segunda-feira, 14 de março de 2022

Macaco vê, macaco faz


Em 1904, o romancista russo, Liev Tolstói publicou uma história infantil cujo início é chocante: “Animais selvagens estavam em exposição em Londres. Para vê-los, as pessoas tinham de pagar em dinheiro, ou trazer cães e gatos que eram jogados para os animais selvagens comerem”. Na história, um cãozinho aterrorizado é empurrado para dentro da jaula de um leão feroz.
Hoje multidões protestariam furiosamente do lado de fora dos portões da exposição. As atitudes mudaram tanto que a maioria de nós ficaria horrorizada, incapaz de assistir ao espetáculo. Isso é revelador: eu poderia redigir uma descrição detalhada de um ataque de leão, e você provavelmente a leria, mas assistir ao ataque sangrento de um leão a um cachorrinho seria uma coisa totalmente diferente. Você recuaria. O canal do corpo nos envolve tão diretamente nos acontecimentos que não temos como escapar. Quase nos sentiríamos como se o leão estivesse nos atacando. Tudo o que podemos fazer é evitar a cena tapando os olhos. É difícil imaginar, portanto, que gerações anteriores tenham gostado de assistir a tais espetáculos. Isso significa que nos tornamos mais empáticos hoje? Não tenho certeza, porque é improvável que a capacidade humana de empatia tenha mudado em tão pouco tempo. Em vez disso, o que mudou é o seu foco. Regulamos a empatia abrindo ou fechando uma porta, dependendo de com quem nos identificamos e de quem nos sentimos próximos. Nós abrimos a porta para amigos e parentes, e para os animais que amamos, mas a fechamos para os inimigos e para os animais com os quais não nos importamos.
Em comparação com um século atrás, o mundo ocidental vem abrindo uma porta de empatia cada vez maior para seus animais favoritos. Eles se tornaram parte da família. Em 1964, o presidente norte-americano Lyndon B. Johnson, de pé no jardim da Casa Branca, ergueu um de seus beagles no ar pelas orelhas diante da imprensa. O incidente causou uma comoção. Enormes pilhas de cartas de ódio chegaram à Casa Branca. Depois, Johnson explicou que era uma maneira de fazer seu cachorro ganir. Bem, o cão ganiu, mas o mundo não conseguiu ver o sentido desse gesto de dominação. A corrente de protesto durou tanto tempo e se tornou tão prejudicial que Johnson foi forçado a emitir um pedido público de desculpas. Na verdade, consta que ele recebeu mais correspondências iradas sobre esse único evento do que sobre toda a Guerra do Vietnã. Isso significa que nos importamos mais com os maus-tratos a um canino, que sobreviveu, do que com as mortes violentas de mais de 1 milhão de civis e soldados humanos? Racionalmente falando, não posso imaginar que assim seja, mas nossas reações viscerais são informadas por nossos sentidos, não por números.
Ler sobre um desastre terrível em uma terra distante dificilmente nos comoverá tanto quanto ver fotos do evento ou assistir a entrevistas com vítimas chorando. Toda instituição de caridade sabe que recursos visuais são importantes para obter doações. A má sorte de Johnson foi que o incidente do cachorro foi fotografado. Somos sempre mais sensíveis a corpos e rostos. Assim, com ou sem razão, o retrato de Anne Frank veio a substituir os milhões de judeus mortos no Holocausto. Uma única foto trágica de um menino sírio de três anos morto de bruços numa praia do Mediterrâneo mudou o debate público sobre a enorme crise de refugiados que vinha ocorrendo havia anos. Precisamos de um objeto de identificação, um corpo e um rosto reais para abrir a porta do nosso coração. Michel de Montaigne, filósofo francês do século XVI, já conhecia o poder da linguagem corporal. No pesar e na compaixão, disse ele, o papel da cognição é grosseiramente superestimado em comparação com a proximidade física. Para Montaigne, não é por acaso que dizemos que fomos “tocados” por um evento, usando um termo corporal, porque a forma como nos relacionamos com os outros é muito auxiliada por realmente ver, sentir e ouvir.
Esse canal do corpo é tão antigo que o compartilhamos com outras espécies. Certa vez vi a chimpanzé May inesperadamente dar à luz ao meio-dia. Foi bem debaixo da janela do meu escritório, que dava para a área externa dos símios, e May estava cercada por uma multidão animada de espectadores. Enquanto os chimpanzés se empurravam uns aos outros para dar uma boa olhada, May estava meio ereta com as pernas abertas, depois levou uma das mãos aberta entre as pernas para pegar o bebê quando ele saísse. Ao lado dela estava Atlanta, sua melhor amiga, uma fêmea mais velha que, para minha surpresa, adotou exatamente a mesma postura. Atlanta não estava grávida — ela estava imitando May. Mas ela também esticou a mão entre as pernas — as próprias pernas. Talvez houvesse naquilo um elemento de demonstração — “É isso o que você deve fazer!” —, da mesma forma que os pais humanos fazem movimentos de mastigar e barulho de sorver ao alimentar o bebê com a colher. Os seres humanos e outros primatas não somente imitam os outros como se identificam tanto com eles que a situação dos outros se torna a deles. Por fim, depois de uma longa espera, o bebê de May surgiu e o grupo se agitou. Um chimpanzé gritou e outros se abraçaram, mostrando o quanto todos tinham sido tocados pelas emoções do momento.
Às vezes os chimpanzés se identificam uns com os outros por diversão. Certa vez, nossos chimpanzés jovens jogaram durante algumas semanas o divertido jogo de perseguir um macho adulto machucado. O macho não fazia o típico jeito de andar com as articulações dos dedos (apoiando o peso frontal nos nós dos dedos), mas sim apoiando-se num pulso dobrado para proteger os dedos mordidos. Em fila indiana atrás dele, os jovens mancavam de modo tão patético quanto esse infeliz macho, parecendo haver sido feridos também. Chimpanzés selvagens na floresta de Budongo, em Uganda, também ficaram fascinados com um deles que se movia de maneira incomum. Macho de quase cinquenta anos, Tinka tinha as mãos gravemente deformadas e os pulsos paralisados, o que significava que não conseguia nem se coçar. Tinka desenvolveu uma técnica de se coçar parecida com a maneira como esticamos uma toalha entre as mãos para secar nossas costas. Ele esticava um cipó com o pé, depois esfregava a cabeça e o corpo de lado contra a planta. Era um procedimento esquisito — os chimpanzés fisicamente capazes não precisariam daquilo. No entanto, vários jovens se esfregavam regularmente contra cipós puxados para esse fim, exatamente como Tinka.
Plutarco disse: “Se você vive com um aleijado, aprenderá a mancar”. A locomoção solidária é conhecida de nossos animais de estimação. Poucos dias depois de um bom amigo meu quebrar a perna, seu cachorro começou a arrastá-la. Nos dois casos, era a perna direita. O cão coxeou por semanas, mas aquilo desapareceu milagrosamente quando meu amigo tirou o gesso. Isso só é possível porque os cães, como muitos mamíferos, estão perfeitamente sintonizados com os corpos dos outros. Eles não só são ótimos sincronizadores como também gostam disso. Alguns cães aprendem a pular corda junto com as crianças, enquanto outros seguem um bebê humano pela casa, rastejando de barriga junto com ele.
Sincronização e mimetismo são comuns na natureza, como quando muitos golfinhos saltam da água ao mesmo tempo ou quando os pelicanos deslizam em formação perfeita. Também vemos isso em animais sob cuidados humanos. Quando dois cavalos são treinados para puxar uma carroça juntos, eles inicialmente empurram e puxam um contra o outro, cada um seguindo seu próprio ritmo. Mas, depois de anos trabalhando juntos, eles acabam agindo como um só, puxando destemidamente a carroça em alta velocidade inclusive através de obstáculos de água durante maratonas cross-country. Eles se oporão mesmo à mais breve separação, como se tivessem se transformado num único organismo. O mesmo princípio funciona entre os cães de trenó. Talvez o caso mais extremo seja o de uma cadela husky que ficou cega mas ainda corria junto com os outros cães, baseada na capacidade de cheirá-los, ouvi-los e senti-los.
A fusão corporal é o princípio central. A zoóloga norte-americana Katy Payne trabalhou com elefantes africanos:

Certa vez, vi uma mãe elefante fazer uma sutil dança de tromba e pé enquanto, sem avançar, ela observava o filho perseguir um gnu em fuga. Eu mesma dancei desse jeito enquanto assistia às apresentações de meus filhos — e um deles, não resisto a contar-lhes, é acrobata de circo.

Um século atrás, Theodor Lipps, o psicólogo alemão que inspirou o termo “empatia”, explicou a Einfühlung (em alemão, literalmente, “sentir dentro”) com um exemplo notavelmente similar: o caso de um equilibrista de corda bamba. Enquanto assistimos ao desempenho do artista, entramos emocionalmente em seu corpo e compartilhamos sua experiência como se estivéssemos na corda com ele. Lipps foi o primeiro a reconhecer esse canal especial que temos para os outros. Não podemos sentir nada que acontece fora de nós, mas, ao nos tornarmos inconscientemente o corpo do outro, ganhamos experiências semelhantes, sentindo a situação dele como se fosse nossa.
Isso explica por que nossas reações são instantâneas. Imagine que o equilibrista de circo caia, e o público tenha empatia apenas com base numa recreação mental. Um processo assim exige tempo e esforço, então meu palpite é que não reagiriam até que o corpo quebrado do acrobata estivesse caído numa poça de sangue no chão. Mas não é isso o que acontece. A reação do público é instantânea: centenas de espectadores murmuram “oh” e “uh” no exato instante em que o pé do equilibrista escorrega. Às vezes eles escorregam de propósito, sem intenção de cair, precisamente porque sabem que o público está com eles a cada passo do percurso. Às vezes me pergunto onde o Cirque du Soleil estaria sem esse tipo de conexão empática.
Há cerca de 25 anos, o canal do corpo recebeu um tremendo impulso a partir da descoberta de neurônios-espelho em um laboratório em Parma, na Itália. Esses neurônios são ativados quando realizamos uma ação, como pegar um copo, mas também quando vemos alguém pegar um copo. Esses neurônios não distinguem entre o nosso comportamento e o de outra pessoa, então possibilitam que o indivíduo entre na pele de outra pessoa. As ações dela se tornam nossas. Essa descoberta foi considerada tão importante para a psicologia quanto a descoberta do DNA para a biologia, pelas profundas implicações para a imitação e outras formas de fusão corporal. Ela explica por que as palavras chegam automaticamente à nossa boca quando assistimos ao gaguejante rei Jorge vi no filme O discurso do rei, de 2010, e por que Atlanta copiou a postura e os movimentos de May.
Em meio a todo o alvoroço que envolve os neurônios-espelho, no entanto, não devemos esquecer que eles não foram descobertos nos seres humanos, mas em macacos. E ainda hoje as provas da existência dos neurônios “macaco vê, macaco faz” em outros primatas são melhores e mais detalhadas do que para o equivalente no cérebro humano. É provável que os neurônios-espelho ajudem os primatas a imitar os outros, como quando abrem uma caixa da mesma forma que um modelo treinado faz, quando se sincronizam com os outros enquanto apertam botões ou quando, na natureza, removem as sementes de uma fruta da mesma maneira que suas mães. Macacos de diferentes grupos processam frutas de modo um pouco diferente, e os jovens copiam fielmente os mais velhos. Na realidade, os primatas são conformistas naturais. Não só imitam como também gostam de ser imitados. Em um experimento, dois pesquisadores deram a um macaco-prego uma bola de plástico para brincar. Um pesquisador imitava cada movimento que o macaco fazia com a bola — jogá-la, sentar-se nela, batê-la contra a parede —, enquanto o outro não. No final, o macaco claramente preferia aquele que o imitara. Em estudo semelhante, adolescentes humanos em um primeiro encontro amoroso foram instruídos a imitar cada movimento do(a) parceiro(a), como pegar um copo, apoiar um cotovelo na mesa ou coçar a cabeça. O(a) parceiro(a) relatou gostar dele(a) muito mais do que aqueles cujo(a) parceiro(a) agiu de forma independente. Eles não percebem por que sentem diferente, mas em algum nível consideramos a imitação um elogio.
É fácil ver como isso funciona quando alguém de quem estamos perto boceja em nossa presença. É quase impossível não bocejar junto. Já assisti a palestras sobre o bocejo (usando termos sofisticados como “pandiculação”) em que todo o público ficava com a boca aberta a maior parte do tempo. O contágio do bocejo está relacionado com a empatia, porque os seres humanos mais propensos a ele são também os mais empáticos em outras medidas, e as mulheres — que em média obtêm uma pontuação mais alta do que os homens em empatia — são mais sensíveis aos bocejos dos outros. Por outro lado, crianças com déficits de empatia, como aquelas com transtorno do espectro autista, muitas vezes não sofrem o contágio do bocejo. Esse conhecimento levou a vários estudos para ver como e quando “pegamos” o bocejo dos outros e se outros animais fazem o mesmo. Agora sabemos que cães e cavalos bocejam em resposta a bocejos humanos — os cachorros fazem isso mesmo que só escutem o dono bocejar —, e que os bocejos costumam se espalhar entre os macacos de um grupo.
Ensinamos nossos chimpanzés a pôr o olho num buraco de um balde para ver um iPod do outro lado. Desse modo, poderíamos testar sua reação particular a vídeos de símios bocejando. Assim que viram os bocejos, eles começaram a bocejar como loucos. Porém só faziam isso se conheciam pessoalmente os símios mostrados nos vídeos. Vídeos de estranhos não os interessavam. Então, não era apenas uma questão de ver uma boca aberta e próxima: eles precisavam se identificar com o chimpanzé que viam bocejar no vídeo. O mesmo papel da familiaridade é conhecido entre os seres humanos. Um estudo de campo secreto feito em restaurantes, salas de espera e estações de trem descobriu que, se um homem fica ao lado de sua esposa e ela boceja, ele bocejará junto com ela. Mas se ele ficar ao lado de um estranho que boceja não será afetado. As reações empáticas são sempre mais fortes quanto mais temos em comum com o outro e quanto mais próximos nos sentimos dele.
Terminemos a história de Tolstói sobre o leão e o cachorrinho. Ao encontrar o grande felino, o pobre cãozinho logo rolou de costas enquanto abanava a cauda freneticamente. Esse ato de rendição deve ter apaziguado o leão, porque ele se absteve de atacar. Não só isso, mas os dois se tornaram grandes amigos. Embora isso possa parecer implausível, existem exemplos contemporâneos suficientes de amizades estranhas entre animais — elefante e cão, coruja e gato, até mesmo leão e cachorro bassê — para não se descartar a história de Tolstói de imediato. A coisa sempre se resume a como os corpos interagem, por exemplo quão cheia estava a barriga do leão e quão convincente foi o rolamento do cachorro.

Frans de Waal, in O último abraço da matriarca

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