terça-feira, 8 de março de 2022

Moleque adolescente

Nos anos 1960, Jesse costumava ir lá em casa para ver Ben. Eles eram garotos na época, cabelo comprido, luz estroboscópica, maconha e ácido. Jesse já tinha largado a escola, já tinha sido preso, já estava em liberdade condicional. Os Rolling Stones se apresentaram no Novo México. The Doors também. Ben e Jesse tinham chorado com a morte de Jimi Hendrix, com a morte de Janis Joplin. Aquele foi um ano de tempo ruim. Neve. Canos congelados. Todo mundo chorou naquele ano.
Morávamos numa velha casa de fazenda, perto do rio. Marty e eu tínhamos acabado de nos divorciar, era meu primeiro ano trabalhando como professora, meu primeiro emprego. Era uma casa difícil para uma pessoa cuidar sozinha. O telhado dava infiltração, a bomba estava velha, mas era uma casa linda, grande.
Ben e Jesse ouviam música alta, queimavam um incenso de violeta que tinha cheiro de mijo de gato. Meus outros filhos Keith e Nathan não suportavam Jesse — hippie drogado — mas Joel, o bebê, o adorava, adorava as botas, a guitarra, a espingarda de chumbinho de Jesse. A prática de pontaria em latas de cerveja no quintal dos fundos. Ping.
Era março e estava frio para valer. Os grous iam aparecer na vala limpa do rio ao amanhecer. Eu tinha ficado sabendo disso pelo novo pediatra. Ele é um bom médico, e solteiro, mas eu ainda sinto falta do velho dr. Bass. Quando Ben era neném, liguei para ele para perguntar quantas fraldas eu deveria lavar de cada vez. Uma, ele me respondeu.
Nenhum dos meninos quis ir. Eu me vesti, tremendo. Fiz uma fogueira com pinhas, enchi uma garrafa térmica com café. Preparei massa de panqueca, dei comida para os cachorros, para os gatos e para Rosie, a cabra. Será que nós tínhamos um cavalo na época? Se tínhamos, eu esqueci de dar comida para ele. Jesse se aproximou por trás de mim no escuro, no arame farpado ao lado da estrada coberta de geada branca.
Eu quero ver os grous.”
Eu dei a lanterna para ele, acho que dei a garrafa térmica também. Ele apontava a luz da lanterna para tudo quanto era lugar, menos para a estrada, e eu ficava reclamando com ele por causa disso. Que saco. Para com isso.
Você está conseguindo ver. Está seguindo em frente. Você obviamente conhece a estrada.”
Era verdade. Os vertiginosos arcos de luz revelavam ninhos de passarinho em choupos empalidecidos pelo inverno, abóboras-morangas no campo de Gus, as silhuetas pré-históricas dos bois brâmanes de Gus. Os olhos de ágata dos bois se abriam para refletir um pontinho de claridade, depois se fechavam de novo.
Atravessamos o tronco acima da vala de irrigação escura e lenta rumo à vala limpa, onde deitamos de barriga no chão, silenciosos como guerrilheiros. Eu sei, eu romantizo tudo. Mas é verdade que ficamos lá deitados, congelando, durante um bom tempo, no meio da cerração. Não era cerração. Devia ser a névoa que subia da vala ou talvez apenas o vapor que saía da nossa boca.
O fato é que, depois de um bom tempo, os grous realmente apareceram. Centenas deles, bem quando o céu estava ficando cinza-azulado. Eles pousavam em câmera lenta sobre pernas frágeis. Na margem, se lavavam e ajeitavam as penas com o bico. De repente, tudo ficou preto, branco e cinza, como um filme depois dos créditos, se agitando.
Quando os grous bebiam na parte mais alta do regato, a água prateada abaixo deles se dividia em dezenas de filetes finíssimos. Depois, bem rápido, os pássaros se foram, espalhando brancura, com o som de cartas sendo embaralhadas.
Nós ficamos lá, tomando café, até clarear e os corvos chegarem. Corvos estabanados e estridentes, que desafiavam a graça dos grous. A negrura deles ziguezagueava na água, enquanto os galhos dos choupos balançavam como trampolins. Dava para sentir o sol.
Estava claro na estrada no caminho de volta, mas Jesse deixou a lanterna ligada. Você pode fazer o favor de desligar isso? Como ele me ignorou, eu tirei a lanterna dele. Andávamos no ritmo das suas longas passadas, sobre marcas de rodas de tratores.
Puta merda”, ele disse. “Aquilo foi assustador.”
Foi mesmo. Terrível como um exército com bandeiras desfraldadas. Isso é da Bíblia.”
Ah, é, professora?” Ele já era insolente na época.

Lucia Berlin, in Manual da faxineira: Contos escolhidos

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