto.
Zorba! Zorba! — implorava ela a cada instante.
Mas ele acendeu novo cigarro e tornou a contemplar o mar.
Na primavera — disse ele, — quem governa é satã. Despertam os cintos, as blusas desabotoam, as velhas suspiram… Hê! Dona Bubulina, tire as patas!
Zorba! Zorba!... — implorou de novo a pobre mulher.
Abaixou-se, pegou o lencinho e meteu-o na mão de Zorba.
Ele então jogou fora o cigarro, segurou o nó e o desfez. Tinha agora a mão aberta e olhava.
Que é isso, dona Bubulina? — fez aborrecido.
Anéis, aneizinhos, meu tesouro. Alianças — murmurou trêmula a velha sereia. — o padrinho está aí, a noite é linda, o bom Deus nos olha... vamos ficar noivos, meu Zorba!
Zorba olhava ora para mim, ora para Madame Hortência, ora para as alianças. Uma multidão de demônios brigava dentro dele e, naquele momento, nenhum deles levava a melhor. A pobrezinha olhava-o com terror.
Meu Zorba! Meu Zorba!... — arrulhava ela.
Levantara-me da cama e aguardava. De todos os caminhos aberto diante dele, qual escolheria Zorba?
De súbito abanou a cabeça. A decisão estava tomada. Bateu as mãos e levantou-se de um salto.
Vamos sair! — gritou. — vamos sob as estrelas, para que o bom Deus nos veja! Patrão, pegue as alianças; você sabe rezar os salmos?
Não — respondi divertido. — mas eu me arranjo.
Já tinha saído da cama e ajudei a mulher se levantar.
Pois eu sei. Tinha esquecido de dizer que também já fui menino de coro; ajudava o padre nos casamentos, batizados e enterros, e aprendi de cor os cantos da igreja. Venha, minha Bubulina, venha minha franguinha, conduza você, minha fragata de França, ponha-se à minha direita.
De todos os demônios de Zorba, era ainda o demônio farsante de bom coração que levava a melhor. Zorba tivera piedade da velha cantora, seu coração se despedaço ao ver o olho fanado fixando-o com tanta ansiedade.
Ao Diabo — murmurou ao se decidir, — ainda posso dar uma alegria ao bicho mulher, vamos lá!
Lançou-se à praia, tomou o braço de Madame Hortência, deu-me as alianças, virou-se para o mar e começou a recitar os salmos:
Bendito seja o Senhor nos séculos dos séculos, Amém!”
Virou-se para mim:
Ajude, patrão. Quando eu gritar: Hohé! Hohé! Você passa as alianças.
Continuou a recitar, com a grossa voz de burro:
Pelo servo de Deus, Alexis, e a serva de Deus, Hortência, noivos um do outro e pela sua salvação, imploramos o senhor!”
Kyrie Eleison! Kyrie Eleison! — cantarolava eu, retendo o custo o riso e as lágrimas.
Ainda tem outros versículos que me enforquem se ainda lembro deles! Mas vamos ao assunto.
Caiu de bruços e gritou:
Hohé! Hohé! — estendendo-me a manopla.
Estica a mãozinha, você também, senhora de meu coração — disse ele à noiva.
A mão roliça, estragada pelos trabalhos caseiros, estendeu-se trêmula.
Pus-lhe a aliança no dedo, enquanto Zorba, fora de si, gritava como um dervixe:
O servo de Deus, Alexis, está noivo da serva de Deus, Hortência, em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, Amém! A serva de Deus, Hortência, está noiva do servo de Deus, Alexis...”
Pronto, terminou. Venha cá, minha franguinha, que eu vou lhe dar o primeiro beijo honesto de sua vida!
Mas Madame Hortência tinha-se atirado ao chão. Abraçava as pernas de Zorba e chorava, Zorba abanou a cabeça compadecido:

Coitada das mulheres! — murmurou.
Madame Hortência levantou-se, sacudiu as saias e abriu os braços.
Hé! Hé! — gritou Zorba. — hoje é terça-feira Santa, tenha modos! Estamos na quaresma! Paciência, minha querida, espere até a Páscoa, nós vamos comer carne. Vamos quebrar ovos vermelhos. Agora já são horas de você voltar para casa. Que é que vão dizer se virem você na rua a estas horas?
Bubulina implorava com os olhos.
Não, não! — fez Zorba, — no domingo de Páscoa! Venha conosco, patrão.
Disse-me ao ouvido:
Não deixe a gente só, pelo amor de Deus! — sussurrou. — não estou em forma.
Tomamos o caminho da aldeia. O céu brilhava, o cheiro do mar nos envolvia, gemiam as aves noturnas. Pendurava ao braço de Zorba a velha sereia deixava-se levar, feliz e melancólica.
Tinha, enfim, chegado ao porto que tanto desejava. A vida toda ela cantara, farreava, zombara das mulheres honestas, mas nunca fora feliz. Quando perfumada, rebocada, vestida de toaletes vistosas, passava nas ruas de Alexandria, de Beirute, de Constantinopla, e via mulheres amamentando bebês, o peito lhe formigava, inchava, intumesciam-se os seios, esmolando eles também uma boca de criança. “Casar-me, casar-me e ter um filho...” sonhara e suspirava por isso durante toda a vida. Mas nunca revelara a vivalma seus sofrimentos. E agora, Deus seja louvado! Um pouco tarde, mas melhor do que nunca: entrava ela, desgovernada e batida pelas ondas, no porto tão desejado.
De quando em quando levantava os olhos e arriscava uma olhadela sobre o homenzarrão desajeitado que ia ao seu lado. Não é, pensava, um rico paxá com um fez de borla de ouro, não é um lindo filho de um bei, mas é melhor que nada. Deus seja louvado! Será meu marido, meu marido de verdade!
Zorba sentia-lhe o peso e a arrastava, com pressa de chegar à aldeia e se desembaraçar dela. E a coitada tropeçava nas pedras, as unhas dos pés quase lhe saindo, os dedos doendo, mas nada dizia.
Para que falar? Para que se queixar? Tudo ia bem, apesar dos pesares!
Já tínhamos transposto a Figueira da Donzela e o jardim da viúva. Apareciam as primeiras casas da aldeia. Paramos.
Boa noite, meu tesouro — disse a velha sereia, com meiguice, pondo-se nas pontas dos pés para chegar à boca do noivo.
Mas Zorba não se inclinava.
Devo jogar-me a seus pés para beijá-los, meu amor? — disse a mulher, prestes a se deixar cair ao chão.
Não, não! — protestou Zorba, comovido, tomando-a nos braços. — eu é que devia beijar os seus pés, meu coração, mas estou com preguiça. Boa noite!
Nós a deixamos e seguimos em silêncio para casa, aspirando a fundo o ar perfumado. De súbito Zorba virou-se para mim:
Que é que a gente deve fazer, patrão? Rir? Chorar? Me dê um conselho.
Não respondi. Eu também tinha a garganta apertada e não sabia por que: soluço? Riso?
Patrão — disse Zorba de um jato, — como é que se chamava esse velhaco Deus antigo que não deixava uma só mulher se queixar? Ouvi dizer qualquer coisa a respeito. Parece também que ele tingia a barba, tatuava os braços e virava touro, cisne, carneiro, burro. Diga qual é o seu nome!
Acho que você está falando de Zeus. Como é que foi se lembrar dele?
Que a terra lhe seja leve! — disse Zorba, levantando os braços para o céu. — meteu-se em boas! Como deve ter sofrido! Um grande mártir, na verdade! Pode crer, patrão, eu manjo um bocado disso! Você engole tudo o que dizem seus livrecos. Mas, essa gente que escreve, são uns pedantes! De fato, que é que eles sabem de mulheres e de conquistas de mulheres? Puras histórias!
Por que você próprio não escreve, Zorba, para nos explicar todos os mistérios do mundo? — caçoei eu.
Por quê? Pela simples razão de que eu vivo todos os mistérios que você conta, e por isso não tenho tempo de escrever sobre eles. Uma hora é a guerra, uma hora são as mulheres, uma hora o vinho, uma hora o santuri: onde vou achar tempo para pegar na boba da pena? E foi assim que a coisa caiu nas mãos dos arranha-papéis. Você vê que todos os que vivem os mistérios não tem tempo de escrever, e todos os que tem tempo não vivem os mistérios. Morou?
Voltemos à vaca fria! E Zeus?
Ah, o pobre diabo! Só eu sei que sofreu. Ele amava as mulheres, é certo, mas não como vocês pensam, vocês, os arranha-papéis! De jeito nenhum! Ele tinha pena delas. Compreendia o sofrimento de todas, se sacrificava por elas. Quando via, num buraco qualquer de província, uma solteirona murchando de desejo e desgosto, ou uma bonita mulherzinha — palavra, mesmo que não fosse bonita, mesmo que fosse um monstro — que não pudesse conciliar o sono porque o marido estava ausente, ele fazia o sinal da cruz, o bom coração, mudava de roupa, tomava a figura que a mulher tinha no pensamento e entrava no seu quarto. Muitas vezes, não tinha a menor vontade de se ocupar com namoricos. Muitas vezes, ele estava mesmo cansado e a gente compreende: como chegar para tantas cabras, o pobre bode! Mais de uma vez tinha preguiça, não estava em forma; você já viu um bode depois de cobrir várias cabras? Ele baba, tem os olhos turvos e ramelentos, tosse, mal se aguenta nas patas. Pois bem, muitas vezes o pobre Zeus ficava nesse estado lastimoso. De manhãzinha, chegava em casa dizendo: “Ah, bom Deus! Quando é que vou poder enfim me deitar e dormir até não querer mais! Já não me aguento em pé!” e não parava de limpar a saliva.
Mas de repente, ele ouvia um queixume: cá embaixo na terra, uma mulher atirava os lençóis para o ar, saía para o terraço quase nua e dava um suspiro. Logo o meu Zeus se tomava de piedade. “Que miséria, gemia ele, tenho que voltar à terra. Tem uma mulher se lamentando, eu vou consolar!” e fazia tanto, e tão bem, que as mulheres o esvaziaram completamente. Adoeceu dos rins, começou a vomitar, ficou paralítico e morreu. Foi então que veio Cristo, seu herdeiro. Viu o estado de penúria do velho. “Pra longe as mulheres!” Exclamou ele.
Admirava o frescor do espírito de Zorba e torcia-me de rir.
Pode rir, patrão; mas se o Deus-Diabo fizer os nossos negócios andarem bem — isso me parece impossível, mas enfim! — sabe que loja eu vou abrir? Uma agência de casamentos. Então, as pobres mulheres que não puderem fisgar um marido, vão chegar: as solteironas, as feias, as cambetas, as vesgas, as mancas, as corcundas, e eu recebo todas numa salinha com uma porção de retratos de belos rapazes nas paredes e digo a elas:
Escolham, belas senhoras, aquele que agradar, e eu faço os arranjos para se tornar seu marido.”
Então eu pego um gajo qualquer meio parecido, visto como na foto, dou-lhe um dinheiro e digo: rua tal, número tal, vai correndo procurar uma tal e lhe faça a corte. Não banque o difícil, sou eu que pago. Durma com ela. Recite todas aquelas doçuras que os homens dizem as mulheres e que a pobre criatura nunca ouviu. Jure que vai casar com ela. Dê a infortunado um pouco daquele prazer que as cabras conhecem, e também as tartarugas e as mil patas. E se aparecesse algum dia um velha cabra no gênero da nossa Bubulina, que ninguém ia querer consolar nem por todo o ouro do mundo, eu fazia o sinal da cruz, e me encarregava dela pessoalmente, eu, o diretor da agência. Então você ia ouvir todos os imbecis dizerem:
Vejam só! Que velho debochado! Então não tem olhos para ver, nem nariz para cheirar?” — “Sim, bando de desalmados, eu tenho um nariz, mas tenho também um coração e sinto pena dela! E quando se tem um coração, a gente pode ter todos os narizes e olhos que quiser, eles não valem nada!” e quando eu estiver completamente impotente por causa das aventuras, e for para o outro mundo, Pedro-o-guarda-chaves vai me abrir a porta do Paraíso: “Entre, pobre Zorba”, dirá; “Entre, grande mártir Zorba, vá se deitar ao lado do seu confrade Zeus. Descanse, meu bravo, você penou muito na terra, receba minha bênção!”
Zorba falava. Sua imaginação armava laços em que ele próprio caía. Ao passarmos pela Figueira da Donzela, suspirou, e com o braço estendido como se prestasse um juramento:
Não se inquiete, minha Bubulina, minha velha barcaça apodrecida e desgovernada! Não se inquiete, eu a consolo! As quatro grandes potências a abandonaram, a mocidade a abandonou, o bom Deus a abandonou, mas o Zorba aqui não a abandona!
Passava da meia-noite quando chegamos à nossa praia.
Começou a ventar. Lá da África vinha o vento quente do sul que inchava as árvores, as vinhas, os seios de Creta. A ilha toda, estendida sobre o mar, recebia arrepiada os sopros quentes do vento que fazia a seiva subir. Zeus, Zorba e o vento sul misturavam-se e eu distinguia, muito preciso, dentro da noite, um rosto pesado de homem de barba preta, cabelos pretos besuntados de óleo a se debruçar, com os lábios vermelhos e quentes, sobre Madame Hortência, a Terra.

Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego

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