sexta-feira, 18 de março de 2022

É o puro creme do milho

Quando ela disse que iria se casar com José Paulino, o filho do Antenor do açougue, o irmão caçula desacreditou. “O Zé Pamonha?! Mas ele é o maior babaca do bairro!” A mãe disse que ele ficasse quieto, por mais que ela soubesse que a razão estava com o menino.
Assim foi. Casou-se. Teve, dois anos depois, o inevitável José Paulino Filho e, depois, a Teresinha, que não herdou o nome, mas herdou os olhos sonsos do pai. O marido era aquilo mesmo. Falava pouco, limitava-se a pagar as contas e a lembrar-se, por vezes vagamente, que era casado com aquela mulher que se tornara insípida como ele. Não mostrava grandes indícios de afeto pela tal família que os anos colocaram dentro da sua casa.
Mas ele não era de todo mau, era só um pamonha mesmo. Aspecto amarelado, não muito saudável, textura quase gelatinosa.
Ela sabia disso desde antes da sinceridade do irmão. Fez sua escolha consciente, daí o fato de nunca ter se decepcionado. A não ser por uma única causa: o marido nunca a chamava. Nem por Rosa, nem por “mulher”, nem por “esposa”, nem por “ô”. Ele tinha o estranho hábito de sempre dirigir-se às pessoas com uma frase direta, sem nenhuma introdução.
Os dois pequenos pamonhas, para profunda tristeza da mãe, cresceram com o mesmo hábito do pai. Não gritavam “mãe” pela casa. Iam até ela e pediam, diretamente, leite, colo, bolinhos de chuva, ajuda com o dever de casa.
Ela nunca foi sonhadora, nunca deixou que os pensamentos voassem, mas criou sem querer a triste esperança de um dia ser chamada outra vez, o que não acontecia desde a morte dos pais e da mudança dos irmãos para o Paraguai. Por vezes, sonhava com uma voz de homem que chamava por dezenas de nomes de mulher, exceto por Rosa.
Já haviam se passado trinta e cinco anos desde o dia em que dissera “sim” ao pamonha. Os filhos já haviam tomado seus rumos, e ele assistia a um leilão de gado na televisão. Foi quando ela ouviu, distante: “Pamonha, pamonha, pamonha”. Parecia piada de mau gosto da vida. “Temos curau e pamonha”, bradava o alto-falante da Kombi que se arrastava pela rua das Bromélias.
Foi quando aconteceu.
Venha provar, minha senhora, é o puro creme do milho!”
O coração de Rosa veio à boca. “Venha.” “Minha senhora.” Depois de tantos anos, alguém chamava por ela. Foi quase como um enfarto.
Correu à cozinha, com dificuldade para respirar. Agarrou o porta-moedas. Saiu para a rua sem nem ouvir a voz do marido. “Temos curau e pamonha.”
Parou em frente ao carro sem entender bem o que sentia, com o porta-moedas em frente ao peito. O homem magro de camiseta branca perguntou: “É curau ou pamonha, dona?”.
Não teve dúvidas, por mais que nunca tivesse provado.
É curau.”
Voltou para a cozinha segurando o pote de plástico morno nas mãos trêmulas. Nunca poderia explicar a sensação daqueles minutos. Sentou-se. Pegou uma colher na gaveta. Olhou o creme de amarelo suave, polvilhado por canela. Suspirou. Mergulhou a colher, levando-a rapidamente à boca.
Os sentimentos inexplicáveis intensificaram-se. Fechou os olhos. Permaneceu assim não soube por quanto tempo, talvez vinte segundos, talvez quatro anos. Os olhos fechados, o creme doce na boca. E então finalmente entendeu.
Era o curau que ela esperava havia tantos anos. Era aquele sabor que faltava nos seus dias. E percebeu, por fim, que quem nasceu para o curau nunca seria, verdadeiramente, de um pamonha.

Ruth Manus, in Pega lá uma chave de fenda: e outras divagações sobre o amor

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