Em
1904, o romancista russo, Liev Tolstói publicou uma história
infantil cujo início é chocante: “Animais selvagens estavam em
exposição em Londres. Para vê-los, as pessoas tinham de pagar em
dinheiro, ou trazer cães e gatos que eram jogados para os animais
selvagens comerem”. Na história, um cãozinho aterrorizado é
empurrado para dentro da jaula de um leão feroz.
Hoje
multidões protestariam furiosamente do lado de fora dos portões da
exposição. As atitudes mudaram tanto que a maioria de nós ficaria
horrorizada, incapaz de assistir ao espetáculo. Isso é revelador:
eu poderia redigir uma descrição detalhada de um ataque de leão, e
você provavelmente a leria, mas assistir ao ataque sangrento de um
leão a um cachorrinho seria uma coisa totalmente diferente. Você
recuaria. O canal do corpo nos envolve tão diretamente nos
acontecimentos que não temos como escapar. Quase nos sentiríamos
como se o leão estivesse nos atacando. Tudo o que podemos fazer é
evitar a cena tapando os olhos. É difícil imaginar, portanto, que
gerações anteriores tenham gostado de assistir a tais espetáculos.
Isso significa que nos tornamos mais empáticos hoje? Não tenho
certeza, porque é improvável que a capacidade humana de empatia
tenha mudado em tão pouco tempo. Em vez disso, o que mudou é o seu
foco. Regulamos a empatia abrindo ou fechando uma porta, dependendo
de com quem nos identificamos e de quem nos sentimos próximos. Nós
abrimos a porta para amigos e parentes, e para os animais que amamos,
mas a fechamos para os inimigos e para os animais com os quais não
nos importamos.
Em
comparação com um século atrás, o mundo ocidental vem abrindo uma
porta de empatia cada vez maior para seus animais favoritos. Eles se
tornaram parte da família. Em 1964, o presidente norte-americano
Lyndon B. Johnson, de pé no jardim da Casa Branca, ergueu um de seus
beagles no ar pelas orelhas diante da imprensa. O incidente causou
uma comoção. Enormes pilhas de cartas de ódio chegaram à Casa
Branca. Depois, Johnson explicou que era uma maneira de fazer seu
cachorro ganir. Bem, o cão ganiu, mas o mundo não conseguiu ver o
sentido desse gesto de dominação. A corrente de protesto durou
tanto tempo e se tornou tão prejudicial que Johnson foi forçado a
emitir um pedido público de desculpas. Na verdade, consta que ele
recebeu mais correspondências iradas sobre esse único evento do que
sobre toda a Guerra do Vietnã. Isso significa que nos importamos
mais com os maus-tratos a um canino, que sobreviveu, do que com as
mortes violentas de mais de 1 milhão de civis e soldados humanos?
Racionalmente falando, não posso imaginar que assim seja, mas nossas
reações viscerais são informadas por nossos sentidos, não por
números.
Ler
sobre um desastre terrível em uma terra distante dificilmente nos
comoverá tanto quanto ver fotos do evento ou assistir a entrevistas
com vítimas chorando. Toda instituição de caridade sabe que
recursos visuais são importantes para obter doações. A má sorte
de Johnson foi que o incidente do cachorro foi fotografado. Somos
sempre mais sensíveis a corpos e rostos. Assim, com ou sem razão, o
retrato de Anne Frank veio a substituir os milhões de judeus mortos
no Holocausto. Uma única foto trágica de um menino sírio de três
anos morto de bruços numa praia do Mediterrâneo mudou o debate
público sobre a enorme crise de refugiados que vinha ocorrendo havia
anos. Precisamos de um objeto de identificação, um corpo e um rosto
reais para abrir a porta do nosso coração. Michel de Montaigne,
filósofo francês do século XVI, já conhecia o poder da linguagem
corporal. No pesar e na compaixão, disse ele, o papel da cognição
é grosseiramente superestimado em comparação com a proximidade
física. Para Montaigne, não é por acaso que dizemos que fomos
“tocados” por um evento, usando um termo corporal, porque a forma
como nos relacionamos com os outros é muito auxiliada por realmente
ver, sentir e ouvir.
Esse
canal do corpo é tão antigo que o compartilhamos com outras
espécies. Certa vez vi a chimpanzé May inesperadamente dar à luz
ao meio-dia. Foi bem debaixo da janela do meu escritório, que dava
para a área externa dos símios, e May estava cercada por uma
multidão animada de espectadores. Enquanto os chimpanzés se
empurravam uns aos outros para dar uma boa olhada, May estava meio
ereta com as pernas abertas, depois levou uma das mãos aberta entre
as pernas para pegar o bebê quando ele saísse. Ao lado dela estava
Atlanta, sua melhor amiga, uma fêmea mais velha que, para minha
surpresa, adotou exatamente a mesma postura. Atlanta não estava
grávida — ela estava imitando May. Mas ela também esticou a mão
entre as pernas — as próprias pernas. Talvez houvesse naquilo um
elemento de demonstração — “É isso o que você deve fazer!”
—, da mesma forma que os pais humanos fazem movimentos de mastigar
e barulho de sorver ao alimentar o bebê com a colher. Os seres
humanos e outros primatas não somente imitam os outros como se
identificam tanto com eles que a situação dos outros se torna a
deles. Por fim, depois de uma longa espera, o bebê de May surgiu e o
grupo se agitou. Um chimpanzé gritou e outros se abraçaram,
mostrando o quanto todos tinham sido tocados pelas emoções do
momento.
Às
vezes os chimpanzés se identificam uns com os outros por diversão.
Certa vez, nossos chimpanzés jovens jogaram durante algumas semanas
o divertido jogo de perseguir um macho adulto machucado. O macho não
fazia o típico jeito de andar com as articulações dos dedos
(apoiando o peso frontal nos nós dos dedos), mas sim apoiando-se num
pulso dobrado para proteger os dedos mordidos. Em fila indiana atrás
dele, os jovens mancavam de modo tão patético quanto esse infeliz
macho, parecendo haver sido feridos também. Chimpanzés selvagens na
floresta de Budongo, em Uganda, também ficaram fascinados com um
deles que se movia de maneira incomum. Macho de quase cinquenta anos,
Tinka tinha as mãos gravemente deformadas e os pulsos paralisados, o
que significava que não conseguia nem se coçar. Tinka desenvolveu
uma técnica de se coçar parecida com a maneira como esticamos uma
toalha entre as mãos para secar nossas costas. Ele esticava um cipó
com o pé, depois esfregava a cabeça e o corpo de lado contra a
planta. Era um procedimento esquisito — os chimpanzés fisicamente
capazes não precisariam daquilo. No entanto, vários jovens se
esfregavam regularmente contra cipós puxados para esse fim,
exatamente como Tinka.
Plutarco
disse: “Se você vive com um aleijado, aprenderá a mancar”. A
locomoção solidária é conhecida de nossos animais de estimação.
Poucos dias depois de um bom amigo meu quebrar a perna, seu cachorro
começou a arrastá-la. Nos dois casos, era a perna direita. O cão
coxeou por semanas, mas aquilo desapareceu milagrosamente quando meu
amigo tirou o gesso. Isso só é possível porque os cães, como
muitos mamíferos, estão perfeitamente sintonizados com os corpos
dos outros. Eles não só são ótimos sincronizadores como também
gostam disso. Alguns cães aprendem a pular corda junto com as
crianças, enquanto outros seguem um bebê humano pela casa,
rastejando de barriga junto com ele.
Sincronização
e mimetismo são comuns na natureza, como quando muitos golfinhos
saltam da água ao mesmo tempo ou quando os pelicanos deslizam em
formação perfeita. Também vemos isso em animais sob cuidados
humanos. Quando dois cavalos são treinados para puxar uma carroça
juntos, eles inicialmente empurram e puxam um contra o outro, cada um
seguindo seu próprio ritmo. Mas, depois de anos trabalhando juntos,
eles acabam agindo como um só, puxando destemidamente a carroça em
alta velocidade inclusive através de obstáculos de água durante
maratonas cross-country. Eles se oporão mesmo à mais breve
separação, como se tivessem se transformado num único organismo. O
mesmo princípio funciona entre os cães de trenó. Talvez o caso
mais extremo seja o de uma cadela husky que ficou cega mas ainda
corria junto com os outros cães, baseada na capacidade de
cheirá-los, ouvi-los e senti-los.
A
fusão corporal é o princípio central. A zoóloga norte-americana
Katy Payne trabalhou com elefantes africanos:
Certa
vez, vi uma mãe elefante fazer uma sutil dança de tromba e pé
enquanto, sem avançar, ela observava o filho perseguir um gnu em
fuga. Eu mesma dancei desse jeito enquanto assistia às apresentações
de meus filhos — e um deles, não resisto a contar-lhes, é
acrobata de circo.
Um
século atrás, Theodor Lipps, o psicólogo alemão que inspirou o
termo “empatia”, explicou a Einfühlung (em alemão,
literalmente, “sentir dentro”) com um exemplo notavelmente
similar: o caso de um equilibrista de corda bamba. Enquanto
assistimos ao desempenho do artista, entramos emocionalmente em seu
corpo e compartilhamos sua experiência como se estivéssemos na
corda com ele. Lipps foi o primeiro a reconhecer esse canal especial
que temos para os outros. Não podemos sentir nada que acontece fora
de nós, mas, ao nos tornarmos inconscientemente o corpo do outro,
ganhamos experiências semelhantes, sentindo a situação dele como
se fosse nossa.
Isso
explica por que nossas reações são instantâneas. Imagine que o
equilibrista de circo caia, e o público tenha empatia apenas com
base numa recreação mental. Um processo assim exige tempo e
esforço, então meu palpite é que não reagiriam até que o corpo
quebrado do acrobata estivesse caído numa poça de sangue no chão.
Mas não é isso o que acontece. A reação do público é
instantânea: centenas de espectadores murmuram “oh” e “uh”
no exato instante em que o pé do equilibrista escorrega. Às vezes
eles escorregam de propósito, sem intenção de cair, precisamente
porque sabem que o público está com eles a cada passo do percurso.
Às vezes me pergunto onde o Cirque du Soleil estaria sem esse tipo
de conexão empática.
Há
cerca de 25 anos, o canal do corpo recebeu um tremendo impulso a
partir da descoberta de neurônios-espelho em um laboratório em
Parma, na Itália. Esses neurônios são ativados quando realizamos
uma ação, como pegar um copo, mas também quando vemos alguém
pegar um copo. Esses neurônios não distinguem entre o nosso
comportamento e o de outra pessoa, então possibilitam que o
indivíduo entre na pele de outra pessoa. As ações dela se tornam
nossas. Essa descoberta foi considerada tão importante para a
psicologia quanto a descoberta do DNA para a biologia, pelas
profundas implicações para a imitação e outras formas de fusão
corporal. Ela explica por que as palavras chegam automaticamente à
nossa boca quando assistimos ao gaguejante rei Jorge vi no filme O
discurso do rei, de 2010, e por que Atlanta copiou a postura e os
movimentos de May.
Em
meio a todo o alvoroço que envolve os neurônios-espelho, no
entanto, não devemos esquecer que eles não foram descobertos nos
seres humanos, mas em macacos. E ainda hoje as provas da existência
dos neurônios “macaco vê, macaco faz” em outros primatas são
melhores e mais detalhadas do que para o equivalente no cérebro
humano. É provável que os neurônios-espelho ajudem os primatas a
imitar os outros, como quando abrem uma caixa da mesma forma que um
modelo treinado faz, quando se sincronizam com os outros enquanto
apertam botões ou quando, na natureza, removem as sementes de uma
fruta da mesma maneira que suas mães. Macacos de diferentes grupos
processam frutas de modo um pouco diferente, e os jovens copiam
fielmente os mais velhos. Na realidade, os primatas são conformistas
naturais. Não só imitam como também gostam de ser imitados. Em um
experimento, dois pesquisadores deram a um macaco-prego uma bola de
plástico para brincar. Um pesquisador imitava cada movimento que o
macaco fazia com a bola — jogá-la, sentar-se nela, batê-la contra
a parede —, enquanto o outro não. No final, o macaco claramente
preferia aquele que o imitara. Em estudo semelhante, adolescentes
humanos em um primeiro encontro amoroso foram instruídos a imitar
cada movimento do(a) parceiro(a), como pegar um copo, apoiar um
cotovelo na mesa ou coçar a cabeça. O(a) parceiro(a) relatou gostar
dele(a) muito mais do que aqueles cujo(a) parceiro(a) agiu de forma
independente. Eles não percebem por que sentem diferente, mas em
algum nível consideramos a imitação um elogio.
É
fácil ver como isso funciona quando alguém de quem estamos perto
boceja em nossa presença. É quase impossível não bocejar junto.
Já assisti a palestras sobre o bocejo (usando termos sofisticados
como “pandiculação”) em que todo o público ficava com a boca
aberta a maior parte do tempo. O contágio do bocejo está
relacionado com a empatia, porque os seres humanos mais propensos a
ele são também os mais empáticos em outras medidas, e as mulheres
— que em média obtêm uma pontuação mais alta do que os homens
em empatia — são mais sensíveis aos bocejos dos outros. Por outro
lado, crianças com déficits de empatia, como aquelas com transtorno
do espectro autista, muitas vezes não sofrem o contágio do bocejo.
Esse conhecimento levou a vários estudos para ver como e quando
“pegamos” o bocejo dos outros e se outros animais fazem o mesmo.
Agora sabemos que cães e cavalos bocejam em resposta a bocejos
humanos — os cachorros fazem isso mesmo que só escutem o
dono bocejar —, e que os bocejos costumam se espalhar entre os
macacos de um grupo.
Ensinamos
nossos chimpanzés a pôr o olho num buraco de um balde para ver um
iPod do outro lado. Desse modo, poderíamos testar sua reação
particular a vídeos de símios bocejando. Assim que viram os
bocejos, eles começaram a bocejar como loucos. Porém só faziam
isso se conheciam pessoalmente os símios mostrados nos vídeos.
Vídeos de estranhos não os interessavam. Então, não era apenas
uma questão de ver uma boca aberta e próxima: eles precisavam se
identificar com o chimpanzé que viam bocejar no vídeo. O mesmo
papel da familiaridade é conhecido entre os seres humanos. Um estudo
de campo secreto feito em restaurantes, salas de espera e estações
de trem descobriu que, se um homem fica ao lado de sua esposa e ela
boceja, ele bocejará junto com ela. Mas se ele ficar ao lado de um
estranho que boceja não será afetado. As reações empáticas são
sempre mais fortes quanto mais temos em comum com o outro e quanto
mais próximos nos sentimos dele.
Terminemos
a história de Tolstói sobre o leão e o cachorrinho. Ao encontrar o
grande felino, o pobre cãozinho logo rolou de costas enquanto
abanava a cauda freneticamente. Esse ato de rendição deve ter
apaziguado o leão, porque ele se absteve de atacar. Não só isso,
mas os dois se tornaram grandes amigos. Embora isso possa parecer
implausível, existem exemplos contemporâneos suficientes de
amizades estranhas entre animais — elefante e cão, coruja e gato,
até mesmo leão e cachorro bassê — para não se descartar a
história de Tolstói de imediato. A coisa sempre se resume a como os
corpos interagem, por exemplo quão cheia estava a barriga do leão e
quão convincente foi o rolamento do cachorro.
Frans de Waal, in O último abraço da matriarca
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